Mostrando as vísceras do capital

por Elaine Tavares, em Palavras Insurgentes

O Brasil vive um momento de extrema desolação. Além de toda a tragédia provocada pela inexistência de um combate centralizado ao vírus da Covid 19, que já ceifou quase 150 mil pessoas, Amazônia e Pantanal queimam, por incêndios criminosos. Há algumas dezenas de pessoas que lutam contra as chamas, desesperadamente, de maneira quase inglória. E há um governo que corta verba para o combate aos incêndios, faz piada e divulga vídeos falsos, minimizando a tragédia que se abate sobre a terra, as gentes e os animais. Há milhões de criaturas que negam a realidade, que se manifestam contra a vacina e que aplaudem a lógica governamental. Esse é o triste cenário com o qual nos deparamos. Trágico, mas não surpreendente, afinal, o que importa para quem governa é apenas o bem-estar de uma minoria dominante. O que passa ao largo dessa pequena parcela de gente é absolutamente irrelevante. E por quê? Porque essa é a natureza do sistema capitalista no qual estamos inseridos.  

Existe um livro, que deveria ser leitura obrigatória nas escolas, que se chama “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”, escrito por Friedrich Engels, em 1845. Ele inclusive serviu de fonte para que Marx escrevesse o seu clássico “O Capital”. Engels era um jovem rico que em 1842 vai para a Inglaterra aprender sobre a indústria, visto que seu pai era industrial na Alemanha. Naqueles dias, a Inglaterra, especialmente Manchester, era a ponta de lança das inovações e da modernidade capitalista. Ali Engels vive por 21 meses e ao observar os avanços na indústria local e a urbanização das grandes cidades, começa a perceber também as condições de vida dos trabalhadores.  

Quando volta para casa, na Alemanha, Engels conhece Marx e com ele discute tudo que viveu. Logo em seguida começa a redação desse livro que é uma obra prima sobre a realidade do capitalismo. É uma espécie de ver por dentro, de narrativa do escondido, do que não aparece aos olhos de quem apenas usufrui dos produtos que nascem das mãos dos trabalhadores. O livro é uma espécie de “Globo Repórter” da época, pois Engels consegue descrever como vivem, onde moram, o que comem, que doenças têm, como se divertem e que expectativas têm os trabalhadores da meca do capital.  

Engels mostra como se deu o movimento do camponês para a cidade grande, saindo da condição de trabalhador da terra, com casa para morar e um pedaço de terra para tirar seus sustento, para a condição de proletário, sem nada de seu a não ser a força de trabalho, cujo pagamento por ela sequer era suficiente para mantê-lo em pé. O jovem alemão visita não apenas as fábricas, onde vê de perto as condições de trabalho de homens, mulheres e crianças, mas também circula pelos bairros periféricos, morada dos trabalhadores, os quais eram desconhecidos pela elite dominante e também pela chamada classe média que ocupava as profissões liberais, ou cargos mais elevados nas fábricas.  

Nessas andanças pelas vielas fedorentas de Manchester – os chamados “bairros de má fama” – Engels viu gente morrer de fome, dividir casa com os porcos, dormir na maior imundície, padecer das doenças mais horrendas. Aquelas ruas e casas que ficavam na parte mais feia da cidade, eram o espaço da morte, e não da vida. Não recebiam cuidados por parte da administração local e eram conhecidas como redutos da criminalidade. Isso lhes lembra algo?  

Engels descreve com riqueza de detalhes aquele universo e tanto que se pode até sentir o cheiro das ruas e das casas. “Não há um único pai de família em cada dez, que tenha outras roupas além das de trabalho e muitos só têm à noite, como coberta, esses mesmos farrapos e por cama, um saco de serragem”. Ou ainda a visão de uma mulher que morrera de fome: “jazia morta ao lado do filho, sobre um monte de penas, espalhadas pelo corpo quase nu, porque não havia lençóis ou cobertores. As penas estavam de tal modo aderidas à sua pele que o médico só pode observar o cadáver depois que o lavaram, e o encontrou descarnado, todo marcado de picadas de insetos”. 

E por aí vai a toada. O livro de Engels é como um soco na boca do estômago, detalhando de maneira crua a vida daqueles que fizeram a riqueza do capital. Uma gente que morria cedo, com fome, sem nada de seu. Uma gente que não era visível para ninguém que vivessem fora daqueles antros de podridão e dor. Da classe média, essa excrescência que sonha em virar exploradora ele diz: “Tive de observar a classe média, vossa adversária, e rapidamente concluí que vos tendes razão em não esperar dela qualquer ajuda, seus interesses são diametralmente opostos aos vossos, mesmo que ela procure incessantemente afirmar o contrário e vos queira persuadir que sente a maior simpatia por sua sorte.” Para Engels a classe  média só quer enriquecer às custas dos desgraçados e simplesmente pode deixá-los morrer de fome quando não puder mais lucrar com o que chama de “comércio de carne humana”. 

Mas, o que realmente é espantoso no livro de Engels, é que a situação que ele descreve na Inglaterra de 1842, segue absolutamente igual nas periferias do mundo inteiro. As cenas descritas dos horrores, das condições das moradias, da saúde dos moradores e da exploração que sofrem não apenas nas fábricas, mas também dos donos dos armazéns onde compram seus víveres, poderiam ser vislumbradas hoje em qualquer grande cidade ou mesmo em países inteiros. Porque o Engels mostra não é apenas a situação dos trabalhadores da Inglaterra, mas sim as vísceras do modo de produção capitalista. O lado de dentro, o lado escondido, que os poderosos preferem deixar invisível para que não haja revolta. Pelo contrário, o capitalismo dispõe de uma pedagogia da sedução que leva os explorados a acreditar que um dia poderão ultrapassar o limiar da miséria, basta que trabalhem bastante. Mas, isso não é verdade. A roda do capital que gira desde o 1800 segue fazendo o mesmo de sempre: moendo gente. É assim que se mantém.  

É justamente por isso que, hoje, no Brasil, enquanto milhares de famílias choram seus mortos, que partiram por não conseguir amparo médico, ou um respirador, ou uma UTI, a classe dominante não está nem aí. E se não está nem aí para as pessoas, porque motivo estaria preocupada com as milhares de vidas animais perdidas nos incêndios da Amazônia e do Pantanal? Isso não importa em absoluto. Assim como não importam as vidas dos indígenas – esses seres que consideram inúteis e um atrapalho ao progresso – dos negros da periferia, dos quilombolas, dos ribeirinhos, dos sem-terra, dos zé-ninguéns. Enquanto essa gente morre a classe dominante segue com suas festas, suas mansões, seus banquetes. A dor dos que lhes servem não lhes toca, não lhes chega. Porque, ao fim, alguém dos seus está enriquecendo enquanto as terras ardem e as gentes morrem. 

O que nos resta, então? Primeiro conhecer a realidade. Entender porque uns tem tanto e tantos não tem nada. Entender porque existe a pobreza, a miséria, a exploração. Entender a lógica do capital. Debruçar-se sobre as vísceras desse sistema, ter coragem de olhar adentro e, a partir daí, compreender que é o trabalhador quem produz a riqueza e que os ricos não trabalham. E que se quem produz a riqueza é o trabalhador então a ele tudo é devido. Não a morte, não a fome, não o desespero. Mas a alegria, a fartura, o bem-viver. E que isso pode ser conseguido se essa minoria que domina tudo for vencida. É uma minoria. Os trabalhadores são maioria, logo, mais fortes.  

É certo que no caminho haverá quem não acredite no que mostram as vísceras, haverá quem defenda o algoz, haverá quem traia os companheiros. É a vida. Mas, os trabalhadores, coletivamente podem enfrentar cada um desses obstáculos, e avançar.  

O capitalismo tem essa aparência bonita, de sucesso, de possibilidades. Mas, dentro dele estão as vísceras. Engels mostrou as da Inglaterra. Nós vamos mostrando as nossas. E, assim, conscientes do mal, haveremos de encontrar o caminho para a libertação. 

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

19 − doze =