Guarani que trabalha em frigorífico contrai Covid-19 e é 1º caso na região de Foz do Iguaçu

Jovem de 32 anos é funcionário da cooperativa Lar, de Matelândia, que não paralisou atividades durante a pandemia; há pelo menos mais dez casos suspeitos na comunidade Ocoy, em São Miguel do Iguaçu, na região paranaense da tríplice fronteira

Por Mariana Franco Ramos, em De Olho no Genocídio

A confirmação do primeiro caso do novo coronavírus entre indígenas no Paraná, nesta quarta-feira (17), acendeu o alerta na comunidade Ocoy, localizada em São Miguel do Iguaçu, no oeste do estado, município na região de Foz do Iguaçu. O rapaz de 32 anos é um dos 45 moradores da tekoa (aldeia, em guarani) que trabalham no frigorífico da Lar Cooperativa Agroindustrial, em Matelândia, uma das maiores cooperativas do agronegócio no Brasil.

Segundo o cacique Celso Jopoty Alves, um bebê de um mês e dez dias, também com suspeita de Covid-19, foi internado nesta quinta-feira no Hospital Municipal de Foz do Iguaçu. Outras nove pessoas que apresentaram sintomas fizeram testes e aguardam os resultados. “Estamos tentando orientar e fazer o isolamento possível, mas estamos preocupados”, conta o cacique.

Ainda de acordo com ele, o frigorífico não paralisou suas atividades durante a pandemia, o que acabou expondo os trabalhadores e, consequentemente, toda a comunidade. “Tem um transporte, um ônibus da empresa, que leva e busca todo mundo junto”, diz. A Lar fica a uma distância de aproximadamente 40 quilômetros da tekoa. Em torno de 900 pessoas, de 210 famílias, vivem hoje na Ocoy. “A preocupação é espalhar, ter um surto”, completa Alves.

Fundada em março de 1964, a Lar se define como “uma cooperativa que atua no agrobusiness“. A marca está presente em mais de trezentos produtos, entre enlatados, congelados e grãos. Há unidades em onze municípios do oeste do Paraná, dez unidades no leste do Paraguai, catorze unidades no Mato Grosso do Sul e, em Santa Catarina, uma no município de Xanxerê. O faturamento previsto em 2019 era de R$ 6,9 bilhões.

‘AS CASAS FICAM PERTO UMAS DAS OUTRAS, É PREOCUPANTE’

O rapaz infectado está isolado na escola da aldeia. Conforme a chefe do Serviço de Promoção dos Direitos Sociais e Cidadania da Fundação Nacional do Índio (Funai), Marineide Cardoso Peixoto, os pais dele, de 70 anos, podem estar assintomáticos e foram levados ao mesmo local. “Ficamos assustados porque, até pouco tempo atrás, não havia nenhum caso no Sul”, relata. “De repente aparece numa comunidade de 900 pessoas. É uma aldeia pequena. As casas ficam muito perto umas das outras e a coisa é preocupante”.

Ela conta que, tão logo a Funai soube da situação, procurou a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). “Nós somos o órgão fiscalizador e de assistência ao índio e eles são o órgão de saúde. Orientamos que eles façam isolamento total e que lavem bem as mãos, porque o álcool em gel vai chegar amanhã”.

De acordo com o cacique e com a chefe na Funai, representantes do Ministério Público do Trabalho (MPT) e do Ministério Público Federal (MPF) devem se reunir nesta sexta-feira para buscar uma solução junto à empresa. As lideranças continuam em contato com órgãos e serviços de saúde do município e do estado.

A reportagem contatou as assessorias de imprensa da Lar e da Secretaria de Estado da Saúde do Paraná (Sesa), mas não teve retorno até o fechamento desta edição. Na prefeitura de São Miguel do Iguaçu ninguém foi encontrado para comentar o caso.

PROFESSOR DA UNILA ALERTOU MPF EM ABRIL

Professor da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), o historiador Clóvis Brighenti explica que os moradores da Tekoa Ocoy vivem numa estreita faixa de terra entre o lago da Usina de Itaipu e a lavoura mecanizada do agronegócio: “São pequenos agricultores, que estão já numa situação muito vulnerável. Produzem por subsistência, mas isso não gera tanta renda, porque há várias demandas. Por isso que uma parte significativa da população, principalmente mais jovem, trabalha nos frigoríficos”.

Brighenti diz que alertou o MPF em abril sobre a situação, pedindo algumas providências, entre elas que todos fossem considerados de risco e dispensados do trabalho com uma remuneração. Na avaliação do professor, que coordena o Observatório da Temática Indígena na América Latina (Obial), a previsão para os próximos dias é “sombria”. “Eles vão em turmas trabalhar. Ou seja, a possibilidade de um ter contaminado outros é muito grande”.

Quando a pandemia começou, em março, índios da etnia Guarani se reuniram em Guaíra, também no oeste paranaense, e se colocaram numa “situação de proteção”. “Muitas entidades, como MST e Cimi, ajudaram; houve doações e mutirão”, conta Brighenti. “Como eles se precaveram com antecedência, estava havendo certo controle. Mas essas pessoas precisam sair para trabalhar, já que a empresa não liberou”. Ele se refere ao apoio dado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e pelo Conselho Indigenista Missionário.

Para o povo da comunidade Ocoy, explica o professor, o isolamento é difícil: “O que significa o ‘fica em casa’ para essas populações? Talvez 50% more em casas de madeira ou alvenaria e a outra metade está em sistema de barracas. Aquelas novecentas pessoas são uma grande família. Internamente é muito difícil pensar em ficar dentro da unidade doméstica”.

Ele observa que os frigoríficos, de forma geral, se tornaram propagadores do vírus, tanto entre indígenas como entre não indígenas. “Há muitos problemas nas regiões de incidência do agronegócio — em Cascavel, no oeste catarinense, mais precisamente em Chapecó, e no norte do Rio Grande do Sul”, enumera. “Alguns frigoríficos já foram fechados, inclusive, pela Vigilância Sanitária”.

No caso da aldeia Ocoy, embora os trabalhadores sejam jovens e saudáveis, o contato com os mais idosos é frequente. Ele se lembra do caso de um senhor de 97 anos e de outros três anciões:

— São pessoas detentoras de um conhecimento formidável em termos de memória regional, das tradições do grupo, dos saberes, e que vão ser as mais impactadas. Se (o vírus) pegar nelas vamos ter uma eliminação, que pode ser considerada um genocídio. A gente espera que não chegue a isso, que as nossas análises estejam equivocadas. Mas a probabilidade é muito grande.

Foto principal (Arquivo Pessoal/Líderes da comunidade Ocoy): os Guarani precisam dos empregos em frigoríficos como fonte complementar de renda

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