Cenário mais pessimista do relatório sobre segurança alimentar não captura ainda todo o impacto da recessão e as conseqüências da desigualdade no acesso aos alimentos; meta de fome zero até 2030 se torna ainda mais distante
Por Mariana Franco Ramos, em De Olho nos Ruralistas
A fome pode atingir até 828 milhões de pessoas em 2020, das quais mais de 132 milhões apenas em virtude das consequências econômicas da pandemia de Covid-19. É o que mostra o relatório “O estado da segurança alimentar e nutrição no mundo”, lançado nesta segunda-feira (13). O documento é uma publicação conjunta da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (Fida), da Organização Mundial da Saúde (OMS), do Programa Mundial de Alimentos (WFP) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
De acordo com as organizações, se nenhuma ação for tomada para impedir interrupções previsíveis nesse cenário, os números devem colocar em xeque o alcance do segundo Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030, referente à fome zero, especialmente em países da África e da América Latina, que apresentam déficit alimentar. Os pesquisadores atestam: “Não há dúvidas de que o coronavírus deve expor mais pessoas à insegurança alimentar e acelerar as projeções de aumento no número de atingidos pela fome.”
O ex-diretor geral da FAO José Graziano da Silva já tinha alertado, em entrevista ao De Olho nos Ruralistas no dia 8 de abril, para um risco de colapso no sistema de abastecimento de alimentos no Brasil. Um dos criadores do Programa Fome Zero, em 2003, ele citou a falta de articulação do governo Jair Bolsonaro para combater a fome em meio ao coronavírus e à crise econômica:
— Antes da pandemia, quando ainda estava na FAO, fizemos um cálculo que apontava que, se não houvesse reversão da tendência, voltaríamos ao Mapa da Fome. O aumento do desemprego em função da crise e a redução dos programas sociais — vista no aumento da fila do Bolsa Família — poderiam trazer a fome de volta ao país. Nossos cálculos sugeriam que provavelmente o Brasil voltaria ao Mapa da Fome ao fim de 2021. Mas com a recessão mundial, acentua-se a perspectiva de um crescimento nulo ou mesmo decréscimo neste ano de 2020.
IMPACTO DA PANDEMIA PODE ESTAR SUBESTIMADO
No informe divulgado nesta semana, os autores trabalham com três cenários. O primeiro deles estima crescimento econômico mundial negativo de 4,9% em 2020 e crescimento positivo de 5,4% em 2021. O desempenho negativo implicaria num aumento de 83 milhões de desnutridos atribuível à pandemia, de um total de 695,7 a 778,3 milhões. São consideradas desnutridas pessoas que não consomem calorias suficientes para viver uma vida ativa e saudável.
O segundo cenário, menos otimista, prevê crescimento de 2,1 pontos percentuais, tanto em 2020 como em 2021 (ou seja, o crescimento econômico mundial seria em média -7% e +3,3%, respectivamente). Neste caso, o acréscimo no número de desnutridos em 2020 seria de 103 milhões.
O terceiro e mais pessimista dos quadros implica numa redução de 5,1 pontos percentuais nas taxas de crescimento: -10% em 2020 e +0,3% no ano que vem. Com isso, a quantidade de subnutridos chegaria a 828 milhões em 2020, dos quais mais de 132 milhões poderiam ser atribuídos ao impacto da Covid-19. Ainda conforme as organizações, em todos os casos a economia mundial não se recupera em 2021:
— A análise é limitada ao impacto potencial da pandemia no suprimento de alimentos e em projeções pré-Covid-19 para o tamanho da população. Como resultado, não captura todo o impacto da recessão econômica, pois não considera possíveis conseqüências da desigualdade no acesso a esses alimentos dentro dos países. Portanto, pode subestimar o potencial total de impacto do coronavírus.
Os pesquisadores acrescentam que trabalham com uma previsão de recuperação econômica de dois anos. Considerando o alto grau de incerteza, ponderam, há “uma limitação importante”.
AMÉRICA LATINA E CARIBE TÊM MAIS DE 47,7 MILHÕES DE DESNUTRIDOS
O relatório mostra ainda que a fome na América Latina e no Caribe afetou 47,7 milhões de pessoas em 2019, o que corresponde a 7,4% da população da região. É o quinto ano consecutivo de aumento. As projeções indicam que ela atingirá 67 milhões (9,5%) em 2030. Os dados não consideram o impacto da Covid-19, o que deve tornar o problema ainda mais urgente.
Os pesquisadores dizem acreditar em um aumento de 3 pontos percentuais da fome na América Central até 2030, o equivalente a 7,9 milhões de pessoas. Na América do Sul, a projeção é que chegue a 7,7%, ou seja, quase 36 milhões de pessoas. Embora o Caribe tenha feito progressos, também não está no caminho de cumprir a meta da ONU: estima-se que, até 2030, ao menos 6,6 milhões de pessoas viverão com fome nessa área.
Um fator particularmente preocupante para as organizações é que, entre todas as regiões do mundo, a América Latina e o Caribe têm o custo mais alto de compra para uma dieta que atenda às necessidades energéticas mínimas: US$ 1,06 ao dia por pessoa. Esse valor é 34% mais caro que a média global.
Na região, o custo de uma dieta saudável (que forneça todos os nutrientes e energia essenciais que cada pessoa precisa para se manter saudável) também é o mais alto do mundo: em média US$ 3,98 ao dia por pessoa. Esse valor é 3,3 vezes mais alto do que uma pessoa abaixo da linha da pobreza pode gastar em alimentos. Com base na renda média estimada, mais de 104 milhões de pessoas não podem pagar uma dieta saudável.
INSEGURANÇA ALIMENTAR NA REGIÃO CHEGA A 31,7%
Embora a África seja a região onde os níveis mais altos de insegurança alimentar total são observados, é na América Latina e no Caribe, segundo a FAO, que a insegurança alimentar está aumentando mais rapidamente: cresceu de 22,9% em 2014 para 31,7% em 2019, devido a a um aumento acentuado na América do Sul.
Estima-se que 9% da população regional sofra de grave insegurança alimentar, o que significa que as pessoas ficam sem comida e, na pior das hipóteses, passam um dia ou vários dias sem comer.
Da mesma forma, quase um terço dos habitantes da região —205 milhões de pessoas — vive em condições de insegurança alimentar moderada, o que ocorre quando as pessoas enfrentam incerteza em sua capacidade de obter alimentos e são forçadas a reduzir a quantidade ou a qualidade dos alimentos que consomem.
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Foto principal (Funai): entrega de cestas básicas na regional do Médio Purus, no Amazonas