Um milhão de casos: a escalada indiana

Por Maíra Mathias e Raquel Torres, em Outra Saúde

UM NOVO GIGANTE

A Índia ultrapassou na sexta-feira a marca de um milhão de infectados pelo novo coronavírus, chegando ao terceiro lugar na lista dos países mais afetados. Ontem houve um novo recorde diário, com 40 mil novos casos em 24 horas. Quando se trata do número de óbitos (27,4 mil até aqui), está em oitavo lugar.

A escalada indiana ao topo do ranking não é nem um pouco inesperada. O primeiro caso foi registrado no dia 30 de janeiro e, no começo, o vírus avançou lentamente. Só no dia 13 de março foi registrada a primeira morte, quando havia 73 casos conhecidos. Mas aí já existe um problema: ter uma morte com tão poucos casos significa que, certamente, já havia muitas infecções não detectadas pelo país. Para comparação, no Brasil (que não é exatamente um grande exemplo nesse combate) a primeira morte aconteceu quando havia 234 casos confirmados. Na Alemanha, quando morreram as duas primeiras pessoas já havia mais de mil infectadas.

No fim de março, com 519 casos e 10 mortes, o primeiro-ministro Narendra Modi decretou lockdown  no país inteiro – 1,3 bilhão de pessoas. De lá para cá, mais de 100 milhões de indianos perderam o emprego. Sem ter onde morar ou como se sustentar nas cidades, muitos retornaram em massa para o interior, ajudando a espalhar o coronavírus onde ele ainda não havia chegado.

Grandes centros como Nova Déli e Mumbai definitivamente não aproveitaram o período do bloqueio para se prepararem para enfrentar a pandemia. Uma reportagem da BBC, ainda em junho, alertava que apesar do crescimento no número de testes, o rastreamento dos contatos de pessoas infectadas era praticamente inexistente nessas grandes cidades. Qualquer semelhança com o espalhamento da covid-19 no Brasil não é nenhuma coincidência.

O lockdown, que durou dois meses, pode ter evitado resultados piores, mas foi insuficiente para frear o vírus. Quando as medidas nacionais começaram a ser flexibilizadas, no dia 30 de maio, já eram mais de 180 mil casos, e eles não paravam de subir. No mês passado, mesmo com escassez de leitos hospitalares e recordes diários de novas infecções, Modi incentivou os governantes dos 28 estados e oito territórios indianos a “desbloquear, desbloquear, desbloquear“. Agora, vários estados precisam retomar os bloqueios.

Ainda hoje, os contágios se concentram em Déli, Maharashtra (onde fica Mumbai) e Tamil Nadu, que respondem por mais da metade do total de casos no país até agora.

A única notícia  boa (se é que se pode dizer isso) parece ser a letalidade da doença no país, que está em torno de 2,7%, menor do que a chinesa. Para alguns especialistas, pode ser porque a população é jovem (só 10% têm mais de 60 anos, enquanto 44% têm menos de 24 anos). Para outros, é apenas  subnotificação.

Em tempo: as inundações que começaram no fim de maio no sul da Ásia certamente são um problema a mais quando se trata de frear a pandemia. Grandes inundações na Índia, Nepal e Bangladesh já deixaram mais de 200 mortos e forçaram o desalojamento de quase quatro milhões de pessoas,  segundo autoridades desses governos. Só no estado de Assam, no norte da Índia, são mais de 2,7 milhões de desabrigados.

FIÉIS À CLOROQUINA

Jair Bolsonaro, ainda com covid-19, está na parte externa do Palácio da Alvorada, separado de seu sempre mirrado (porém, aglomerado) grupo de apoiadores por um espelho d’água. Anda de um lado para o outro, acenando. De repente, em silêncio, retira do bolso uma caixa de hidroxidloroquina e a ergue acima da cabeça, com ambas as mãos. A claque vai ao delírio, com aplausos e gritos, como a torcida diante de uma taça ou religiosos diante de um… messias.

A cena, de ontem à tarde, foi transmitida ao vivo nas redes sociais do presidente. Outros momentos marcaram sua aparição. Retirando a máscara para falar, ele elogiou o atual Ministério da Saúde e criticou o projeto contra fake news. Sempre inflando seu próprio poder, rejeitou uma saída antes de 2022 (ele é alvo de 48 pedidos e impeachment) e afirmou que está tudo certo com a criação do Aliança para o Brasil, para sua reeleição. “Fiquem tranquilos que o partido irá sair“, disse. Até o último dia 9, informa a Folha, só 15.721 das 492 mil assinaturas de apoio exigidas pela legislação haviam sido validadas pela Justiça Eleitoral – 3,2% do mínimo necessário. Mais cedo,  um trio elétrico cristão havia percorrido a Esplanada dos Ministérios em apoio ao governo. Mas, de tudo, o que choca mais é a pequena demonstração daquilo que parece uma seita da cloroquina.

Na sexta, a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) alertou que o país deve retirar “imediatamente e com urgência” a hidroxicloroquina de todas as fases do tratamento do novo coronavírus, para que não seja mais gasto “dinheiro público em tratamentos que são comprovadamente ineficazes e que podem causar efeitos colaterais”. Mais que isso, a SBI demanda que esse dinheiro seja usado naquilo que de fato pode salvar pacientes: anestésicos para intubação; bloqueadores neuromusculares para pacientes que estão em ventilação mecânica; oxímetros para diagnóstico de hipóxia silenciosa; testes RT-PCR; leitos de UTI; contratação de profissionais de saúde; e compra de respiradores. Acontece que, como sabemos, o governo brasileiro já gastou dinheiro público em milhões e milhões de pílulas de hidroxicloroquina que continua precisando escoar. Logo após a publicação do alerta, membros da SBI passaram a sofrer ataques virtuais. No Twitter, os comentários à postagem com o novo informe da entidade são um festival de besteiras. 

Não é nada irrelevante o papel de determinados líderes religiosos na divulgação de informações falsas sobre a pandemia no Brasil e, consequentemente, no seu agravamento. A reportagem de Vinícius Valfré, no Estadão, dá belos exemplos disso, baseada em um levantamento sobre desinformação no YouTube feito pelo Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (Cepedisa) da USP, o Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT) e o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD). Ainda antes das primeiras mortes no Brasil, uma rede formada por religiosos atingiu, em 47 dias, nada menos que 11 milhões de visualizações em vídeos que citavam o novo coronavírus. “Esse canal hoje vai mostrar (…) uma verdadeira manobra de engenharia social, de guerra psicológica, revolucionária”, diz um dos vídeos do canal de inspiração católica do Instituto Plínio Corrêa de Oliveira, que prega que o vírus é “um grande laboratório social no qual a humanidade foi propositalmente metida”.

PIOR DOMINGO

Ontem foi o domingo com maior número de mortes diárias registradas no Brasil: 716. Esse é em geral o dia que tem menos registros, porque o volume de dados processados cai nos fins de semana. Foram 24.650 novos infectados. Na média dos últimos sete dias, houve 1.055 óbitos a cada 24 horas. Com isso, já são cinco semanas seguidas em que estamos com esse número acima de mil.

E um bebê de sete meses é a vítima mais jovem de covid-19 no país. Foi em Montes Claros (MG).

O cacique yawalapiti Aritana, uma das principais lideranças do Parque Indígena do Xingu, foi diagnosticado com covid-19 e estava para ser internado enquanto editávamos esta edição da newsletter. No sábado, o cacique Raoni também foi internado, mas com um quadro de hemorragia digestiva.

CADA VEZ MAIS PRECÁRIO

Em reunião do G20 no sábado, o representante brasileiro pelo Ministério da Economia teceu autoelogios ao país. O secretário de Assuntos Econômicos Internacionais, Erivaldo Gomes, disse que as respostas brasileiras estão sem dúvidas mitigando o impacto econômico da covid-19 e que “a atividade econômica e a confiança começaram a se recuperar de níveis muito baixos”, mas ainda deve haver desempenho abaixo do “esperado” por um longo período.

E põe longo nisso. Na sexta, o IBGE divulgou dados mostrando que a taxa de desemprego acelerou no fim de junho, chegando a 13,1%. Mais 1,5 milhão de vagas de trabalho foram fechadas e 522 mil empresas suspenderam suas atividades ou fecharam. A reabertura não está ajudando nisso – o que, aliás, não é surpresa. O fato de comércio e restaurantes estarem abertos não significa que as pessoas vão continuar consumindo na mesma frequência de antes, seja porque ainda há gente que prefere não sair de casa, seja porque as famílias perderam renda e não têm o que gastar. Na Folha, o economista da FGV Rodolpho Tobler ressalta que, nos lugares onde houve mais mortes, a recuperação econômica é pior. 

Quem continua se dando bem por aqui são as empresas de aplicativos de entrega. Há fila de espera para se tornar entregador, diz o Estadão. No iFood, de março a junho foram 480 mil novos cadastros, e a plataforma não deu conta de absorver todo mundo. O número é mais que o triplo da quantidade de entregadores registrados em fevereiro (131 mil).

E, em São Paulo, imigrantes que trabalham em confecções estão sobrevivendo em condições ainda mais precárias do que antes. Com a redução das encomendas de roupas, eles começaram a se concentrar em fazer máscaras e aventais descartáveis. O preço desses produtos nas lojas disparou, mas, para quem produz, não param de cair. Segundo costureiras ouvidas pela Folha, no geral se paga R$ 0,10 por máscara e R$ 0,40 por avental. Organizações que promovem o trabalho digno no setor têxtil calculam que o pagamento justo deveria ser até 30 vezes mais alto. Além de trabalharem o dia inteiro, as pessoas nem têm garantia de que vão receber o pagamento: “uma família boliviana levou calote depois de confeccionar 12 mil máscaras, e outro grupo de trabalhadores paraguaios confeccionou 10 mil máscaras e 10 mil aventais em março e até hoje não recebeu pagamento”, lista a matéria. “Tem dia que trabalhamos das 6h30 até as 4h do dia seguinte, com um descanso de 20 minutos”, relata Lidia Garcia,  uma costureira boliviana que trabalha em casa com o marido e os filhos. O pagamento mal cobre os custos da energia elétrica necessária para manter as máquinas de costura funcionando.

PEDIDO

A ONU dobrou seu pedido feito em maio, e solicitou US$ 10,3 bilhões para ajudar os países de baixa renda a lidar com os efeitos diretos e indiretos da pandemia. Segundo o novo Plano de Resposta Humanitária Global, na verdade o custo para proteger os 10% mais pobres da população global seria de US$ 90 bilhões, nove vezes mais. Mesmo esse valor seria apenas 1% dos pacotes já anunciados pelos países ricos para proteger seus próprios cidadãos. O que as Nações Unidas conseguiram levantar até agora é apenas uma fração dessa fração: US$ 1,7 bilhão. “Os países ricos jogaram fora o livro de regras quando se trata de proteger suas próprias economias. Eles devem aplicar as mesmas medidas excepcionais aos países que precisam de ajuda. A resposta deles foi grosseiramente inadequada quando se trata de ajudar os países mais pobres, e isso é perigosamente míope”, disse à imprensa o coordenador de assistência de emergência da ONU, Mark Lowcock. 

E QUANDO ACABAR?

Nos últimos quatro meses, o SUS ganhou quase 10 mil leitos de UTI, algo que nunca tinha acontecido Em muitos estados, o aumento não foi rápido o suficiente para salvar as vidas que poderiam ser salvas. Mas, nas regiões onde a crise parece arrefecer, e no país como um todo no dia em que a pandemia acabar, ainda é preciso pensar o que vai ser feito com  equipamentos como respiradores, tomógrafos e aparelhos e hemodiálise. É uma chance e tanto para acabar com as internações de corredor, diz a matéria do Estadão. Mas ainda não se sabe como isso vai ser gerido. 

“O Brasil não teve uma política hospitalar, desde a implementação do SUS, para promover uma melhoria da qualidade da atenção hospitalar no país. Esses equipamentos são uma parte da possibilidade de se ter uma melhora de estrutura de resposta do sistema de saúde”, diz, no Estadão, o médico Adriano Massuda, doutor em Saúde Coletiva e professor da FGV.  No entanto, ressalta ele, a outra “parte” seria ter uma política de distribuição desses equipamentos para as regiões onde eles são mais necessários, além de uma política para formação e qualificação profissional. “Para que esse legado não vire um elefante branco, esses recursos têm de ser dirigidos para uma política que vá inserir esses leitos no sistema com profissionais habilitados e integração da rede”, diz. 

O Ministério da Saúde não respondeu o que pretende fazer. E, para Massuda, o governo federal não tem “nem condição técnica de fazer essa discussão”: “o grau de degradação das equipes técnicas no Ministério da Saúde foi tamanha que hoje ele não dá conta”.

O CASO DO DESEMBARGADOR

O desembargador Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira, do Tribunal de Justiça de São Paulo, caminhava sem máscara na orla de Santos, onde o uso dessa proteção é obrigatório. Flagrado, não pensou duas vezes antes de dar uma violenta carteirada: aparece em vídeo telefonando para o  Secretário de Segurança Pública do município, Sérgio Del Bel; chamando de analfabeto o guarda civil que o abordou; e ainda rasgando e jogando no chão a multa aplicada – que era de R$ 100. À GloboNews, Siqueira disse que o vídeo foi tirado de contexto e editado, fazendo com que, em vez de vítima, ele parecesse um vilão…

O corregedor nacional de Justiça, ministro Humberto Martins, determinou a abertura de uma investigação e intimou o desembargador para que preste informações em até 15 dias.

MUITO MAIS ARMADOS

Nos últimos dez anos, houve um aumento de 601% na quantidade de novos armamentos nas mãos de cidadãos comuns, segundo um levantamento do jornal O Globo com base em dados da Polícia Federal. Em 2009, 8.692 novas armas foram registradas, contra 60.973 no ano passado. E ninguém há de ficar surpreso com o aumento específico durante no governo Jair Bolsonaro: em relação a 2018, o aumento de novos registros em 2019 foi de 64%. Em 2020, até abril, já foram 33.776, mais da metade de todos os registros feitos no ano passado.

A reportagem lembra medidas recentes do governo que facilitam a posse.  A legislação prevê esse direito, no caso dos cidadãos comuns, quando há a comprovação da “efetiva necessidade”. Antes de Bolsonaro, agentes da PF precisavam analisar essa necessidade, mas a partir de meados do ano passado a autodeclaração do solicitante passou a ser suficiente. “Não é só isso”, diz advogada Isabel Figueiredo, integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública: “Tem outros ingredientes (que vieram com os decretos), como o aumento da quantidade e de tipos de armas que cada pessoa pode ter e o aumento de acesso à munição. Também não podemos esquecer o discurso pró-armas, de político fazendo arminha com a mão”.

EM NÚMEROS

Um levantamento do TCU informa que o número de militares que ocupam cargos civis no governo federal mais que dobrou desde o início da gestão Jair Bolsonaro. O número passou de 2.765, em 2018, para 6.157 em 2020, considerando os da ativa e da reserva. Pelas contas da Folha, o crescimento foi de 33% quando se consideram só os da ativa. Nas gestões Fernando Henrique, Lula e Dilma, essa atuação era quase totalmente restrita a três órgãos: o Ministério da Defesa (sempre chefiado por um civil), a Vice-Presidência e a Presidência da República, mais especificamente o Gabinete de Segurança Institucional. No governo Temer eles começaram a pipocar em outras pastas, como a Fazenda, e pela primeira vez em décadas foi colocado um militar no comando da Defesa. Quando ele passou a faixa a Bolsonaro, havia 1.925 militares da ativa do Exército, Marinha e Aeronáutica em cargos de confiança no governo. Hoje, são 2.558, em ao menos 18 órgãos, entre eles Saúde e Economia.

QUASE ADULTOS

Ainda sobre a polêmica da reabertura de escolas, um estudo realizado na Coreia do Sul confirma a necessidade de pensar estratégias diferentes para faixas etárias diferentes. Os pesquisadores verificaram que crianças com menos de dez anos tinham aproximadamente metade das chances de espalhar o vírus do que os adultos; mas, para aquelas entre 10 e 19 anos, a chance de transmissão é quase tão alta quanto a de adultos. Não se sabe exatamente por que isso acontece, nem porque alguns países reabrem escolas e não enfrentam nenhum problema a partir daí (como Dinamarca e Finlândia) e outros abrem e depois voltam a fechá-las (como a China). Uma limitação do estudo é que só foram analisadas crianças doentes, ou seja, sintomáticas. Não se sabe qual o papel das assintomáticas na transmissão. A recente recomendação de um painel de cientistas e educadores sobre a necessidade de retomar o ensino presencial para crianças pequenas e com necessidades especiais, apresentada na semana passada, permanece a mesma, segundo Caitlin Rivers, epidemiologista da Escola de Saúde Pública Johns Hopkins e membro do painel.

RECONTAGEM

Mais uma nação decidiu suspender sua contagem diária das mortes pelo novo coronavírus. Dessa vez, foi o Reino Unido. Aconteceu depois que os dados oficiais foram questionados por pesquisadores da Universidade de Oxford – mas a suspeita não é de subnotificação, e sim o contrário disso. Os autores criticam o fato de que, na Inglaterra se alguém tem o diagnóstico de covid-19, se recupera, e morre meses depois por outra causa, esse óbito ainda entra como óbito pelo coronavírus. Mas na Escócia e na Irlanda do Norte, por outro lado, há um limite de 28 dias para isso.

Imagem: Aroeira

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