Em 2014 recebi de presente de aniversário de uma amiga muito querida o livro Eu Sou Malala. Meu aniversario é em julho, mas só fui pegar o livro pra ler vários meses depois e confesso que sem grandes expectativas, imaginando que não encontraria ali muito mais que uma história um tanto quanto romanceada da garota paquistanesa vitimada por membros do Talebã (o movimento fundamentalista islâmico que dominou o Estado no Afeganistão). Nada mais equivocado. O livro surpreendeu-me muito positivamente. E, para além da grata surpresa, o livro mexeu comigo.
O relato autêntico da transformação, da deterioração rápida, provocada pelos Talebãs, do modo de vida da comunidade do Vale Swat onde vivia Malala, trouxe-me o perturbador sentido de presença emergente, de possibilidade real de retrocessos civilizatórios ocorrerem assim, de repente, não mais que de repente, botando a perder valores, direitos, cultura, massacrando identidades duramente construídas, mesmo no curso do supostamente avançado e experimentado século XXI.
Acompanhar os rumos que o Brasil tem tomado nos últimos anos é capaz de provocar perturbação semelhante à que experimentei quando li Eu Sou Malala e tenho por certo que não estou sozinha nisso.
As notícias encontradas na imprensa oferecem elementos suficientes para que os brasileiros minimamente observadores se ponham em estado de alerta. Vejamos:
- Taxa de desemprego sobe a 13,3% no trimestre até junho, diz IBGE. (…) Segundo a pesquisa do IBGE, a população fora da força de trabalho (77,8 milhões de pessoas) é o maior contingente da série: subiu 10,6% (subiu mais 10,5 milhões de pessoas em relação a março e aumentou em 20,1% (mais 13 milhões) frente a igual período de 2019. (correiobrasilizense/economia, 2020/08/06).
- População de rua da cidade de São Paulo cresce 53% em quatro anos. A população de rua da cidade de São Paulo saltou de 15.905, em 2015, para 24.344 em 2019 – um aumento de 53% no período, segundo um senso realizado pela Prefeitura de São Paulo. O número é o maior desde que o levantamento é feito. (g1.globo.com, 2020/01/30). E olha que esta matéria é de período anterior à pandemia.
- Pantanal atinge maior taxa histórica de queimadas em 2020. Até o dia 13 de setembro, o Pantanal acumulou 14.764 pontos de queimadas registrados. O total de 2020, até o momento, é a maior taxa histórica registrada no bioma ao longo dos anos desde 1998. (www.cnnbrasil.com.br, 2020/09/14). Fumaça das queimadas se estendem por 3 mil quilômetros e atingem Sul e Sudeste. Nuvem cinza também chegou a países vizinhos. Em menos de 10 dias em setembro, focos de calor detectados na Amazônia passam da metade do que foi contabilizado no mesmo mês em 2019. No Pantanal, a alta é de 223% em comparação com o ano passado. (g1.globo.com, 2020/09/10).
- Brasil é o 2o no ranking mundial em novas mortes por Covid-19, diz OMS. (noticias.uol.com.br, 2020/08/08). Brasil tem 136.895 mortes por covid e 4,54 milhões de casos. (R7.com, 2020/09/20).
Desemprego, miséria, destruição ambiental e morte em larga escala. A impressão é que o país se desfaz a olhos vistos, até porque ingredientes desestruturantes dão o tom nesse cenário distópico dos 2020 no Brasil, onde o presidente da república banaliza atitudes há pouco impensáveis de ofensa à imprensa, de confronto ostensivo a outros poderes e mesmo de desvalor pela vida do próximo ao promover aglomerações em plena pandemia, desprezar o uso de máscara e fazer apologia de medicamento não indicado para a Covid-19. Mas, afinal, e daí, não é mesmo?
Acrescente-se a tudo isso os fatos de que já se fez reforma trabalhista e reforma previdenciária. Já se impôs teto público de gastos. Já se vendeu bilhões em ativos da Petrobrás e outras empresas estatais, todas medidas precarizantes de direitos dos cidadãos e do próprio Estado e o milagre da grande recuperação econômica não se realizou.
Alguém pode objetar que a pandemia impediu essa recuperação, mas o fato é que a recuperação prometida não havia decolado antes mesmo dessa tragédia de proporções mundiais se instalar.
Não bastasse tudo isso, os governos federal e alguns subnacionais, aproveitando pra passar a boiada, endereçam suas baterias contra o próprio Estado e encaminham às Casas Legislativas reformas administrativas que constituem verdadeiros desmontes administrativos.
No Estado de São Paulo, o PL 529/2020 volta-se contra a Administração Indireta, extinguindo sem critério estruturas responsáveis por moradia popular, transporte público, regularização fundiária, saúde pública, defesa contra doenças endêmicas, remédio popular, em investida inédita em terras bandeirantes contra o Estado em sua acepção de colchão social, necessário ao amparo dos vulneráveis e à mitigação de conflitos.
O governo federal, por sua vez, vai além e pelas mãos da sua PEC 32/2020 investe contra a Administração Direta, com proposta que nos remete de volta para o passado do Coronelismo, Enxada e Voto de um lado, nos lança em cruzada obscurantista da perseguição ideológica de outro, e ainda, num terceiro vértice, estrutura um Estado eminentemente gendarme, onde as responsabilidades centrais são a cobrança de tributos e o controle policialesco das estruturas e da cidadania.
Com algumas palavras chaves introduzidas cirurgicamente no artigo 37 da Constituição, elementos fundamentais do avanço civilizatório inscrito na Constituição Cidadã de 1988 são destruídos, notadamente os concernentes à formação de uma burocracia estatal estável, selecionada pelo mérito derivado de seus conhecimentos e relativamente infensa aos humores políticos.
Subsidiariedade, imparcialidade e liderança técnica são os vocábulos que dão a cara pretendida da coisa, exatamente porque representam o primado do Estado Diminuto (o Mínimo é melhor que isso), cujos quadros funcionais ou estão amordaçados ou são cabrestados.
A Constituição de 1988 desenhou uma democracia social e para dar conta de realizar essa tarefa modelou uma burocracia profissional de largo espectro, elemento indispensável à construção de uma sociedade de direitos.
A burocracia estatal, termo que no Brasil adquiriu sentido pejorativo, mas que corresponde ao corpo funcional do Estado, é o braço necessário à realização das políticas públicas tão necessárias à concretização dos propósitos constitucionais.
Por grande parte da história republicana do país muitos de seus cargos foram objeto de barganha política, reduto de negócios eleitorais.
Somente com a Constituição de 1988 demos início à formação de burocracia majoritariamente estruturada a partir do concurso público, com porta de acesso definida por critérios objetivos e universais.
Não sem o enfrentamento de enormes dificuldades, nos últimos trinta anos houve a estruturação do segmento profissional do Estado nessas bases objetivas, de seleção por qualidade, por conhecimento.
Mas, paradoxalmente (ou não), nunca o funcionalismo teve sua capacidade de trabalho tão questionada, tão difamada, tão desrespeitada quanto nos últimos tempos. Aliás, tão desrespeitada que até Ministro foi condenado a indenizar o funcionalismo público por dano moral.
Pois é com a subsidiariedade (Estado só pode entrar onde não tem atendimento privado), a imparcialidade (gênero do que é espécie a escola sem partido) e a liderança técnica (chefias, inclusive técnicas, exercidas por servidores não concursados, em comissão) que o corpo hoje majoritariamente profissionalizado que compõe o funcionalismo em toda sua dimensão pode voltar a dar lugar a segmento bastante reduzido, amordaçado, e politicamente dependente do governante de plantão.
Trata-se de iniciativa que numa penada só desfigura a burocracia estatal do país e ao fazê-lo inviabiliza a realização dos propósitos do Estado brasileiro de redução de desigualdades, redução da pobreza, oferta universal de educação e saúde pública, dentre outras obrigações constitucionais do Estado. E inviabiliza, porque, para concretizá-las, o Estado precisa empreender políticas públicas que, por sua vez, precisam de servidores capacitados para serem realizadas.
Como nos acontecimentos que se precipitaram sobre o Vale do Swat onde vivia Malala e mudaram para muito pior a qualidade de vida de seus habitantes, as propostas de reformas legais e constitucionais que vêm assolando o país, conduzidas pelas mãos visíveis de políticos que ou se jactam de atributos gerenciais, ou se jactam da absoluta ignorância, têm o potencial de impactar muito negativamente a capacidade do Estado de oferta e atendimento de demandas sociais.
Essa ânsia demolidora dos pilares da Constituição de 1988 pode até render uma ou outra eleição para alguns e milhões, bilhões de dólares para outros. Mas num prazo relativamente curto significará o aprofundamento das desigualdades e o crescimento dos conflitos. É o caminho certo para o terror, especialmente para o terror de Estado.
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Márcia Maria Barreta Fernandes Semer é procuradora do Estado de São Paulo, mestre e doutora em Direito do Estado pela USP. É atual Presidente do SindiproesP (Sindicato dos Procuradores do Estado, das Autarquias, das Fundações e das Universidades Públicas do Estado de São Paulo).
Imagem: Pieter Paul Rubens, Cabeça de Medusa (1616-17)