Covid mata anciãs que curam, rezam e lutam, e deixa povos indígenas órfãos

Por Carlos Madeiro, no Universa

A anciã Mônica Renhinhãi’õ era uma índia xavante que vivia na aldeia Aõpá, no município de Alto Boa Vista (MT), e faria 100 anos na última quarta-feira. Vinte cinco dias antes do seu aniversário, entretanto, a Covid-19 a levou.

Entre os xavantes, as mulheres são as guardiãs das sementes que dão os frutos. Apesar da idade avançada, Mônica integrava desde 2018 o grupo chamado “Mulheres coletoras de sementes da terra indígena Marãiwatsédé”. Quem participava do grupo conta que ela trabalhava todo os dias.

Mônica é uma das 23 anciãs indígenas que morreram vítima da Covid-19 até o dia 30 de junho, segundo dados coletados da Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira). Entre os homens, foram 55 casos de mortes acima de 60 anos. Os números, porém, devem ser bem maiores, porque nem todos os índios têm idade confirmada.

Para os indígenas, elas não são apenas idosas que partiram. A tradição garante aos anciãos a missão de serem guias de gerações com ensinamentos, histórias e missões nas terras indígenas na Amazônia. E as mulheres têm um papel fundamental nesse contexto.

Há povos em que as anciãs são as guardiãs das ervas e das receitas e seus segredos de cura. Na Amazônia, como o acesso de índios a serviços médicos é raro, a maioria absoluta dos problemas de saúde são resolvidos entre eles mesmos nas aldeias.

Entre os índios, a morte de uma anciã ou um ancião é tratada como se uma biblioteca viva fosse perdida, é um conhecimento que se esvai.

Lusia dos Santos Borari, primeira indígena a morrer de Covid no país. Imagem: Divulgação Associação Indígena Borari de Alter do Chão

Nesse cenário, a Covid-19 tem destruído várias dessas bibliotecas.  Universa conta aqui um pouco das tradições seculares das mulheres idosas que deixaram a vida para se tornarem história de seus povos.

Lusia dos Santos Borari, 87, foi a primeira indígena a morrer por Covid-19 no país, em 19 de março, em Alter do Chão (PA).

Segundo a conselheira Distrital de Saúde Indígena e liderança no Baixo Tapajós, Luana Kumaruara, dona Lusia era tataravó e deixou um cacicado formado só por mulheres indígenas chamado Sapu Borari.

Foi uma perda não só de corpo, mas de conhecimento ancestral que ela carregava. Lusia era responsável pela transmissão de saberes de geração para geração (Luana Kumaruara, conselheira de saúde indígena)

Alter do Chão é também conhecido como o “caribe da Amazônia” e sofre hoje com uma grande tensão territorial causado por pressão fundiária pelas terras para fins de turismo. “Lá existem nativos que precisam ser vistos e respeitados por ser o seu lugar, como povos originários. E dona Lusia deixa o legado de luta para a cacica Neca Borari”, afirma Luana.

Aikrekatati Aprakwiti Kwynkre. Imagem: Arquivo Pessoal

No dia 1º de junho, quem partiu foi Aikrekatati Aprakwiti Kwynkre, 66, da terra Gavião, em Marabá (PA). A cacica Katia Silene Akrãtikatêjê dá a dimensão da importância dela para o povo Gavião. “Ela era uma anciã feminista, professora de língua e da cultura. Ela faz muita falta, deixou vários legados, vários ensinamentos”, lamenta.

Para os índios, a despedida também tem um significado especial porque se trata de um encontro da alma do falecido com seus ancestrais.

A gente não se conforma porque não teve velório. A gente não viu o rosto dela. Foi primeira vez que isso aconteceu. É uma coisa que a gente nunca pensou que ia acontecer (Cacica Katia Silene Akrãtikatêjê sobre a morte de Aikrekatati)

Entre o povo, conta Kátia, a perda dos anciãos tem um significado duro. “Nossos velhos são tudo para nós! São nosso horizonte, nosso guia. São eles que nos alimentam. É difícil para vocês entenderem a nossa dor, nosso medo, nossa luta. Mas quando morre uma anciã, é como nós perdêssemos uma árvore frutífera, um rio ou um braço: sempre que você se movimentar vai te fazer falta”, conta.

Brasil perde a mestra da cultura Macuxi

Bernaldina José Pedro, 75, vivia na comunidade Maturuca, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, e morreu no dia 23 de junho. Ela era chamada de Vovó Bernaldina e era conhecida como mestra da cultura Macuxi. “Mulher de muita fé, expressava sua espiritualidade de maneira diplomática”, conta Jaider Esbell, filho adotivo de Bernaldina —que deixou seis filhos e diversos netos e bisnetos.

Ele conta que Berdaldina nasceu na Guiana, mas logo veio com os pais para o Brasil. “Ficou viúva muito cedo e optou por criar os filhos sozinha, assumindo assim seu lugar de mãe e mestra, e liderou a luta não só das mulheres de sua geração, mas formou todo um contingente de novos guerreiros. Isso não somente de seu povo, mas de diversas etnias que integram o movimento indígena”, explica.

Além de guerreira, ela tinha outro talento. “Ela gostava de cantar. Cantava em Makuxi narrativas inteiras que evocavam curas e louvação à vida para muito além da relação terrena e celestial.

O filho diz que seu legado segue agora nas vozes de seus parentes guerreiros, filhos artistas e em suas próprias obras, que incluem o filme “Amazonian Cosmos”. “Nele, ela vai até ao Vaticano e tem um encontro com o Papa Francisco”, lembra Jaider.

“Ela se tornou ancestral na mata que nos guia”

A pajé Luzia Tupinambá tinha 87 anos e vivia na aldeia Marabaixo, em Santarém (PA). Ela morreu em 19 de maio vítima da Covid-19. “Hoje, para o nosso povo, ela se tornou ancestral na mata que nos guia nas lutas”, conta Eli Tupinambá.

Luzia era benzedeira e curandeira do povo e era considerada uma das mais sábias indígenas.

A perda de uma pajé que conhece as plantas que curam, que benzem, que consertam, é como perder um legado, uma geração. Eles são os guardiões dos saberes sagrados e são os responsáveis por transmitir eles para nós (Eli Tupinambá)

E eles fazem isso oralmente. “Por isso que, quanto mais quanto mais velho o nosso ancião, mais conhecimento ele tem. São árvores de conhecimento que perdemos”, completa Eli.

“São perdas inestimáveis”, diz antropóloga

Segundo a jornalista, pesquisadora e mestre em antropologia pela UFPA (Universidade Federal do Pará), Helena Palmquist, a morte dos anciãos é uma tragédia para os índios. “É uma geração inteira de sábios e sábias que está sendo perdida ao mesmo tempo”, conta.

“Estão morrendo muitos velhos e velhas que sobreviveram aos genocídios do passado, que testemunharam a violência contra seus povos e inclusive sobreviveram às centenas de mortes provocadas por epidemias na época da ditadura. São perdas inestimáveis para os povos”, diz.

Para ela, a morte de tantos anciãos e anciãs em pouco tempo pode criar um hiato geracional na transmissão de conhecimentos e gerar uma desorientação.

“Pode provocar danos psicológicos severos nos sobreviventes, ainda mais pela ausência de funerais corretos. É uma tragédia que vamos demorar ainda para mensurar em todas as suas consequências.”

Alessandra Korap, liderança indígena do povo Munduruku, conta que entre o seu povo já foram 13 idosos mortos pela Covid-19. “Imagine que, para gente, estão queimando nossas bibliotecas —que não é aquela que você entra e sai, a nossa é viva, que está dando o ensinamento. A morte de um idoso é dolorida demais. Agora imagina 13 mortes? É uma perda muito grande”, afirma.

“Isso tudo é muito triste”, diz líder Kokama

Já o líder Eladio Kokama, do povo Kokama, tenta explicar como os anciãos são representativos para o seu povo no Amazonas. “Eles são engenheiros, carpinteiros, pedreiros, curandeiros. Nossos anciãos ensinaram filhos, netos. É uma cultura nossa, e falo que são engenheiros porque sabem fazer canoa, casa. É uma cultura de riqueza que nos falava da nossa história, da nossa tradição”, conta.

Entre os Kokama, a orientação agora, com o avanço da Covid-19, é conviver ao máximo com anciãos. “Essa situação nos deixa extremamente preocupados. Sempre falamos em nossas reuniões para ficarmos perto, tirar tudo o que eles têm de conhecimento porque eles são a nossa história. Isso tudo é muito triste”, diz, com a voz embargada.

A morte de anciãos também comove o presidente do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), Dom Roque Palosch. “O idoso é guardião das tradições e costumes do povo. A tradição deles é repassada através da oralidade.”

Ele faz uma ligação entre passado e presente e ajuda o povo a projetar o futuro. A cada morte de um ancião, para os povos indígenas, é parte da história e da cultura que se vai (Dom Roque Palosch, do Cimi)

Bernaldina José Pedro, que morreu aos 75 anos. Imagem: Arquivo Pessoal

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