Em sete meses, gestão Crivella executou 36,4% dos recursos do PNAE repassados pelo governo federal, o que representa 14% do valor liquidado em todo o ano de 2019; movimento de pais e mães diz que maioria dos 650 mil alunos recebeu apenas uma cesta básica na pandemia
Por Mariana Franco Ramos, em De Olho nos Ruralistas
A prefeitura do Rio de Janeiro executou somente 36,4% dos recursos repassados pelo governo federal ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) em 2020. Dos R$ 50,8 milhões recebidos até 31 de julho, a gestão Marcelo Crivella (Republicanos) liquidou R$ 18,5 milhões. Os dados são do Sistema de Informações Gerenciais (SIG) da Controladoria Geral do Município.
Se forem incluídas todas as fontes que custeiam a despesa com merenda, chega-se a R$ 25,9 milhões. A título de comparação, o montante representa 14% do valor executado em todo o ano de 2019. Com 1.540 escolas e quase 650 mil estudantes, a rede municipal do Rio é a maior da América Latina, abrangendo em torno de 10% da população da capital fluminense. Fontes ouvidas por De Olho nos Ruralistas esperavam que, no início do segundo semestre de 2020, o percentual já tivesse ultrapassado 50%.
Para a secretária executiva do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, Mariana Santarelli, a situação preocupa, uma vez que os efeitos sociais e econômicos da pandemia de Covid-19 aumentaram a vulnerabilidade das famílias. “Prefeituras e governos estaduais estão com dinheiro na conta para distribuir alimentos e não fazem”, afirma. “Isso a gente vivendo essa situação de pobreza e fome, principalmente entre a população negra e periférica”.
PROFESSORES FIZERAM VAQUINHAS PARA CONTORNAR PROBLEMA
Sancionada em 7 de abril de 2020, a lei 13.987 autoriza a distribuição de alimentos adquiridos com recursos do PNAE a pais, mães ou responsáveis da rede pública de ensino em casos de calamidade pública, mesmo diante da suspensão das aulas presenciais. A aprovação foi uma reivindicação de mais de 150 organizações, que escreveram uma carta-manifesto em defesa do direito à saúde e à alimentação da população brasileira.
O texto ressalta que os povos indígenas, os negros, os que vivem em regiões favelizadas e periféricas e as mulheres sentirão de forma mais grave os impactos deste período. “A pandemia revela também, a urgência de saídas que coloquem a vida e a dignidade humana no centro das decisões e políticas públicas”, diz o manifesto.
De acordo com o Movimento de Mães, Pais e Responsáveis pela Escola Municipal Carioca (MovEM-Rio), 400 mil dos 650 mil alunos cariocas foram atendidos, mas só receberam uma cesta básica em quatro meses. “A gente tem certeza que essas pessoas estão passando necessidade”, diz Luciana Perez, integrante da organização.
Em debate promovido na semana passada pelo mandato do vereador Renato Cinco (PSOL), ela afirmou que professores estão se unindo em vaquinhas para ajudar estudantes vulneráveis. “Não é possível que a prefeitura não enxergue essa necessidade”.
Na avaliação de Luciana, o governo não cuida e não se preocupa com a vida das pessoas. “Quatro meses depois, as crianças continuam sem um planejamento digno e uma organização capaz de suprir as necessidades alimentares dessas crianças”, opina. “As pessoas estão se humilhando atrás de cestas básicas”.
A merendeira Claúdia Regina Paiva Miguel, que atua desde 2006 na rede municipal, demonstrou preocupação quanto ao possível retorno dos funcionários ao trabalho presencial e ao funcionamento dos refeitórios. “Infelizmente sabemos que as verbas que passam são insuficientes”, relata, acrescentando que os colégios não dispõem de estrutura adequada. “Não há garantia de que o espaço será preparado para as merendeiras”.
Ela conta que quando entregam os alimentos os entregadores têm acesso direto à dispensa. “Há poucas pessoas para higienização”, diz. “Para chegar ao vestiário, em boa parte das escolas temos de passar pela própria cozinha com roupas contaminadas da rua, já que chegamos de condução”.
DEFENSORIA DIZ QUE COMIDA NÃO CHEGA OU É INSUFICIENTE
A capital fluminense também é a região do estado com mais queixas sobre a qualidade das cestas básicas fornecidas, conforme levantamento da Ouvidoria Externa e da Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ), publicado em 23 de julho. Foram 2.630 respostas válidas, sendo que 96% se referem ao município. Entre os problemas apontados estão quantidade insuficiente, alimentos fora da validade ou estragados e valor incompatível com as refeições que eram feitas na escola.
Das pessoas que responderam ao formulário, disponibilizado via Facebook, Instagram e WhatsApp, 1.265 afirmaram que não receberam nenhum tipo de auxílio, o que corresponde a 48% do total dos participantes. Outras 1.365 (52%) disseram que receberam, mas de forma insuficiente. Os números incluem tanto escolas públicas municipais como estaduais.
De acordo com a defensora Beatriz Cunha, subcoordenadora de Infância e Juventude, a maior parte dos entes federativos permaneceu inerte em realizar uma política de alimentação escolar após a suspensão das aulas. A Defensoria Pública encaminhou recomendação ao estado e a todas as 92 prefeituras para sugerir o fornecimento de gêneros alimentícios e/ou transferência de renda em valor correspondente ao número de refeições que cada criança fazia na escola.
O órgão moveu 21 ações civis públicas contra as administrações que não responderam à recomendação e conseguiu, na Justiça, liminares contra o estado e os municípios de Areal, Barra do Piraí, Belford Roxo, Cachoeiras de Macacu, Paraíba do Sul, Queimados, Rio de Janeiro, São João de Meriti e Vassouras – além de Quatis, Cabo Frio, Duque de Caxias e Itaocara, mais recentemente.
No município do Rio, segundo ela, a primeira informação foi a de que seriam oferecidas 4 mil cestas básicas. “Isso representaria menos de 1% dos alunos”, destaca. Na sequência, em junho, a gestão Crivella anunciou a distribuição de 24 mil kits. “Ou seja, até então, somente 4 mil pessoas tinham recebido efetivamente as cestas. É um número insignificante, sobretudo se considerar que a gente já estava entrando no terceiro mês da pandemia”.
Ainda conforme a defensora, até agora o município não juntou qualquer informação oficial dizendo se cumpriu ou não as recomendações.
COMPRAS PASSARAM A SER FEITAS EM GRANDES REDES
Outro ponto destacado por Mariana Santarelli é que muitos municípios optaram por fornecer os kits apenas para famílias que integrassem o Cadastro Único do governo federal ou, no caso do Rio, fossem beneficiadas pelo programa de transferência de renda Família Carioca. A medida contraria a lei, uma vez que a política prevista pelo PNAE é universal, isto é, destinada a todos os alunos da rede pública. “Nos últimos anos houve um desmantelamento desses programas e um descadastramento massivo de vários beneficiários”.
A defensora pública reforça que se trata de uma violação de direitos. “Muitas famílias que não se inseriam antes em critérios de vulnerabilidade a ponto de serem contempladas passaram a entrar justamente em razão da pandemia”.
Ela lembra que o programa também determina que 30% do valor repassado a estados, municípios e o Distrito Federal seja utilizado na compra de gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar, ou camponesa. Por conta da pandemia, contudo, governos estariam priorizando a compra em grandes redes de supermercados.
Diante da ausência de respostas, a 1ª Vara da Infância e Juventude duplicou a multa aplicada ao governo e ao município do Rio por descumprir a liminar que os obriga a manter a alimentação de alunos da rede pública de ensino durante a pandemia. A cobrança passou a R$ 20 mil por dia. A decisão, assinada em 27 de julho, atende a um pedido da DPRJ.
Os valores serão revertidos para os Conselhos Municipal e Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente.”Ainda não houve um cumprimento da decisão a contento do que a Defensoria gostaria, porque a gente tem muitos relatos de pessoas que não receberam essa cesta ou eventualmente o cartão-alimentação”, comenta Beatriz Cunha.Na avaliação dela, porém, o resultado foi positivo em relação ao que acontecia antes da propositura das ações. “Existe uma simbologia muito importante em afirmar o que está na lei e garantir a prioridade absoluta das nossas crianças”.
SECRETARIA REBATE DADOS E FALA EM 500 MIL KITS ENTREGUES
A Secretaria Municipal de Educação do Rio (SME) argumenta que os dados obtidos pela reportagem estão defasados. “Tem que se levar em consideração que a verba do PNAE começa a ser repassada em março e, neste mesmo mês, foi decretada a suspensão das aulas em função da pandemia do coronavírus”, diz a pasta, em nota. “A regulamentação do governo federal para entrega de gêneros alimentícios aconteceu em abril, com a resolução 02 do FNDE”, completa, em referência ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação.
A SMS alega que entregou mais de 500 mil “kits merenda” para os estudantes desde o início da pandemia. “Esse é o maior programa nacional de entrega de alimentação para alunos de uma rede municipal de ensino do país”, afirma.
A secretaria garante que mais 50 mil cestas serão entregues na semana que vem. Até o momento, foram repassadas 2,4 toneladas de alimentos. “A distribuição é escalonada, para evitar aglomeração em polos estratégicos e nas onze Coordenadorias Regionais de Educação da SME no município”, justifica a SME.
Sobre os recursos do PNAE, a prefeitura afirma que, dos R$ 50.549.983,92 recebidos até julho, liquidou R$ 24.534.141,29. Mais R$ 16 milhões estariam empenhados e em fase de liquidação, referentes às cestas básicas já entregues aos alunos. O saldo, R$ 10 milhões, acrescenta, “será empenhado na próxima semana, também para as ações de distribuição dos kits”.
Em relação à agricultura familiar, a SME informa que possui dois contratos para a entrega de hortaliças: um com a União das Associações e Cooperativas Usuárias do Pavilhão 30 (Unacoop) e outro com a Federação de Cooperativas da Agricultura Familiar e Economia Solidária de MG.
“Os processos de chamamento público ocorrem regularmente, são acompanhados pela Defensoria Pública e já houve ocasiões de não haver fornecedores capacitados para o atendimento do serviço”, diz a secretaria. A nota informa que “novos processos são realizados para o cumprimento da legislação”.
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Foto principal (Reprodução): rede municipal do Rio é a maior da América Latina