Por que o pacote Bolsonaro-Guedes patina

Problema é bem mais amplo que o valor do novo benefício. Governo articula vasto ataque a direitos sociais históricos – e precisa disfarçá-lo com dinheiro. Mas ortodoxia neoliberal, que está de volta, o espreita

Por Antonio Martins, em Outras Palavras

Ninguém fala em Big Bang Day impunemente. Mas foi exatamente com estes termos que o ministro Paulo Guedes referiu-se, no fim de semana, ao pacote de medidas econômicas e sociais que seria anunciado hoje (25/8). Ao final, saiu um traque – de pólvora seca. Por divergências internas, o Palácio do Planalto cancelou o anúncio ontem à noite, prometendo, em seu lugar, a reapresentação da Carteira Verde Amarela — ao final, igualmente adiada. A esquerda ganha algum tempo. Será útil aproveitá-lo para compreender com clareza o ataque que está sendo preparado e, quem sabe, formular o antídoto.

O governo está diante de dois graves problemas. Primeiro: precisa manter de algum modo a transferência de renda para os mais pobres, iniciada com o Auxílio Emergencial (que o Planalto não desejava, mas conseguiu capturar). Se não o fizer satisfatoriamente, as consequências são imprevisíveis – mas entra as hipóteses está a perda brusca da popularidade conquistada nos últimos meses. Segundo: enfrentará, mais cedo ou mais tarde, a crueza da crise econômica, disfarçada até o momento por medidas atenuantes. Ontem mesmo, Bolsonaro e Paulo Guedes aprovaram a prorrogação, por mais dois meses, do programa que permite às empresas adiar demissões, substituindo-as por afastamento temporário dos trabalhadores. Por enquanto, a viúva paga as contas, arcando parcialmente com os salários. Dez milhões de pessoas estão sob este regime. Quando ele acabar, a perspectiva são demissões em massa.

Para enfrentar o duplo desafio, o governo tem algum cacife – e esta é a segunda peça do quebra-cabeças. A redução dos juros pagos pelo Estado, nos últimos dois anos, abriu espaço para o gasto público. Como a taxa Selic está muito próxima da inflação, o dispêndio real é quase zero – de qualquer forma, muito inferior aos cerca de R$ 150 bilhões que eram desperdiçados anualmente, ao final do governo Dilma. Além disso, a pandemia destroçou o velho paradigma ortodoxo, segundo o qual “os Estados só podem gastar aquilo que arrecadam”. Se houvesse um governo disposto à reconstrução do país, ele teria fartas condições de iniciá-la.

Mas isso nos remete diretamente à terceira parte do quebra-cabeças – a mais importante. Tal governo, é óbvio, não existe. Bolsonaro e Guedes operam para transformar a folga financeira de que dispõem em impulso para a privatização mais profunda do Estado e a mercantilização dos serviços públicos. Mas os interesses específicos são distintos – e por isso, as velocidades do capitão e do seu ministro não convergem. Guedes deseja o “Big Bang” já. Ele seria expresso em quatro eixos:

> Nova rodada, radical, de privatizações: com a venda, ao menos, da Eletrobras (maior empresa de energia da América Latina), dos Correios e da PPSA. Esta última representa o Estado brasileiro na arrecadação de todos os recursos do Pré-sal. Especula-se que seria vendida por 1/6 do que pode arrecadar em trinta anos. Porém, os recursos entrariam de uma vez, durante o governo Bolsonaro – que poderia utilizá-los num esforço de reeleição.

Desvinculação total do Orçamento: Guedes afirmou repetidamente, no passado recente, que deseja eliminar todas as vinculações – “liberando” o Estado da obrigação de destinar recursos para a Educação e Saúde, por exemplo. Agora, ele articula para que a Renda Brasil tramite, no Congresso, como adendo às chamadas PEC do Pacto Fiscal e PEC Emergencial – que permitem, entre outras medidas, reduzir em 25% os salários do funcionalismo público. O objetivo é evidente: pressionar os parlamentares, estabelecendo que a Renda Brasil só será paga a milhões de brasileiros se for aprovada a redução dos recursos para o SUS e o Ensino público.

Ataque aos direitos trabalhistas e desmonte da Previdência: Ao retomar a tentativa de aprovar a Carteira Vende Amarela, Guedes pretende criar um contrato de trabalho “formal” que, no entanto, oferece direitos reduzidos. O sentido é claro: permitir que os empregadores promovam, rapidamente, a migração dos assalariados (em especial, os com menor poder de barganha) para o novo regime. Já o fim da contribuição patronal ao INSS, também incluído pelo ministro em seu pacote, inviabilizará financeiramente a Previdência Pública e abrirá caminho para um sistema de “capitalização”, manejado pelos bancos privados. É a mesma modalidade que empobreceu os idosos chilenos e é hoje repudiada pela população daquele país.

Retorno, tão breve quanto possível, aos velhos dogmas monetários: Os poderes que os Estados ganharam para emitir moeda foram frutos de uma contingência. Graças a ela, estão sendo salvos grandes bancos e corporações e privadas, que de outra forma estariam falidos. Mas, para o 0,1%, esta janela precisa fechar-se muito rapidamente – do contrário, as sociedades se libertarão de uma ditadura financeira estabelecida em 40 anos de neoliberalismo. É por isso que já se ouvem, com frequência crescente, alertas sobre a “necessidade de retornar à disciplina fiscal”. E é por isso, em especial, que Paulo Guedes deseja: a) limitar ao máximo o valor da Renda Brasile b) obrigar a sociedade a custeá-la, por meio de uma nova CPMF e da eliminação de benefícios sociais como o abono salarial anual, o Farmácia Popular, o seguro-defeso (pago aos pescadores, em época de proibição ecológica da pesca) e as isenções de Imposto de Renda.

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Por seu caráter extremado, este último eixo de exigências colide seja com o instinto de sobrevivência de Bolsonaro, seja com suas intenções reeleitorais. Quais seriam as consequências de reduzir a Renda Brasil a R$ 247 ou R$ 270, num cenário de devastação econômica e provável explosão do desemprego? E como impor, a um Congresso constituído a partir da ideologia antiestatista, a mesma CPMF que os neoliberais atacaram até derrubar, em 2007?

Embora ciente de seus compromissos com o baronato financeiro, o presidente tem a noção de risco político que falta ao ministro. Quer manter-se popular e teme indispor-se com o Legislativo. Por isso, defende a Renda Cidadã de ao menos R$ 300; não demonstra ímpeto algum em quebrar lanças pela CPMF; e prefere não abrir brechas para desgastes em temas como a Farmácia Popular ou o abono salarial. Deste conflito entre ambos, resultou uma paralisia temporária – que pode evoluir para um desgaste mais profundo, caso não se resolva em breve. Nesta terça (25/8), Guedes deixou de comparecer ao lançamento da Casa Verde e Amarela – uma espécie de cópia reduzida do Minha Casa, Minha Vida.

Mas ainda que o ministro caia, a hipótese de uma ruptura entre Bolsonaro e a oligarquia financeira é, no momento, improvável. O casamento é conveniente às duas partes. A classe dos ultrarricos sabe que a crise global está longe do fim; que atravessará águas tormentosas; e que precisa de um condottiere com razoável popularidade para defender seus interesses. Já o ex-capitão tem plena ciência de que seus crimes são mais que suficientes para levá-lo ao impeachment e à cadeia. Além disso, parlamentar por décadas, tem noção da rapidez com que se esvaem, em certas circunstâncias, o apoio popular e as bases de sustentação no Congresso. É hoje parceiro do Centrão – mas compreende depender de outra aliança, mais sólida.

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Em todo o episódio, assombra, mais uma vez, a ausência da esquerda. Duas forças políticas destacaram-se, nas últimas semanas: o bolsonarismo e a oposição conservadora. O primeiro, mesmo em meio aos conflitos entre Bolsonaro e Guedes, ocupou a cena, ao tramar o “Big Bang”, as privatizações, a Casa Verde e Amarela, uma possível rodada de concessão de serviços de infraestrutura à iniciativa privada. A oposição conservadora manifestou-se, na agenda econômica, pela negação. A TV Globo está em plena campanha pela “disciplina fiscal” – agindo especialmente contra os servidores públicos. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, somou-se em diversas ocasiões a Paulo Guedes e liderou campanha pela manutenção do congelamento do gasto social. Nesse aspecto, é ainda mais retrógrado que o bolsonarismo.

Mas pergunte aos 210 milhões de brasileiros se têm noção sobre o que propõem, num país e num mundo em turbulência, os partidos que até 2016 estavam no governo. A paralisia deste campo é ainda mais escandalosa porque não faltam problemas sobre os quais intervir. A desocupação (por desemprego ou desalento) atinge, pela primeira vez, mais de 50% dos brasileiros aptos ao trabalho. Duas em cada três famílias estão sobreendividadas. Dezenas de milhares de pequenas e médias empresas fecharam as portas. Brotam, nos centros urbanos, novas favelas, formadas pelo despejo.

Em muitas partes do mundo, a ordem liberal é contestada. No Chile, mobilizações na internet e nas ruas derrubaram há semanas um dos pilares do sistema de aposentadorias privado. Na Bolívia e Equador, onde haverá eleições nos próximos meses, os governos, de direita, são obrigados a recorrer a medidas autoritárias para conter o avanço dos adversários – que poderá se converter, em breve, em vitórias eleitorais. Nos próprios Estados Unidos, a hipótese mais provável é a derrota eleitoral de Trump em novembro – em boa medida, devido à emergência da esquerda, que esteve a ponto de levar Bernie Sanders à disputa pela Casa Branca.

No Brasil, persistem paralisia e olhar melancólico voltado ao passado. Até quando?

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