Esplanada da Morte (V) — Por que Ricardo Salles e sua “boiada” continuam passando?

Ministro resiste à pressão por sua saída porque é sustentado por setores econômicos, mostram especialistas ouvidos pelo De Olho nos Ruralistas; mas também pela lealdade discreta a Bolsonaro, o primeiro fiador dos projetos de destruição do ambiente

Por Sarah Fernandes, em De Olho nos Ruralistas

— Bolsonaro procurou um ministro que cumprisse suas ordens de destruir agenda ambiental e é isso que ele está fazendo. Trata-se de desfazer tudo o que um dia deu certo na área ambiental.

— Bolsonaro não quer ministros que causem nele um eclipse. Mas existe uma questão econômica por trás. Por enquanto, o capitalismo interno ligado ao agronegócio não viu desvantagens de termos um ministro do Meio Ambiente que não defende o meio ambiente. Ao contrário: sua postura beneficia certos grupos e isso o ajuda a se manter no cargo.

A primeira avaliação acima é de Márcio Astrini, por muitos anos coordenador de políticas públicas do Greenpeace, hoje secretário-executivo do Observatório do Clima. A segunda foi feita pela gerente de projetos da organização Transparência Brasil, Marina Atoji.

Os motivos da permanência de Ricardo Salles à frente do Ministério do Meio Ambiente se sobrepõem. A postura discreta, sem chamar atenção para si, descrita por Marina, vai ao encontro do gosto do presidente Jair Bolsonaro. Que, aponta Astrini, encomendou exatamente os serviços prestados. Mas Marina acrescenta: o ministro representa determinados setores econômicos. Ou seja: Ricardo Salles não representa apenas Ricardo Salles.

Em nome de quem, portanto, ele falava na famosa reunião ministerial do dia 22 de abril, quando ele cunhou a expressão que ficou conhecida como “passar a boiada“?

Salles é o quinto retratado da série Esplanada da Morte. Os primeiros a serem perfilados foram o ministro da Economia, Paulo Guedes; o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Marcelo Xavier; a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves; e o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo.

Naquele vídeo de abril, divulgado a mando do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro afirmava que o período da pandemia seria ideal para passar projetos “infralegais”, de “simplificação” e “desregulamentação” de leis ambientais. Ele convidou os ministros para ir “passando a boiada”, “mudando todo o regramento”, já que, na visão dele, a imprensa estava com toda atenção voltada à escalada do novo coronavírus.

Naquele dia o Brasil tinha 45 mil casos e quase 3 mil mortos pela doença. A escalada continuou: neste domingo (02) o país chegou a 2.733.677 casos (61 vezes mais que no dia 22 de abril) e 94 mil mortos, mais de trinta vezes mais que na tarde da reunião.

Só que não necessariamente a imprensa se manteve distraída em relação ao enfraquecimento da legislação ambiental.

Em parceria com o Instituto Talanoa, a Folha mostrou que, entre março e maio, o Executivo federal publicou 195 portarias, instruções normativas, decretos e outras normas sobre temas ambientais no Diário Oficial, contra 17 atos publicados nos mesmos meses de 2019. Doze vezes mais: “Governo acelerou canetadas sobre meio ambiente durante a pandemia“.

PROJETO DE DESTRUIÇÃO NÃO ESTÁ SÓ NAS MEDIDAS FURTIVAS

E esse não foi o único aspecto do desmonte. Márcio Astrini enumera outros itens relacionados a essa política de destruição: “É o enfraquecimento da legislação, a diminuição da transparência dos dados, as tentativas de invalidar multas ambientais, o enfraquecimento do Ibama e do ICMBio e o fim da inutilização de máquinas usadas em desmatamentos”. Ele se refere ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis e ao Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade.

Em fevereiro de 2019, entrevistado pelo Roda Viva, Salles falou sobre Chico Mendes, símbolo internacional da defesa do ambiente: “É irrelevante, que diferença faz quem é Chico Mendes neste momento?” Sua versão sobre  o assassinato do seringueiro foi a mesma dos perseguidores do sindicalista: “Versão do ministro Ricardo Salles coincide com a dos assassinos de Chico Mendes“.

Astrini destaca ainda a articulação de Salles para aprovar a Medida Provisória nº 910, editada no ano passado por Bolsonaro para anistiar grandes e médias propriedades por invasão de terras públicas. Após o prazo de votação na Câmara estourar, a MP da Grilagem foi remodelada no Projeto de Lei (PL) nº 2633/2020, defendido pela bancada ruralista.

Ou seja, o projeto de desmonte vai muito além de medidas “infralegais”. Não é que Salles e Bolsonaro façam coisas apenas na surdina. E essa política ostensiva repercute mundialmente, como observa o representante do Observatório do Clima:

— Enquanto o mundo se importa cada vez mais com a questão ambiental, as políticas brasileiras hoje não são mais nem motivo de indignação. O Brasil virou pária. Só não é insignificante porque atrapalha.

Durante a pandemia, e antes dela, Salles tem se mostrado um defensor dos interesses do agronegócio e da bancada ruralista, mesmo que para isso precise demitir funcionários ou reduzir a atuação do seu próprio ministério, dois assuntos que ganharam destaque no debate nacional nos últimos meses.

Após a divulgação da reunião de abril, em maio, esses setores não demoraram a manifestar apoio ao ministro, como contou este observatório: “Financiadores da bancada ruralista publicam anúncio em ‘total apoio’ a Ricardo Salles“. Industriais paraenses também deram seu aval: “Em carta aberta, industriais paraenses apoiam o “passar a boiada” de Ricardo Salles“.

Para Astrini, mesmo que parte do setor do agronegócio comece a sofrer sanções devido ao aumento do desmatamento, ainda assim a gestão Salles deve ser pouco atingida. Sobretudo porque as sanções atingiriam parte específica dos grandes produtores brasileiros, sobretudo os que comercializam com a Europa. “Os mercados da Ásia não têm tanto essa preocupação”, diz. “A perda de receita não é necessariamente um problema, porque não há qualquer preocupação com o país, sob qualquer ótica”.

SOCIEDADE CIVIL E GOVERNADORES FORAM EXCLUÍDOS DAS DECISÕES

Marina Atoji, da Transparência Brasil, identifica um fato que considera “extremamente preocupante”: desde que tomou posse do cargo, Salles adotou um discurso e realizou ações administrativas que fazem tudo para enfraquecer transparência sobre as informações ambientais, principalmente dados públicos sobre desmatamento e queimadas. “Ele está derrubando um dos pilares da democracia, que é o acesso à informação”, avalia Marina.

“Além disso, há um sufocamento da participação da sociedade civil em processos de decisão, sobretudo com os indígenas e as outras populações tradicionais”. Esse ponto se assemelha ao que está fazendo a ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, conforme a terceira reportagem da série Esplanada da Morte: “Esplanada da Morte (III): deboche de Damares esconde ataques a povos vulneráveis“.

Em maio, quando se completavam dois meses de pandemia, conforme a declaração feita pela Organização Mundial da Saúde (OMS) no dia 11 de março, De Olho nos Ruralistas analisou o que Salles tinha feito naquele período. Com quem ele tinha se encontrado, o que estava em sua agenda: “Do descaso ao desmatamento: saiba o que fez Ricardo Salles nos dois meses de pandemia“.

Mesmo com a aceleração de novos casos de Covid-19, o ministro concentrou grande parte do seu tempo em atividades descritas como remotas em sua agenda oficial, sem qualquer detalhamento.

Foi em atividades como essa que ele articulou, em fevereiro, a reativação do Conselho Nacional da Amazônia Legal, passando seu comando para o vice-presidente, Hamilton Mourão, e excluindo a participação de governadores. O órgão tem o papel de coordenar as políticas federais para a Amazônia.

Nenhum representante do Ibama, da Funai e de outras instituições de proteção ao ambiente fazem parte do conselho. Salles indicou nomes de sua confiança para integrar o órgão, como os assessores especiais Joaquim Álvaro Pereira Leite e Lúcia Helena Amorim de Oliveira e o secretário André Pitaguari Germanos, que forneceu R$ 15 mil para a frustrada campanha de Salles a deputado federal em 2018, pelo Partido Novo, do qual foi expulso, em 5 de maio.

Na prática, essas mudanças significam que o desmatamento da Amazônia deixou de ser uma responsabilidade do Ministério do Meio Ambiente. “É muito preocupante porque o debate sai das mãos de órgãos especializados, deixa de ter participação da sociedade civil e assim se enfraquece a política ambiental como um todo”, diz Marina.

DEMISSÕES TAMBÉM FORAM MEDIDAS EXPLÍCITAS

Outro ponto crítico na gestão Salles é o controle excessivo sobre os servidores do ministério. Em março, o presidente do Ibama, Eduardo Bim, chegou a publicar uma portaria restringindo o contato de funcionários do órgão com a imprensa, delimitando que ele deveria ocorrer apenas por intermédio do departamento de comunicação.

“São mecanismos de mordaças em servidores, além de orientações que os constrangem a dar entrevistas, mesmo que técnicas”, critica Marina. “Há oito meses o Ministério do Meio Ambiente não divulga dados sobre áreas embargadas por crimes ambientais”.

A perseguição a servidores já ocorria no período em que Salles era secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo: “Justiça diz que Ricardo Salles perseguiu servidores para cometer e encobrir irregularidades“.

Em 6 de abril, quando a pandemia já crescia exponencialmente no país, o ministro demitiu o coordenador-geral de monitoramento de Biodiversidade e Comércio Exterior do ministério, André Sócrates de Almeida Teixeira, após ele ter se posicionado publicamente contra a exportação de madeira ilegal.

No mesmo dia o ministério publicou um despacho que anistiava acusados de desmatamento e incêndios na Mata Atlântica ocorridos até julho de 2008. Além disso, liberava trechos do bioma que eram Área de Preservação Permanente (APP) e cancelava milhares de multas e infrações contra desmatadores. O Ministério Público Federal (MPF) pediu a anulação do despacho.

Em 12 de abril, um domingo, o programa Fantástico, da Rede Globo, mostrou agentes do Ibama autuando e destruindo garimpos ilegais em terras indígenas, durante uma megaoperação no sul do Pará. Dois dias depois, Salles exonerou o responsável pela operação, Olivaldi Azevedo, que era diretor de Proteção Ambiental do Ibama. A atitude foi, mais uma vez, questionada pelo MPF.

“Não conseguimos identificar as razões dessas exonerações”, afirma Marina. “Isso é preocupante porque elas aconteceram imediatamente após ações que contrariam discurso do ministro e do presidente. Eles têm competência legal para fazer exonerações, mas não podem fazê-las sem justificativas”.

Ainda em abril, no dia 30, Salles usou a caneta mais uma vez e demitiu dois chefes de fiscalização do Ibama: Renê Luiz de Oliveira, coordenador-geral de fiscalização ambiental, e Hugo Ferreira Netto Loss, coordenador de operações de fiscalização. Ambos haviam participado da operação noticiada pelo Fantástico.

“Ao que parece, Salles demite quem quer trabalhar e fazer cumprir a lei, porque a legislação ambiental é algo que atrapalha esse governo”, diz Márcio Astrini. “Camuflar dados faz parte da prática do governo. Vamos lembrar que esse é o governo que criticou e colocou em dúvida dados do IBGE que mostraram aumento do desemprego e demitiu o presidente do Inpe, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, que divulgou dados sobre desmatamento.”

MINISTRO REUNIU-SE COM EXECUTIVOS DA VALE E DA BAYER

As demissões no Ministério do Meio Ambiente ocorriam já no ano passado, ainda atreladas aos altos funcionários de comando dos órgãos de fiscalização ambiental, como o Ibama e o ICMBio. No lugar deles, entraram militares. Para completar, um decreto presidencial autorizou uso de Forças Armadas em reservas e terras indígenas da Amazônia, tornando a ação dos militares mais abrangente que a dos órgãos de controle.

Parte importante do tempo do ministro, quando sua agenda oficial permite identificar o que ele fez, foi destinado a reuniões com representantes de empresas como Vale S.A., Bayer e Volkswagen, além de viagens para conversas a portas fechadas com investidores, em Washington, Nova York, Paris e Berlim. Muitas delas ocorreram em concomitância com o aumento acelerado de queimadas e desmatamento na Amazônia, simbolizadas pelo Dia do Fogo, em agosto de 2019.

Entre março e maio, período de aceleração de novos casos de Covid-19 no Brasil, Salles dedicou dezoito dias úteis para despachos internos e atividades remotas, sem maiores detalhes. Durante esse período, o presidente do Ibama, Eduardo Bim, reviu uma decisão de um grupo técnico do órgão e liberou para exploração de petróleo parte do arquipélago de Abrolhos — um parque nacional marinho que abriga enorme variedade de espécies.

Em 1º de abril, 29 mil quilômetros quadrados compreendendo sete blocos de petróleo foram liderados para serem leiloados. Os leilões, no entanto, foram adiados.

Dez dias depois foi divulgado um aumento de 30% do desmatamento no primeiro trimestre do ano, em comparação com o ano passado, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

MÁRCIO ASTRINI: ‘ELE SÓ SAIRÁ POR QUESTÕES JURÍDICAS’

Durante sua campanha à Presidência da República, Jair Bolsonaro anunciava aos quatro ventos uma mudança estrutural na política ambiental do país: fundir o Ministério do Meio Ambiente ao da Agricultura. Como se tornou comum, Bolsonaro voltou atrás após medir a temperatura da opinião pública sobre a decisão e acabou nomeando, em 19 de dezembro de 2018, o último ministro do seu governo: Salles.

Algumas horas depois, ele já estava envolvido em sua primeira crise como ministro: a Justiça de São Paulo o condenou por improbidade administrativa por fraudar processo do Plano de Manejo da Área de Proteção Ambiental da Várzea do Rio Tietê, em 2016, quando era secretário de Meio Ambiente no governo de Geraldo Alckmin (PSDB). A decisão da 3ª Vara da Fazenda Pública da capital determinou a suspensão dos direitos políticos de Salles por três anos, além do pagamento de multa.

Salles recorreu e Bolsonaro não teve constrangimento em manter sua indicação, apesar de alguns pedidos de liminares na Justiça para tentar barrar a nomeação. Foi assim que o advogado paulistano de 45 anos assumiu a pasta.

Um ano e meio depois, ele se mantém no cargo exatamente por ter aberto a porteira sem pudores. “Salles não cai porque não se constrange de fazer o serviço dado a ele: destruir o meio ambiente”, insiste o secretário-executivo do Observatório do Clima, Márcio Astrini. “Fazer uma boa gestão não faz parte do plano”.

Astrini observa que Salles não tem apego ao tema que dirige, tanto que sua única passagem pela área ambiental foi no governo de Alckmin, do qual saiu com uma condenação por fraude ambiental. “Ele só sairia por questões jurídicas, como o julgamento em segunda instância desse caso de São Paulo”.

GUERRA IDEOLÓGICA TEVE BALÃO DE ENSAIO EM SÃO PAULO

Salles já havia trabalhado no governo Alckmin antes de ser secretário. Em 2013, foi nomeado pelo então chefe do Executivo paulista para ser seu secretário particular. Dois anos antes ele tinha sido um dos fundadores do Movimento Endireita Brasil, um grupo político alinhado com defensores de primeira ordem do impeachment de Dilma Rousseff.

Na época ele também se posicionou publicamente contra o casamento gay e chamou o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) de grupo “criminoso”. Não à toa, ele se perfila ao lado dos ministros mais ideológicos do governo Bolsonaro, como Damares Alves e Ernesto Araújo: “Esplanada da Morte (IV) — Ernesto Araújo internacionaliza negacionismo e ódio“.

Em plena era petista, durante a gestão de Dilma como presidente da República, Salles afirmou ainda que o PT havia levado “terroristas” ao governo. As declarações soaram tão mal que integrantes do próprio PSDB chegaram a pedir sua saída, não acatada pelo governador. Salles se manteve no cargo até 2014.

Seu retorno ao governo ocorreu em 2016, como secretário do Meio Ambiente. Um mês depois, sem grande repercussão na imprensa, Salles suspendeu convênio com organizações do terceiro setor, exigindo uma análise preliminar de todas as despesas de contratos acima de R$ 117,7 mil. Na prática, essa resolução significou a interrupção de serviços considerados de extrema importância, como a elaboração de planos de manejo de áreas de conservação e fiscalização de políticas de compensação ambiental, inclusive para obras de grande impacto.

Na mesma época ele decidiu manter em sigilo dados de proprietários rurais no Cadastro Ambiental Rural (CAR), alegando que informações dos cidadãos são protegidas pela Constituição.

A situação de Salles começou a se complicar em 2017, quando passou a ser investigado pelo Ministério Público de São Paulo em três inquéritos de improbidade administrativa. O primeiro deles diz respeito a um chamamento público, sem autorização legislativa, para conceder ou vender 34 áreas do Instituto Florestal. O segundo foi motivado pela negociação do imóvel onde fica a sede do Instituto Geológico, na capital paulista.

Foi só na terceira investigação que Salles se tornou réu. Ele foi alvo de uma ação de improbidade administrativa por ter alterado a proposta de zoneamento do plano de manejo da Área de Proteção Ambiental da Várzea do rio Tietê, em um modelo que, segundo a denúncia, beneficiou indústrias da região.

Essa história também diz respeito a uma empresa muito específica: “Ricardo Salles beneficiou Suzano em São Paulo; futuro ministro é acusado de fraude ambiental“.

Imagem principal: Baptistão

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