Flechada que matou Rieli Franciscato revela a tragédia que está em curso na Amazônia
Por Felipe Milanez, Carta Capital
Uma flechada fulminante no coração matou o servidor da Funai Rieli Franciscato, o maior sertanista em atividade no Brasil. Ela veio justamente do grupo indígena ao qual o sertanista dedicava a vida para proteger: um povo em isolamento voluntário na porção sul da terra Uru-Eu-Wau-Wau, margeando a BR 429 asfaltada há poucos anos e por onde posseiros acessam a floresta por meio de ramais e de linhas.
A flechada no coração não foi por acaso. Foi certeira, mirada. Uma flechada que tinha a intenção de matar, e não assustar, avisar ou lesionar. Flechada de guerra. Ou seja: uma reação.
Os indígenas estão sendo caçados, foram vítimas de ataques e reagiram, sem conseguir diferenciar o sertanista da Funai de outros não-indígenas vizinhos e agressores.
Essa flechada que matou o extraordinário sertanista também revela a tragédia que está em curso na Amazônia e os efeitos da desestruturação da Funai sobretudo na área de índios isolados.
Aos fatos
Na manhã dessa quarta-feira 9 de setembro, Rieli Franciscato estava na base da Funai, no Posto de Vigilância Bananeira, quando foi informado de que um grupo de indígenas em isolamento havia se aproximado da casa de um posseiro na região da Linha 6.
Conhecendo bem a região de conflito, Franciscato foi até a polícia militar em Seringueiras acompanhado de outro integrante de sua reduzida equipe, Moisés Campé.
A tensão na região já estava tensa desde junho. A equipe da Frente de Proteção Ambiental Uru-Eu-Wau-Wau havia informado, no dia 19 daquele mês, que indígenas fizeram contato e trocaram presentes com vizinhos sitiantes.
Franciscato e Campé então foram até o local, conversaram com os moradores e andaram no entorno para verificar a situação. O áudio de um policial relatando o episódio circulou em grupos de WhatsApp:
Quando a gente chegou na beira da divisa [da terra Uru-Eu-Wau-Wau], a gente viu a placa da reserva da Funai, que dizia que era proibida a entrada. O Rieli começou a subir um morrinho assim, o índio estava um pouquinho atrás dele. A gente que levou lá do Rio Branco, a soldada Luciana estava atrás dele e eu e um pouquinho atrás dela. Aí a gente só escutou o barulho da flecha, pegou no peito dele, aí ele deu um grito, arrancou a flecha e voltou pra trás correndo. Ele conseguiu correr de cinquenta a sessenta metros e já caiu praticamente morto… a gente ainda carregou ele por um pedaço ainda. Conseguimos deslocar ele até a viatura que estava na estrada e até viemos trazer ele no hospital aqui, só que ele já chegou sem vida e nosso amigo se foi, infelizmente.
Em áudios anteriores aos quais a agência Amazônia Real teve acesso, Franciscato relatou suas dificuldades a Ivaneide Cardozo, sua amiga pessoal e coordenadora da organização Kaninde:
Ô, Neidinha [apelido de Ivaneide], pra mim, naquela viagem amanhã [10], não tem como. Acabei de receber informação de que os índios apareceram na [linha] 6, e vou ver essa situação. Não vou ter nem gente para colocar lá. O Clayton [servidor da Funai] está acamado. Possivelmente esteja com Covid.
O povo isolado e os posseiros
O povo indígena em questão é conhecido como “Isolados do Cautário”, em razão do rio que marca o território que habitam, e associado aos Sirionó, do grupo linguístico Tupi. São nômades, não fazem roça e usam arcos longos.
A provável agressão dos não-indígenas pode ter inflamado os ânimos dos “Isolados do Cautário”. Um vídeo que circula em grupos de WhatsApp mostra um dos posseiros da Linha 6 xingando cinco indígenas que tentavam se aproximar.
Tudo leva a crer que Franciscato foi atingido no coração como consequência dessa tensão. Mirando para matar, os indígenas isolados acertaram, sem que soubessem, um aliado.
Da mesma forma, posseiros assustados com a presença indígena, incentivados a invadir terras pelo governo, também se tornam vítimas (situação semelhante à observada em Rondônia nos anos 1980, com conflitos violentos entre indígenas e migrantes, como a guerra entre os Paiter Suruí e os posseiros assentados em seu território pelo INCRA).
A experiência
Rieli Franciscato tinha 56 anos e era o mais experiente sertanista em atividade na Funai. Conhecia como poucos a região e os indígenas isolados — já havia tido encontros visuais em expedições anteriores e em sobrevoos de observação. Sabia que poderia ser confundido com agressores, e por isso preparava, com dificuldades, uma equipe para um possível contato.
Filho de migrantes do Paraná que foram para a Amazônia nos anos 1970 e estabeleceram em uma terra vizinha a terra indígena Rio Branco, teve sua primeira experiência na Funai com a equipe do sertanista Assis Costa, no final dos anos 1980 (Assis Costa havia trabalhado com Chico Meireles e, nessa época, estudava os Cinta-Larga).
Em seguida, Franciscato integrou equipe liderada por Antenor Vaz para realizar expedições na região do Rio Preto, na Reserva Biológica do Guaporé, onde passou a conhecer mapa e técnicas de expedições para recolher informações da presença indígena. Os trabalhos de campo que se desenvolveram nos anos 1990 levaram à criação da TI Massaco, a primeira terra indígena para uso exclusivo de um povo em isolamento.
Ao longo de sua vida, Franciscato estabeleceu uma relação muito próxima, de pertencimento, com os povos Uru-Eu-Wau-Wau e Amondawa.
André Amondawa, hoje servidor da Funai, aprendeu muito com Rieli, e falou comigo logo antes de ir para o funeral, junto de sua família, e seu avô cacique Tari Amondawa:
Falar sobre Rieli é difícil. Ele era bom demais. Para o povo Amondawa, ele não foi só um amigo não, ele foi muito mais do que um amigo, fez parte do povo. Ele faz parte da comunidade Amondawa. Ele está aqui junto de nós. Infelizmente aconteceu essa fatalidade. Ele sempre falava ‘matar nunca, morrer se for preciso’. Foi o que aconteceu. A gente está muito triste, todo o povo indígena Amondawa está.
Após iniciar os trabalhos em Rondônia, Franciscato foi se especializando em técnicas de campo e serviu em expedições complexas, chefiando trabalhos na Funai na região do rio Purus, no Vale do Javari, e circulando por áreas de conflito. Era a pessoa necessária para enfrentar as piores situações e mais difíceis condições técnicas.
Numa expedição, em 1995, na região habitada pelos Hi Merima, no Amazonas, encontrou três missionários evangélicos do grupo Uma Missão, Jocum, ligada à missão Atini, fundada pela pastora Damares Alves, atual ministra no governo Bolsonaro. No flagrante, Franciscato recolheu diários que relatavam tentativas de contato forçado com indígenas para conversão.
Elias Bígio, historiador e servidor aposentado da Funai, que chefiou a coordenação de Índios Isolados entre 2007 e 2011, descreve Francsicato como uma pessoa de “total dedicação para a causa, uma pessoa muito honesta”. Em suas conversas mais recentes com Franciscato, compartilhou a ideia de preparação para um possível contato.
Bigio destaca a honestidade e compromisso com a defesa dos direitos dos povos indígenas e experiência de trabalho com índios isolados, o que “fez com que Rieli fosse designado para trabalhar no sul do Amazonas nos levantamentos do território de ocupação pelos índios isolados da TI He-merimã”.
Ele também destaca o compromisso e a capacidade de Francsicato como indigenista em sua forte atuação como chefe da FPE Vale do Javari, mapeando ocupações dos povos isolados e também reforçando estratégias de proteção das áreas de atuação da Frente.
Discreto, íntegro e fechado, avesso à exposição na mídia, Francsicato combateu duramente servidores da Funai envolvidos com a venda ilegal de madeira nos anos 1990. Era muito admirado, mas de pouco amigos dentro da fundação.
Uma de suas expedições no Vale do Javari foi acompanhada pelo jornalista Roberto Almeida e o fotógrafo JF Diório. As experiências foram publicadas no jornal O Estado de S. Paulo e influenciaram a vida do jornalista, que hoje trabalha no Instituto Socioambiental.
Uma rara entrevista de Rieli foi feita junto de seu amigo e colega, Antenor Vaz, e a professora de linguística da UNB, Ana Suelly A. C. Cabral, e Ariel Pheula do Couto e Silva, em abril de 2015. Publicada na Revista Brasileira de Linguistica Antropológica em 2016, é referência fundamental para se conhecer o pensamento e a experiência de Franciscato.
O Franciscato que eu conheci
Conheci Rieli Franciscato quando trabalhei na comunicação da Funai em 2006 e, desde então, sempre fui fascinado por ele.
Era uma pessoa de poucas palavras, dura, com um jeito ríspido. Falava pouco, mas, quando falava, era certeiro. Media as palavras.
Foi muito leal, sempre, a todos os seus companheiros de campo que sofreram ameaças de morte em Rondônia, como o sertanista Mauro Oliveira, bastante perseguido pela Funai, e Walmir de Jesus, que foi servidor do Ibama e da Funai e um grande combatente contra madeireiros ilegais (personagem do filme “Batida na Floresta”, de Adrian Cowell).
O mais importante para ele eram ações práticas: sabia que isso salvaria índios, garantiria a defesa dos territórios indígenas. Uma pessoa de campo profundamente leal, corajosa e estratégica.
Por isso, também, que o ataque fulminante que tirou sua vida não pode ser atribuído a ele, por suposta falta de experiência. Suas ações eram cuidadosamente pensadas. Agia quando precisava agir. E se agiu nessa quarta-feira foi sabendo que era preciso agir.
Como ele, todos hoje sabemos que, se não agirmos diante da brutalidade colocada em marcha pelo governo federal contra a Amazonia, será o fim da floresta e o fim dos índios isolados. E o fim pode chegar, quanto menos esperamos, de uma forma mortal, certeira, no coração.
Para sempre Rieli Franciscato será lembrado. Por sua coragem, por sua dedicação, e seu compromisso com a preservação da natureza e a defesa dos povos indígenas.
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Imagem: Rieli Franciscato. Foto: reprodução/facebook