Testagem, volta às aulas e estruturação da atenção básica são desafios da vigilância em saúde

No Informe Ensp

O ex-secretário de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, Wanderson Kleber de Oliveira, apontou que a pandemia de Covid-19 está estabilizada em níveis altos de transmissibilidade no país, o que considera “preocupante”. O epidemiologista listou vários desafios para a vigilância, que passam pela capacidade de testagem e qualidade dos testes, o monitoramento de casos, a transmissibilidade, a mudança nas recomendações das autoridades sanitárias, a proteção dos profissionais na linha de frente, a volta às aulas, a comunicação de risco, além do papel e capacidade da atenção primária.

Todos esses temas foram debatidos durante o Centro de Estudos Miguel Murat de Vasconcellos da ENSP (Ceensp), “Desafios e potencialidades da vigilância em saúde e contribuições da avaliação em tempos de Covid-19”, transmitido ao vivo pelo Canal da Ensp no dia 22 de julho. A atividade foi mediada pela coordenadora do Laboratório de Avaliação de Situações Endêmicas Regionais do Departamento de Endemias Samuel Pessoa (Laser/Densp/ENSP), Angela Casanova.

A mediadora iniciou apontando que a atenção primária é pouco valorizada em seu papel na vigilância dos casos de Covid-19, e mencionou também a organização comunitária que vem se configurando nos territórios e exercendo vigilância ativa. A atenção primária tem, como ressaltou, capacidade diagnóstica e logística para monitoramento da pandemia. Ela lembrou do caráter flexível da vigilância. “A vigilância exige uma atuação que precisa ir se revendo e ajustando de acordo com as experiências ao longo da pandemia”, afirmou.

Wanderson de Oliveira destacou, durante o painel, que teve 841 visualizações e 136 participações simultâneas, que uma pauta essencial no momento é a discussão de protocolos de convivência, especialmente para a volta às aulas. “Temos uma geração prejudicada no seu tempo de escolaridade. Precisamos discutir o problema. É necessária uma política de testagem para que possamos identificar qual o momento de abrir [as escolas]. No entanto, temos tido processos muito erráticos”, comentou.

Vacina não tão próxima

“Precisamos ter um alinhamento entre uma estratégia de testagem de sintomáticos, isolamento destes e das pessoas da família”, argumentou. O epidemiologista observou que as primeiras gerações de testes tendem a ser menos precisos, e, na medida que se avança com a disponibilidade de testes, eles tendem a ser mais precisos. “No momento, os testes sorológicos são instrumentos de vigilância, não de diagnóstico individual”, explicou. Wanderson, que deixou o cargo na secretaria Nacional de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde em abril, afirmou ainda que existe uma imprecisão na base de dados da pandemia no país, uma vez que há uma dissociação entre a capacidade operacional (pela quantidade e distribuição dos testes) e o perfil epidemiológico. “Mesmo assim é possível estimar a situação epidemiológica por amostragem. Na comparação com outra situação, em campanhas eleitorais, também nem todo mundo é entrevistado”, exemplificou.

O número de testes por milhão de habitantes feito no Brasil até agora foi de 23.096, como mostrou Wanderson em sua apresentação. A Austrália, em comparação, apresentou índice de mais de 138 mil testes por milhão de habitantes, e os Estados Unidos, 148 mil testes por milhão. Na América do Sul, um país que testou muito foi o Chile, com cerca de 74 mil testes por milhão.

O epidemiologista destacou ainda em sua apresentação que ainda existem questões não totalmente esclarecidas quanto à história nacional da doença. Uma delas é se existiria um padrão sazonal comparável ao da gripe. “O que vai acontecer nas próximas semanas na Região Sul do país é determinante para saber se há padrão de sazonalidade no covid-19”, afirmou Wanderson, ressaltando que há indícios, baseado no padrão que a epidemia apresentou até agora no estado do Amazonas. “O que aconteceu no Amazonas, que já tem a rede [de assistência] prejudicada, e uma demanda inflada por leitos por receber fluxos migratórios, está ligado à sazonalidade”, declarou.

A comunicação de risco nessa pandemia é fundamental, mas foi feita de maneira truncada até agora, na opinião de Wanderson. No caso da recomendação do uso de máscaras – inicialmente a orientação era de que elas fossem utilizadas apenas por profissionais de saúde – por exemplo, isso confundiu o público leigo. Ele acredita também que a grande mídia está sendo precipitada quando trata a vacina como estando bem próxima. “A emergência está impulsionando a inovação. Mas, uma coisa é ter a vacina, outra é ter a vacina para todos. Não acredito que tenhamos uma vacina para todos que precisam antes do segundo semestre de 2021”, disse ele, para quem “a vacina está muito longe do cidadão médio”.

Além disso, existem questões geopolíticas implicadas, que exigem uma uma pressão social internacional. “Se tivermos uma corrida pela vacina, o Brasil já entra perdendo. É necessário um advocacy para que as patentes sejam abertas, e a discussão de uma Câmera de Preços para a aquisição de insumos em tempos de escassez. Em outro caso, esse tipo de disputa mercadológica e política ´é irracional´”, declarou. Na visão do epidemiologista, há um aspecto positivo no enfrentamento da pandemia. “A população está considerando a opinião e tendo confiança no profissional de saúde. A credibilidade é uma ferramenta que temos”, avaliou.

Vigilância comunitária

A busca ativa de casos é fundamental para a detecção precoce dos doentes e a tomada de medidas preventivas contra a disseminação do vírus, principalmente entre aqueles que apresentam sintomas mais brandos. “A atenção básica, com sua estrutura capilar e proximidade com os usuários, fornece o campo ideal para a vigilância ativa”, ressaltou o pesquisador do Densp, André Perissé.

No Rio de Janeiro, onde 60 a 70% da população do Rio de Janeiro é dependente exclusivamente do SUS, a atenção básica tem limitações em cumprir esse papel, como afirmou André. “A reestruturação da atenção básica no Rio de Janeiro na verdade foi uma desestruturação”, disse ele, recomendando que a vigilância deve ser “sólida, ampla e com transparência na disponibilização dos dados”. “O município do Rio de Janeiro, por exemplo não divulga dados de capacidade de leitos em enfermarias ou UTIs”, lamentou.

De acordo com os dados do estudo Boletim Socioepiemiológico da Covid-19 nas favelas, publicado pela Fiocruz, a letalidade da doença foi mais alta em áreas com maior concentração de favelas no Rio de Janeiro. Por outro lado, a taxa de incidência nos bairros sem favelas ou com concentração baixa de favelas dentro do seu território foi muito mais alta. O pesquisador, a discrepância na letalidade pode apontar para uma desigualdade no acesso à testagem e consistem em desafios para vigilância.

Como ligar a vigilância oficial e a vigilância comunitária e popular? A pergunta foi lançada por André, que mencionou iniciativas cariocas como o painel de casos em favelas do jornal Voz das Comunidades, o boletim De Olho no Corona, elaborado pela organização redes da Maré, o painel #CoronaNasFavelas COVID-19 Maré, uma parceria entre organizações da Maré e a rede estadual e municipal de saúde, e também o grupo de Whatsapp Coronazap, que faz o monitoramento de sinais e sintomas da doença entre moradores do Borel. Os painéis, sites e grupos, segundo o epidemiologista, caracterizam um estrutura de vigilância próxima do território, e demonstram a existência e elaboração de uma tentativa de se fazer vigilância fora do sistema oficial de vigilância. Para o pesquisador, experiências como essa devem ser valorizadas e estudadas.

Avaliação

O epidemiologista destacou também a articulação da favela de Paraisópolis, na capital paulista, onde foram instituídas as figuras dos “presidentes de rua”. Nelas, uma pessoa fica responsável por 50 casas, para alertar sobre sintomas, prevenção, e até levar os doentes até a assistência. A comunidade apresentou níveis mais baixos de mortalidade e letalidade por Covid-19 do que outras áreas carentes. “É um bom estudo de caso dessa possibilidade de integração. Demonstra solidariedade, articulação, isso tudo tem um custo e depende de financiamento também. Existe uma forte participação de pessoas muito jovens”, observou.

A coordenadora do Densp, Gisela Cardoso, ressaltou a articulação entre a avaliação em saúde e vigilância. “Formalmente a avaliação deve direcionar os gestores. A avaliação consiste fundamentalmente em fazer um julgamento de valor a respeito de uma política, procedimento ou intervenção com o objetivo de ajudar na tomada de decisões”. Ela lembrou que as intervenções respondem a diferentes necessidades de um grupo. “A avaliação dos efeitos das intervenções têm que ser dialógicas. O que é importante para o gestor não necessariamente é o mais importante para o profissional de saúde, para um familiar de um doente, etc”. Por isso, para Gisela, é importante tentar compor para que as intervenções e as avaliações façam sentido para todos. Ela reforçou que, com impactos coletivos, a avaliação é uma atividade política, assim como a vigilância. “Vigilância é um posicionamento político”.

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