Quilombolas articulam estratégias e parcerias para proteger comunidades na pandemia

Debate online reuniu líderes quilombolas e abordou a luta por garantia de direitos e acesso à titulação das terras e à educação, além de estratégias e parcerias para a proteção dessas comunidades negras frente à COVID-19

Na ONU Brasil

A conversa foi mediada pela defensora dos Direitos das Mulheres Negras da ONU Mulheres Brasil, Taís Araújo. A live foi transmitida pelo Canal Preto, em uma iniciativa de Ministério Público do Trabalho, Organização Internacional do Trabalho, ONU Mulheres e Cáritas Brasileira.

Povo, território, ancestralidade. Passado, presente e futuro se unem numa temporalidade específica nas comunidades quilombolas, com histórico de lutas e de ação para garantia de direitos.

De acordo com a Coordenação Nacional de Articulação de Comunidades Negras Rurais (Conaq), a palavra quilombo é originária do idioma africano quimbunco, sendo a população quilombola definida como grupos étnico-raciais que tenham também uma trajetória histórica própria.

São dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.

Sua caracterização deve ser dada segundo critérios de auto-atribuição atestada pelas próprias comunidades, como também adotado pela Convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais .

A Constituição Federal de 1988 reconheceu os quilombos e a responsabilidade de “propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos” a remanescentes de quilombos.

No debate “Racismo e Território: quilombos” da série de lives “Mulheres Negras Rumo a um Planeta 50-50 em 2030 em tempos de crise e da pandemia COVID-19”, o tema foi abordado pela quilombola Maria Senhora Gonçalves, professora, agricultora e cordelista.

Também participaram Givânia Silva, quilombola e integrante do Comitê Mulheres Negras Rumo a um Planeta 50-50 em 2030; e Lívia Casseres, defensora e coordenadora de Promoção da Equidade Racial da Defensoria Pública do Rio de Janeiro.

A conversa foi mediada pela defensora dos Direitos das Mulheres Negras da ONU Mulheres Brasil Taís Araújo na live realizada no Canal Preto, uma iniciativa do Ministério Público do Trabalho, OIT, ONU Mulheres e Cáritas Brasileira.

A vida no quilombo foi descrita por Maria Senhora Gonçalves pelo viver comunitário e pela organização política para o acesso a direitos.

“Nós, mulheres que estamos na roça, cultivando. Estamos sofrendo com impactos de barragens, empresas multinacionais e outros empreendimentos. Antes da pandemia, não estava fácil. Temos de reorganizar e reorganizar este país.”

“Quem está na base são as mulheres. Já ocupamos muitos espaços sociais, mas precisamos ocupar os espaços de poder. Uma das formas de distribuir a política pública que a massa maior precisa: mulheres temos que aquilombar. Não falo só de igualdade, mas de equidade”, disse.

Maria Senhora fez um chamado à participação política das mulheres quilombolas e à valorização pública à trajetória das ancestrais, dirigindo às novas gerações.

“Cadê as mulheres quilombolas para ocupar os espaços de poder? Não é utopia. É processo. Temos também de começar esse processo. Juventude, vocês que estão na escola pública, nas universidades. Vamos descolonizar os currículos. Vocês precisam conhecer as mulheres quilombolas que fizeram histórica no Brasil, Dandara, Acotirene, Anastácia, Tereza de Benguela e tantas outras”, recuperou.

Uma das frentes de organização é garantir os direitos à titulação das terras e à educação. Na realidade de Pernambuco, Maria Senhora lembrou que há 193 comunidades quilombolas e apenas duas tituladas.

“Dos vários municípios, somente três têm diretrizes curriculares quilombolas sancionadas. Vejamos como é importante reestruturar as políticas para torná-las equitativas e com capacidade de acesso. Nós, mulheres, já fomos invisibilizadas. Se nos unirmos, vamos conseguir tornar o nosso plural”, completou.

Histórico de liderança e mobilização frente à COVID-19 – Givânia Silva, membra do Comitê Mulheres Negras Rumo a um Planeta 50-50 em 2030, registrou os 24 anos da Conaq, em maio de 2020, e a articulação política para fazer valer direitos históricos ainda inacessíveis por meio de novas estratégias.

“A ação é continuar mobilizando e propondo ações para dentro do Estado e incidência junto a instituições da justiça, defensorias, ministério público. Outro canal tem sido denunciar em nível internacional”, acrescentou.

Ao trabalho da Conaq, que estima a existência de mais de 5 mil quilombos no Brasil, somaram-se os desafios da pandemia. “A Conaq começou cedo na orientação à COVID-19. A gente não tinha um sistema de monitoramento de pessoas quilombolas que morrem pela pandemia. Este monitoramento é feito pela Conaq.”

O portal quilombosemcovid.org é plataforma da Conaq, criada para monitorar os casos por meio de mapa georreferenciado e notícias, que vão desde mobilização e distribuição de cestas básicas à preservação da memória de pessoas quilombolas mortas que morreram devido à COVID-19.

Para Givânia Silva, a pandemia ampliou o quadro de vulnerabilidade das comunidades quilombolas. “No racismo estrutural, as barreiras são enormes. A pandemia realmente estampou aquilo que todo mundo sabia, que nós negros anunciamos e denunciamos. Há pessoas que minimizam os efeitos do racismo. É a população negra que está morrendo, já morria e continuará a morrer mais”, afirmou.

Ela avaliou que a pandemia pesa mais para as mulheres quilombolas. “Somos mulheres, não aguentamos tudo. Mas somos resistência, muitas de nós, porque este é o lugar que nos cabe. As mulheres estão organizando os quilombos. Não há política específica na pandemia, voltada à proteção. Pará, Rio de Janeiro e Amapá são estados com concentração de óbitos”, revelou.

Enfrentamento do racismo e inovações – A defensora Lívia Casseres frisou o caráter estratégico da titulação das terras para comunidades quilombolas para o acesso a direitos e políticas públicas.

Mencionou que “nenhum território está sendo titulado no Brasil e isso vai gerar efeito dominó na fragilidade, lentidão e precariedade nos quilombos. Estamos falando de um racismo socioambiental. Um modo de racismo que o Estado acaba praticando e que tem a ver com essa geografia dos estados e das capitais brasileiras”.

Casseres assinalou que “o território está ligado a todas as outras políticas públicas. Para falar sobre saúde para quilombolas, temos de falar da existência desses grupos populacionais, o que se reconhece pelo território e pela vida. É muito difícil construir política pública para esses espaços se não há garantia do território. A política pública que chega na capital é totalmente diferente da que chega num território quilombo”.

De acordo com a defensora pública do Rio de Janeiro, “a equidade é ponto fundamental para falar sobre comunidades quilombolas”. “Quando se fala em saúde, as iniquidades em saúde têm a ver com racismo. Se não há água dentro do quilombo, como as pessoas se protegerão?”.

“Prevenção consistente de lavar as mãos, higienizar a casa, limpar a casa. Dificuldade de acesso à água potável, estamos falando de segurança alimentar. Uma das dimensões quilombolas são as trocas comerciais e o turismo de base comunitária. Isso leva a um impacto que vai gerar insegurança alimentar e impedir que o acesso à saúde se dê de modo igualitário”, reiterou.

A defensora pública fez referência à Comissão Nacional de Promoção da Igualdade Étnicorracial das Defensoras Públicas e de medidas, como em São Paulo, para tentar criar e facilitar o acesso das comunidades quilombolas a direitos, como cestas básicas e inclusão no CadÚnico, da Política Nacional de Assistência Social.

“Muita gente falou que o coronavírus era democrático. Ao contrário, está colocando lente de aumento nas desigualdades que o povo brasileiro vive, quilombolas e indígenas. O número de mortes é assustador. Precisamos usar como aprendizado para construir políticas antirracistas”, ressaltou.

Entre as inovações para responder aos desafios da pandemia no trabalho das defensorias públicas em apoio às comunidades quilombolas a defensora citou o caso da Defensoria Pública da Bahia, que se reorganizou para atender quilombos em municípios em que não estão em comarcadas.

“Houve uma reorganização para atender por meio de força-tarefa. Precisamos pensar esses serviços públicos de modo antirracista, para sermos proativos e conseguir trabalhar contra essas barreiras que o racismo impõe.”

“A Defensora Pública do Pará criou grupo de trabalho para tratar de direitos quilombolas e racismo. O nosso desafio é ser criativo e usar a bagagem de resistência”, exemplificou.

Vozes das mulheres negras – As lives “Mulheres Negras Rumo a um Planeta 50-50 em 2030” em tempos de crise e da pandemia Covid-19” fazem parte da estratégia de comunicação e advocacy da ONU Mulheres e do Comitê Mulheres Negras Rumo a um Planeta 50-50 em 2030, composto por entidades organizadoras da Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo e a Violência e pelo Bem Viver, que completa 5 anos, em novembro de 2020.

As lives foram desenvolvidas por meio da parceria com o Canal Preto, uma iniciativa do Ministério Público do Trabalho, Organização Internacional do Trabalho, ONU Mulheres e Cáritas Brasileira.

No diálogo com a ONU Mulheres, o movimento de mulheres negras tem colaborado para fazer avançar a mobilização em torno da incorporação de gênero e raça em agendas internacionais dos Estados-membro da ONU. Entre elas, estão a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, composta por 17 objetivos globais e o princípio de não deixar ninguém para trás do desenvolvimento. Outra agenda importante é a Década Internacional de Afrodescendentes, criada pelos Estados-membros da ONU e com prazo de execução até 2024.

Foto: Fernando Martinho

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