Ministra da Agricultura diz que casos de Covid-19 no setor têm “reverberação maior que o fato”; desde o início da pandemia, oito matadouros foram fechados pela Justiça; casos podem chegar a 400 mil trabalhadores, entre eles indígenas de seu estado, o Mato Grosso do Sul
Por Mariana Franco Ramos, em De Olho nos Ruralistas
O que vale mais: um contêiner de carne refrigerada rumo à China ou a vida de um trabalhador e de sua família? Para o governo do presidente Jair Bolsonaro, a pergunta é quase retórica.
Chefe da pasta responsável por fiscalizar a atuação dos frigoríficos e, consequentemente, garantir a saúde e a segurança dos empregados, a ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Tereza Cristina, minimiza o número de infectados e mortos por Covid-19. Os surtos afetaram centenas de plantas pelo interior do país, levando ao fechamento completo de oito unidades, por determinação da Justiça.
Ela é a oitava entre os retratados na série Esplanada da Morte, que, desde o dia 28 de julho, retrata o papel de cada ministro (entre outros executivos do governo Bolsonaro) na proliferação da pandemia e de uma cultura de banalização da morte.
Durante o seminário “A força do agronegócio na retomada da economia”, promovido pelo site Jota no dia 21 de julho, a ministra — ex-presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) — afirmou que o setor foi “um pouco afetado” pela pandemia por causa da saúde de seus funcionários, mas que a “reverberação às vezes é muito maior do que o fato”.
— Essa é uma grande preocupação, porque quando você distorce a informação, chega isso lá fora e aí a gente tem tido alguns problemas.
Os “problemas” mencionados pela ministra dizem respeito às exportações de carne. Desde o início da pandemia, a Administração Geral das Alfândegas da China (GACC, na sigla em inglês) suspendeu a habilitação de sete abatedouros brasileiros em virtude de surtos de Covid-19.
São eles: duas unidades da JBS, em Passo Fundo (RS) e Três Passos (RS), duas da BRF, em Dourados (MS) e Lajeado (RS), uma da Marfrig, em Várzea Grande (MT), e uma da Minuano, em Lajeado (RS). A lista inicial incluía o frigorífico Agra, em Rondonópolis (MT), que teve a autorização restabelecida pouco tempo depois.
Entre as unidades suspensas pela China, as duas fábricas da JBS também foram temporariamente fechadas pela Justiça, a pedido do Ministério Público do Trabalho (MPT). Em Três Passos, 408 dos 989 funcionários testaram positivo para Covid-19. Um deles, de 48 anos, faleceu. Em 17 de julho, data em que a Justiça determinou o afastamento dos trabalhadores, a planta da JBS correspondia a 70,7% de todos os casos confirmados no município — 577, ao todo.
MINISTRA ASSINOU PORTARIA AFROUXANDO REGRAS
Em 18 de junho, Tereza Cristina assinou a portaria conjunta nº 19, que estabeleceu medidas de prevenção, controle e mitigação da Covid-19 na indústria de abate e processamento de carnes, laticínios e derivados. O documento também contém as digitais do secretário especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia, Bruno Bianco Leal, e do ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello.
Embora tenha como objetivo reduzir a transmissão do coronavírus nos frigoríficos, o texto excluiu a política de testagem em massa recomendada pelo MPT a partir de acordos firmados com empresas do setor. A portaria tampouco estabelece punição para quem descumprir as normas.
Para o secretário-geral da Confederação Brasileira Democrática dos Trabalhadores nas Indústrias da Alimentação (Contac), José Modelski Júnior, na prática, o governo apenas reduziu as exigências em relação aos procedimentos recomendados pelas autoridades de saúde. “Antes o Ministério Público só permitia retorno da produção onde houve surto passados catorze dias de quarentena”, destaca. “A portaria liberou tudo”.
A explosão de casos e o fechamento de plantas não impediram o setor de frigoríficos de atingir exportações recordes durante a pandemia. Segundo dados da Secretaria de Comércio Exterior (Secex), o país registrou em junho um aumento de 33,1% nos embarques de carne in natura em relação a junho de 2019. Ainda sem um balanço definitivo, julho também indica um novo recorde, com 136,42 mil toneladas embarcadas nas três primeiras semanas do mês, contra 133,19 mil toneladas no mesmo período do ano anterior.
EXPLOSÃO DE CASOS NO MS TEM RELAÇÃO COM ABATEDOUROS
No início de junho, todos os cinco infectados por Covid-19 em Aparecida do Taboado (MS) tinham contraído a doença no frigorífico de peixes da cidade, do grupo GeneSeas, voltado para exportação. O grupo detém a marca Saint Peters, que por um tempo chegou a ser sinônimo de tilápia no Brasil. Outro matadouro do município, o FrigoSul, ganhou autorização para exportar durante a gestão da ministra, em novembro de 2019, antes da pandemia. Seu mercado, a China.
Localizado na fronteira com São Paulo, Aparecida do Taboado está entre os 79 municípios que compõem a base eleitoral da ministra, uma pecuarista com terras em Terenos e Dourados, também no Mato Grosso do Sul — um dos estados onde ocorre aceleração de casos do novo coronavírus no Brasil. Em maio, ela ganhou um perfil do mais prestigiado jornal francês: “Le Monde faz perfil de Tereza Cristina e a chama de ‘Senhora Desmatamento’ de Bolsonaro“.
Tereza Cristina também recebeu doações de campanha da JBS (com quem depois ela entrou em litígio) e de outros fazendeiros sul-mato-grossenses, igualmente produtores de gado bovino, entre eles um acusado de ser o mandante do assassinato de um indígena: “Futura ministra da Agricultura, Tereza Cristina trabalha para tirar direitos dos indígenas“. Ainda quando era deputada, em 2013, participou do Leilão da Resistência, em Campo Grande, concebido para angariar recursos para os fazendeiros combaterem as retomadas feitas pelos povos originários.
Em entrevista à CNN no fim de junho, a ministra reforçou sua tese de que não há problemas com os frigoríficos brasileiros, afirmando que outros países enfrentam problemas parecidos: “Não foi só do Brasil que houve suspensão. Eles decidiram cortar importações de plantas da Alemanha, dos Estados Unidos, da Argentina e Irlanda. Nós esperamos reverter o mais rápido possível”.
FRIGORÍFICOS FORAM VETORES DE CONTÁGIO ENTRE INDÍGENAS
De acordo com dados da Contac, órgão ligado à Central Única dos Trabalhadores (CUT), o setor de processamento de frango, suínos e bovinos emprega cerca de 800 mil pessoas no país. A organização estima que entre 25% a 50% — ou seja, de 200 mil a 400 mil trabalhadores — tenham se infectado com o novo coronavírus em decorrência das atividades nas fábricas.
Conforme o secretário-geral da organização, ao passar uma imagem de que está tudo sob controle, o governo tenta impedir novos embargos sobre a carne brasileira, colocando a economia acima da vida dos trabalhadores.
— Há indícios de que muitos desses trabalhadores contaminados e que tiveram sintomas leves ou moderados vão ter efeitos colaterais prolongados, sequelas. A gente também percebeu que houve aumento no número de acidentes de trabalho durante a pandemia. Estão todos trabalhando preocupados, com medo do risco. Os relatos de quedas, lesões dos membros superiores, cortes e fraturas chamam a atenção.
Desde março, o MPT abriu mais de duzentas investigações para apurar irregularidades nos abatedouros. Até segunda-feira (03), oito unidades haviam sido totalmente paralisadas por determinação da Justiça: Avenorte, em Cianorte (PR), BoiBrasil, em Araguaína (TO), Flamboiã, em Cabreúva (SP), e cinco fábricas da JBS, em São Miguel do Guaporé (RO), Caxias do Sul (RS), Trindade do Sul (RS), além das plantas de Passo Fundo (RS) e Três Passos (RS), suspensas pela China.
Outras empresas não chegaram a interromper as atividades, mas tiveram de aumentar a testagem e as medidas de proteção. Houve ainda fechamentos de abatedouros em Goiás (Marfrig, de Mineiros, e BRF, de Rio Verde) e no Rio Grande do Sul (Minuano, de Lajeado) solicitados por prefeituras, Ministério Público Estadual e Vigilância Sanitária.
Os processos contra frigoríficos envolvem também casos de racismo contra indígenas. Em Joaçaba (SC), uma associação do povo Kaingang moveu, em parceria com o MPT, uma ação civil pública contra a JBS após a empresa demitir trabalhadores da Terra Indígena Serrinha. As demissões ocorreram em 14 de maio, apenas dois dias após o governo do estado emitir uma portaria determinando o afastamento, sem prejuízo de salário, de funcionários pertencentes a grupos de risco, incluindo indígenas.
Frigoríficos também estão por trás do surto de Covid-19 entre os Guarani-Kayowá em Dourados (MS), como mostrou De Olho nos Ruralistas em maio: “Contaminação em aldeia em Dourados (MS) começou na fábrica da JBS, diz cacique“. E em São Miguel do Iguaçu (PR), entre os Avá-Guarani: “Guarani que trabalha em frigorífico contrai Covid-19 e é 1º caso na região de Foz do Iguaçu“.
‘NÚMEROS FALAM POR SI’, DIZ PROCURADORA DO MPT
A situação é ainda mais caótica ao analisar o número de mortes ligadas ao setor. “Temos um problema porque o sistema do Ministério da Saúde não exige local de trabalho”, explica a procuradora do trabalho Priscila Schvarcz, gerente nacional adjunta do Projeto Frigoríficos do Ministério Público do Trabalho.
A falta dessa informação, frequentemente ignorada nos boletins das secretarias estaduais de Saúde, dificulta rastrear a origem dos surtos e, assim, o combate à pandemia.
Na última terça-feira (04), um trabalhador de 47 anos, funcionário da JBS de Montenegro (RS), morreu em decorrência de Covid-19. É a terceira unidade gaúcha do frigorífico dos irmãos Joesley e Wesley Batista que apresenta óbitos. “Só no Rio Grande do Sul, já tivemos óbitos na unidade de Três Passos e na de Garibaldi”, diz Priscila.
O observatório contou também histórias de pessoas que perderam a vida em Nova Araçá (RS) e Toledo (PR): “Agronegócio pode ter infectado 400 mil trabalhadores no Brasil por Covid-19“.
A procuradora não comenta especificamente a atuação da ministra, mas diz que os números “falam por si”:
— A interiorização da Covid-19, principalmente nos estados do Sul, se deu a partir dos municípios-sede de frigoríficos. Os primeiros grandes surtos em cidades do interior surgiram nos frigoríficos. É algo quase incontestável, quando se analisa os dados e o fluxo. Dizer que não foi importante ou minimizar de alguma forma o impacto, tanto na saúde dos trabalhadores da indústria de abate e processamento de carnes como na própria saúde local, não é compatível com os dados que nós verificamos.
‘O INTERESSE DELES É QUE O AGRO NÃO PARE’, DIZ SINDICALISTA
Vice-presidente da Associação dos Fiscais Agropecuários do Rio Grande do Sul (Afagro), Beatriz Ferreira Scalzilli lembra que, ainda no início da pandemia, os surtos em matadouros dos Estados Unidos já causavam temor. “É um trabalho feito em local completamente insalubre, fechado, com aglomeração e num ambiente propício para o vírus se espalhar”, explica. “A gente alertou o secretário, que não nos deu ouvidos. Disseram que não era função nossa, que a nossa função era a saúde dos animais e dos alimentos”.
O secretário de Agricultura do estado é o deputado federal licenciado Covatti Filho (PP-RS), que foi coordenador de Política Agrícola da FPA, a frente que Tereza Cristina presidia até virar ministra. Ele é o autor do Projeto de Lei 3200/2015, apresentado com o objetivo de substituir a atual Lei de Agrotóxicos (7802/1989). O texto foi apensado ao PL 6.299/2002, também conhecido como PL do Veneno.
Segundo Beatriz, os governos federal e estadual demoraram a agir por estarem alinhados ao agronegócio: “O interesse deles é que o agro não pare. Falta cuidado para esse tipo de situação. A gente acha que estão equivocados, porque as consequências podem ser muito piores”.
Modelski Júnior, da Contac, destaca ainda outra medida tomada pelo Mapa durante a pandemia. O decreto nº 10.419, de 7 de julho, que regulamenta a inspeção ante mortem e post mortem de animais nas plantas frigoríficas, retirou a obrigatoriedade da presença de auditores fiscais públicos na vigilância sanitária. Com isso, permite a contratação de profissionais temporários e até mesmo de autônomos, abrindo caminho para a terceirização:— A ministra está tentando fazer o que é de interesse das grandes indústrias. Praticamente serão as próprias empresas que vão fiscalizar a si mesmas. Ela é uma gestora muito favorável às empresas. A gente viu na pandemia o risco que os trabalhadores tiveram porque o setor não estava preparado. Foi nessa linha: a cadeia produtiva não pode parar; os trabalhadores têm que continuar de qualquer jeito. Essa é a lógica da administração dela.
O Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais Federais Agropecuários (Anffa Sindical) protocolou uma representação ao procurador-geral da República, Augusto Aras, pedindo que a PGR analise a legalidade do decreto.
No entendimento da associação, a contratação de profissionais com formação veterinária por contrato temporário “fere a regra constitucional do serviço público e viola o caráter estratégico das atividades de fiscalização e inspeção, que são típicas de Estado”, colocando em risco a segurança agropecuária e sanitária. O sindicato sugere uma ação civil pública para preservar a segurança alimentar da população e a saúde.
MAPA DIZ QUE PASTA SÓ FISCALIZA CONDIÇÕES DA PRODUÇÃO
De Olho nos Ruralistas questionou o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) sobre os surtos registrados nos abatedouros brasileiros e a suspensão de algumas empresas da lista de exportadoras. Também pediu à pasta um posicionamento quanto às recentes declarações da ministra Tereza Cristina, cotada para concorrer à presidência da Câmara em 2021.
Na nota enviada ao observatório, o ministério diz que, desde o início da pandemia, “tem adotado medidas preventivas para evitar a expansão da doença em plantas frigoríficas, bem como garantir a continuidade do abastecimento à população”.
O Mapa menciona especificamente a portaria 19, criticada pela Contac e pelo MPT:
— O objetivo da norma é garantir a segurança e a saúde dos trabalhadores, o abastecimento alimentar da população, os empregos e a atividade econômica. As orientações contidas nesta portaria são de observância obrigatória. A fiscalização está a cargo do Ministério da Economia.
O ministro Paulo Guedes foi o primeiro retratado nesta série de reportagens: “Esplanada da Morte (I): o papel de Paulo Guedes na implosão de direitos e na explosão da pandemia“.
Em relação aos dados de doentes e mortos, o ministério recomenda à reportagem buscar “junto à área de saúde dos estados e municípios”. “Cabe ao Mapa apenas fiscalizar as condições sanitárias da produção do produto”, finaliza a nota. Ou seja: a vida dos trabalhadores não seria de sua alçada.
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Foto principal: Tereza Cristina em aldeia de plantadores de soja do povo Paresí, no Mato Grosso