Abandono de povos indígenas na pandemia deixa dúvida se governo age por “omissão ou estratégia”

Para a ambientalista Adriana Ramos, do ISA, o impacto da Covid-19, somado a outras ameaças em curso, pode significar “um comprometimento das comunidades do ponto de vista de reprodução física e cultural”

Por Rafael Oliveira, Agência Pública

Impulsionada pela falta de ações concretas do governo federal, a pandemia de Covid-19 segue avançando nos territórios indígenas brasileiros. No último sábado, 652 indígenas já haviam morrido em decorrência do coronavírus, segundo levantamento da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Além disso, a organização contabiliza mais de 23,4 mil casos confirmados da doença, com 148 povos afetados, um aumento de mais de dez vezes no número de casos nos últimos dois meses.

“Os vírus e doenças, lamentavelmente, sempre foram vetores de perdas muito grandes para os povos indígenas, como uma estratégia mesmo de colonização e domínio”, afirma a Adriana Ramos, assessora do Programa de Política e Direito Socioambiental do Instituto Socioambiental (ISA), em entrevista à Agência Pública. “A forma como esse governo, que tem a postura que tem em relação à questão indígena, lida com a pandemia entre essa população, deixa muitas dúvidas em relação a isso, se é omissão ou estratégia”, diz.

Para ela, a pandemia de Covid-19 se soma a uma série de “vetores de ameaças” aos povos indígenas, como as invasões de terras, o desmatamento e o garimpo. Na semana passada, o Supremo Tribunal Federal (STF) atendeu a uma ação movida pela Apib em conjunto com PSB, Psol, PCdoB, Rede, PT, PDT e determinou que o Estado brasileiro tome medidas efetivas de enfrentamento da pandemia nos territórios indígenas. “A decisão é um marco no reconhecimento da Apib como parte legítima para ingressar em juízo em nome dos povos indígenas em ações de questionamento de constitucionalidade, pois foi reconhecida como entidade de classe de âmbito nacional”, ressalta Adriana.

Entre as providências que o governo deve adotar estão a criação de barreiras sanitárias, a apresentação de um plano de enfrentamento e a criação de uma sala de situação para coordenar ações contra a doença com participação de representantes indígenas. Além disso, o órgão determinou que a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) atenda também indígenas que vivem em áreas não demarcadas e nas cidades e que o governo federal elabore um plano para a desintrusão de terras indígenas que foram invadidas.

Enquanto isso, o governo Bolsonaro segue tomando medidas que favorecem o avanço sobre os territórios indígenas. Na semana passada, após visita do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, à Terra Indígena (TI) Munduruku, o ministério da Defesa mandou suspender operações contra garimpo no território, que sofre com invasores. Antes disso, o procurador-geral da República, Augusto Aras, tomou decisão contrária aos direitos indígenas no Mato Grosso, e a Funai publicou instrução normativa que permite a certificação de fazendas em terras indígenas não homologadas.

Para a assessora do ISA, o governo federal está cumprindo a agenda antiambiental e anti-indígena prometida durante a campanha de Bolsonaro, “nas propostas que o governo tem encaminhado ao Congresso Nacional, como o projeto de lei de mineração em terra indígena,como a proposta que foi feita em cima da medida provisória da regulação fundiária. Tem sido feito no desmonte que o governo está fazendo nas estruturas públicas, como a fragilização da fiscalização”, afirma.

Adriana Ramos é assessora do Programa de Política e Direito Socioambiental do Instituto Socioambiental – Claudio Tavares/ISA

Confira a entrevista completa:

Como você avalia, em relação às populações indígenas, a condução do governo federal na pandemia de Covid-19?

A situação é bastante grave porque há uma dificuldade do governo colocar em prática medidas para ajudar a conter a disseminação do vírus entre os povos indígenas, assim como a própria questão de atendimento à saúde. Há uma série de problemas que foram contribuindo para agravar o quadro, e a gente ainda não tem uma ação do governo organizada para enfrentar a situação da forma mais adequada. Tanto é que os povos indígenas recorreram ao STF para obrigar o governo a ter um plano e apresentar isso objetivamente.

Nos últimos dois meses, os números de casos aumentaram dez vezes e os óbitos entre indígenas mais que dobraram, segundo a Apib. Você acredita que a pandemia vai avançar ainda mais sobre os povos indígenas?

Lamentavelmente, o cenário não nos permite ser otimista. Hoje nós tivemos informações, por exemplo, de que em Roraima há vários casos de bebês contaminados. A perspectiva é de que a gente ainda venha a ter más notícias, como eu acho que é a perspectiva no Brasil todo. Não há uma ação de contenção que nos permita pensar diferente.

Qual vai ser o impacto nos povos indígenas de todos esses meses de avanço do coronavírus?

Os povos indígenas já estão sob uma série de vetores de ameaças. As invasões das terras indígenas, desmatamento, garimpo ameaçando vários territórios… A doença chega de diferentes formas, ela tem atingido terras indígenas no Brasil inteiro. E ela impacta primeiro os mais velhos, pessoas com outras doenças, e isso tem feito com que muitas lideranças antigas já tenham morrido. Para os povos indígenas, isso significa a perda de conhecimento, de memória, de história, e isso pode, a depender do tamanho do impacto em algumas etnias e comunidades, significar um comprometimento dessas comunidades do ponto de vista de reprodução física e cultural.

Os vírus e doenças, lamentavelmente, sempre foram vetores de perdas muito grandes para os povos indígenas, como uma estratégia mesmo de colonização e domínio. A forma como esse governo, que tem a postura que tem em relação à questão indígena, lida com a pandemia entre essa população, deixa muitas dúvidas em relação a isso, se é omissão ou estratégia.

A Sesai contabiliza apenas casos e mortes por Covid-19 entre indígenas aldeados. Organizações como a Apib e Coiab têm produzido balanços mais completos, levando em conta também a população residente nas cidades, fora de aldeia e terras indígenas. Essa contagem parcial da Sesai é suficiente? Que impactos isso pode ter?

A contagem da Sesai estabelece um viés bastante restritivo se a gente considerar que no Brasil pelo menos 40% da população indígena vive nas cidades e que há cidades na Amazônia com concentração grande de populações às vezes de uma mesma etnia. A falta dessa informação cria um buraco na avaliação do impacto da Covid-19 sobre os povos indígenas. 

E mais grave do que isso foi uma tentativa do governo, que foi derrubada pelo Supremo Tribunal Federal, de estabelecer que a Sesai só preste atendimento nas terras indígenas já homologadas. Isso faz parte da estratégia do governo de descaracterizar a definição de terra indígena que tem na Constituição, tentando dizer que só é terra indígena de verdade aquela que já chegou ao final do procedimento administrativo de demarcação. Quando a Constituição é muito clara [ao estabelecer] que as terras indígenas existem independente desse procedimento, e as políticas e o atendimento especializado aos povos indígenas devem ser imediatos ao início do processo de demarcação, que muitas vezes pode levar décadas. 

Essa foi uma questão também supergrave que demonstra a utilização da pandemia como estratégia, uma forma de tentar consolidar essa visão de que TI é só o que está homologado, e aí colocar todos os povos indígenas que estão em territórios ainda em processo de demarcação marginalizados do atendimento do Estado.

Por que o garimpo e invasões de TIs continuam avançando na Amazônia? É por simples omissão do Estado brasileiro ou por uma política de estado anti-indígena?

Até então, a gente entendia que era uma grande omissão que atende a interesses econômicos perversos, irregulares. Mas, tendo em vista que desde a campanha eleitoral o presidente Bolsonaro defende o garimpo em TI como uma estratégia, como ele sempre defendeu e defende a legalização do garimpo nessas áreas, desde o ano passado que a gente tem uma ação “proativa” do governo, mesmo. 

E isso ficou ainda mais evidente nesse movimento recente do ministro do Meio Ambiente de ir à TI Munduruku enquanto estava havendo uma ação de fiscalização e lá conversar com os garimpeiros e trazer eles e os indígenas que estavam participando do garimpo para conversar em Brasília, suspendendo a operação de fiscalização. Ou seja, na opção de fortalecer o combate à ilegalidade, o governo buscou legitimar os garimpeiros que estão ilegalmente dentro da TI Munduruku, chamando eles pra Brasília, sinalizando uma perspectiva de regularização que o Executivo não tem sequer autoridade para fazer, porque essa é uma discussão que tem que acontecer no Congresso.

De que maneira as invasões por garimpeiros e outros grupos contribui para o avanço da doença entre os indígenas?

A presença do garimpo, no tamanho que eles são nas TIs, é mais um vetor de contaminação, porque essas atividades estão acontecendo a mil, as pessoas estão entrando e saindo. Elas demandam abastecimento que vem de fora, então o trânsito dentro desses territórios está contribuindo para a disseminação do vírus.

Na última semana, o STF decidiu unanimemente obrigar o governo federal a tomar medidas contra a pandemia de Covid-19 entre a população indígena em resposta a pedidos da Apib e de seis partidos. Que medidas você destaca e o que representa essa decisão?

A decisão é um marco no reconhecimento da Apib como parte legítima para ingressar em juízo em nome dos povos indígenas em ações de questionamento de constitucionalidade, pois foi reconhecida como entidade de classe de âmbito nacional. 

E estabelece medidas fundamentais como criar barreiras sanitárias em terras de povos isolados, obrigação do governo elaborar um plano de enfrentamento da Covid-19 e, no âmbito desse plano, elencar medidas de contenção e isolamento de invasores em relação a terras indígenas. O STF também garantiu que indígenas em aldeias tenham acesso ao Subsistema de [Atenção à] Saúde Indígena, independente da fase de demarcação da TI, e que indígenas não aldeados, que vivem nas áreas urbanas, também acessem o Subsistema de [Atenção à] Saúde Indígena caso não haja oferta no SUS.

A ação movida pela Apib pedia desintrusão imediata, mas o STF considerou que é necessária antes a elaboração de um plano para a retirada dos invasores. Você acredita que a desintrusão vai de fato acontecer nos próximos meses? Como deve ser feita essa desintrusão?

A gente esperava que fosse orientada uma desintrusão imediata, até pelo risco da contaminação [por Covid-19], mas o STF não entendeu assim.

Eu acho que a desintrusão é totalmente possível de ser feita porque o governo já demonstrou em outras situações capacidade de fazer. Fez a desintrusão da Terra Indígena Marãiwatsédé [em 2013], lá no Pará também teve outra. Havendo a vontade de fazer, o governo consegue mobilizar as forças necessárias para realizar, e acho que precisa ser feito. 

Bolsonaro se elegeu com uma agenda contrária à defesa do meio ambiente e dos povos indígenas. Um ano e oito meses depois do início do governo, é possível dizer que essa agenda está sendo cumprida? 

Está sendo cumprida nas propostas que o governo tem encaminhado para o Congresso Nacional, como o projeto de lei de mineração em terra indígena, como a proposta que foi feita em cima da medida provisória da regulação fundiária. Tem sido feita no desmonte que o governo está fazendo nas estruturas públicas, como a fragilização da fiscalização. Quer dizer, o governo, hoje, reclama que não tem dinheiro, que o Ibama não tem dinheiro para fiscalizar. Mas quem paralisou o fluxo de recursos que havia para o Ibama, que era do Fundo da Amazônia, foi o próprio governo. 

E isso que o Salles fez com os Munduruku na semana passada, com os garimpeiros, eles já fizeram com madeireiros, já tinham feito com garimpeiros em outras ocasiões. Em vários momentos que o governo precisava dar uma sinalização de ser contrário ao desmatamento ilegal, o governo sinalizou de forma diferente.

E dentro desse desmantelamento dos órgãos de proteção ambiental, o Exército está substituindo o Ibama?

O Exército não substitui o Ibama porque são competências completamente distintas, para começar. Em vários momentos, a Força Nacional foi mobilizada para apoiar o Ibama nas ações de fiscalização, isso sempre foi comum. A presença do Exército no apoio a essas ações é extremamente bem-vinda, mas o trabalho de inteligência, de orientação, de onde que estão as operações, como é que vai se realizar a abordagem, isso tem que ser coordenado pela agência ambiental, porque ali é que está a qualificação técnica, a competência para isso. Ao tirar a coordenação das ações do Ibama para colocar na mão do Exército, o governo estabelece uma ação extremamente falha, porque não respeita as competências.

Uma das medidas que o governo federal tomou em relação ao meio ambiente foi a criação do Conselho da Amazônia, comandado pelo vice-presidente Mourão. Você enxerga alguma efetividade nas ações desse órgão e uma legitimidade nas intenções dele?

Ainda não, porque até agora não houve nada de muito objetivo e concreto que o Conselho da Amazônia tenha feito, que demonstre uma mudança de postura e de política do governo.

Depois dos recordes de desmatamento do ano passado, várias empresas e investidores estrangeiros têm pressionado o governo para tomar alguma medida. Qual é a importância dessa pressão? Você acredita que essa pressão pode ter efeito prático e forçar o governo a agir?

Então, lamentavelmente, eu acho que não teve efeito. A pressão é extremamente bem-vinda, no sentido de que é muito importante que todos os segmentos da sociedade global, que se preocupam com a agenda das mudanças climáticas e da conservação ambiental, se manifestem junto ao governo brasileiro. 

O Brasil sempre foi um país líder nessa agenda ambiental global, porque é um país megadiverso e tem a maior área de floresta tropical contínua do planeta, então sempre esteve aberto a essa interação com o mundo. E, no momento que o governo brasileiro resolve mudar totalmente a política em relação a Amazônia, é importante que ele saiba os impactos que isso tem, porque nós não estamos falando apenas de questões retóricas, mas de interesses econômicos que reconhecem a importância da manutenção da floresta em pé.

Agora, lamentavelmente, o que a gente tem visto é que a pauta ideológica do governo tem se sobreposto a qualquer lógica, mesmo que econômica. Infelizmente, o governo acha que vai responder a essa preocupação internacional com medidas meramente cosméticas, e isso só vai aumentar o problema, porque o desmatamento segue crescendo e não há nada que o governo possa dizer que vá desmentir os dados que são notoriamente acompanhados internacionalmente. É uma situação complicada.

Já faz quase quatro meses desde a reunião ministerial de 22 de abril, onde o ministro Salles falou em “passar a boiada”. O governo federal tem efetivamente “passado a boiada”?

Na verdade, o Salles quando diz aquilo ele está dando o exemplo do Ministério do Meio Ambiente para inspirar outros ministérios, porque ele já vinha fazendo isso e continua tentando fazer. Esse movimento que é um movimento, digamos, não formal, mas que esvazia uma ação de fiscalização e que legitima interlocutores que atuam na ilegalidade, também é uma forma de criar um constrangimento para tentar passar mais essa boiada, que é liberar o garimpo.

Que outras medidas o governo tem tomado nessa direção?

Bom, o governo está incluindo uma série de parques nacionais no programa de desestatização, sem que a gente tenha informação pública sobre quais são as áreas que vão ser desestatizadas e como é que vai acontecer o controle sobre isso. 

Medidas como, por exemplo, a instrução normativa da Funai que estabelece que a Funai pode emitir declaração de não existência de terras indígenas para propriedades privadas em áreas que não estão homologadas. 

Esses são alguns exemplos, além das tentativas de mudança de legislação e mudanças estruturais que vão desmontando áreas do governo que trabalhavam mais voltada para transparência, para atividades de controle. Há um processo de retirada de quadros técnicos do governo, da área ambiental e de diferentes áreas.

Considerando essa postura do governo federal, qual é o caminho para barrar o avanço de invasão de terras, o desmatamento. O Supremo é um caminho? Que outros caminhos são possíveis?

O caminho do STF é o que as organizações e a sociedade já têm buscado, o próprio Ministério Público. Há uma série de discussões acontecendo no Supremo nesse sentido. 

E também no Congresso Nacional vários deputados têm tentado propor propostas, como essa relacionada à pandemia entre os povos indígenas, de um projeto de lei para garantir o desenvolvimento de planos de atendimento, planos emergenciais e uma série de medidas que eram para que o governo fosse proativo no sentido de proteger as comunidades contra a pandemia. Várias dessas medidas foram vetadas pelo presidente. O projeto de lei previa, por exemplo, distribuição de água potável nas regiões em que isso fosse um problema, e o governo vetou. 

O Congresso pode e ele tem esse papel, mas a efetividade das medidas determinadas tanto pela justiça quanto pelo legislativo, depende do governo federal. Então, lamentavelmente, o que a gente tem visto é que tem sido necessário buscar medidas que forcem o governo a fazer, e acompanhar e monitorar porque o governo também tem deixado de fazer coisas que são determinadas.

Uma coisa que tem acontecido nesse caso do garimpo e em outras situações é o governo pegar alguns poucos indivíduos e transformá-los em representantes…

Exatamente. Em relação à questão do garimpo, agora o governo está utilizando esse argumento de que os índios estão envolvidos, o que acaba escamoteando um pouco essa ideia de que você está falando de uma megaindústria ilegal e de uma movimentação de dinheiro que vai cooptar qualquer um que tiver pela frente, seja indígena ou não. E o governo não está parando para escutar os índios que são contra.

O governo escolhe com quem ele quer falar, ele não entende a lógica de representação. Quando eles fizeram o desmonte do Conselho Nacional do Meio Ambiente, eles diminuíram o conselho e transformaram a representação da sociedade civil em assentos que eram decididos por sorteio; então, você sorteia uma organização e diz “você é representante”. Quem essa instituição representa? Não representa ninguém.

Colaborou: Raphaela Ribeiro

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