Sem o processo demarcatório concluso, a insegurança jurídica tem gerado diversos ataques e acusações falsas contra os Nhandeva e Mbya
A Terra Indígena Tekoha Je’y, onde vive uma população de 32 Guarani nhandeva, também conhecida como Terra Guarani do Rio Pequeno, localizada na cidade de Paraty, sul do estado do Rio de Janeiro, enfrenta um conflito decorrente da paralisação no processo administrativo de demarcação do território tradicional, ocupado por famílias nhandeva, mas também mbya; dois grupos do povo guarani.
No início do mês de outubro, a comunidade foi surpreendida com duas notícias: a primeira foi um pedido de reintegração de posse, por parte de ocupante não indígena que não está mais no território. Neste caso o despejo foi suspenso pelo Juízo da Vara Única da Comarca de Paraty, em observação à determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) de que ações de reintegração de posse sejam suspensas ou paralisadas enquanto durar a pandemia do novo coronavírus.
A segunda diz respeito a uma intimação para que o cacique e a vice-cacique da Terra Indígena compareçam à Polícia Federal para prestar depoimento. Aos indígenas vêm sendo imputadas acusações falsas, parte de uma campanha contrária à demarcação impulsionada por interesses eleitorais.
Disseminando informações incorretas pelas redes sociais, o prefeito de Paraty, Luciano Vidal, induz a população do município ao erro ao afirmar que uma terra reivindicada só é indígena após a sua homologação. O pronunciamento serviu de senha para que candidatos à Câmara Municipal espalhem, também em vídeos publicados nas redes sociais, que os indígenas ameaçam a vida dos munícipes e incitam a sociedade de Paraty a agir de forma agressiva contra a comunidade.
De acordo com a Constituição Federal, a demarcação é um procedimento administrativo que define, por meio de estudos estabelecidos por lei, o tamanho da terra para a colocação dos limites
Os Guarani são chamados de terroristas, “índios chinês” e um dos candidatos pede ao prefeito barreiras contra os “corona índios” para evitar “um derramamento de sangue”. O laudo antropológico que identificou a Terra Indígena é acusado, sem provas apresentadas pelos detratores, de ter sido forjado mesmo sendo ele realizado pelo Estado brasileiro por intermédio da Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão indigenista atrelado ao Ministério da Justiça, com todo rigor científico e legal.
De acordo com a Constituição Federal, a demarcação é um procedimento administrativo que define, por meio de estudos estabelecidos por lei, o tamanho da terra para a colocação dos limites. Contudo, o direito dos povos indígenas é declarado, anterior a qualquer outro e, por isso mesmo, originário. É um direito anterior até mesmo à formação do Estado Nacional.
Sem o processo demarcatório concluso, no entanto, dada a morosidade do governo federal, a insegurança jurídica, ao longo dos anos, tem gerado diversos ataques aos nhandeva e mbya, bem como ações de intimidação e discursos de ódio. Há décadas os dois povos convivem harmoniosamente no território, a partir de vínculos matrimoniais, contrastando com a postura da sociedade que os envolve.
Alvo de invasões
Nos anos 1960, o território tradicional passou a ser alvo de invasões por parte de não indígenas. Essas situações de violência e intimidação levaram à expulsão das famílias guarani mbya que lá viviam. Por outro lado, resultou no confinamento dos nhandeva, que permaneceram apesar das dificuldades latentes. Em 2007, demonstrando autonomia e autodeterminação, o povo Guarani se organiza e decide pela retomada do território.
Em 2008, a Fundação Nacional do Índio (Funai) dá início ao processo administrativo de demarcação, resultando num parecer favorável ao Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena (RCDI), que comprova a tradicionalidade do território, publicado no Diário Oficial da União em 24 de abril de 2017. Desde então o órgão indigenista responsável não realizou nenhum tipo de novo procedimento e, dessa forma, o processo demarcatório não teve andamento.
Dez anos após o início dos trabalhos da Funai, a Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), no início de 2018, apresentou notícia-crime sobre ameaças sofridas pelos indígenas locais devido à comercialização de áreas do território identificado. No informe, a CGY afirma que apesar da publicação do RCDI no Diário Oficial houve a venda ilegal de propriedades incidentes na Terra Indígena.
Com o agravamento do conflito, o MPF instaurou uma ação civil pública requerendo que a Funai e a União procedam com a conclusão da demarcação da Terra Indígena Tekoha Je’y
O resultado não poderia ser outro a não ser o aumento das pressões contra os nhandeva e mbya. Em 12 de agosto de 2020, há quase dois meses, foi lavrado um termo circunstanciado na Polícia Civil. Nele um morador indígena diz ter sofrido ameaças de morte na estrada do Rio Pequeno, próxima à Terra Indígena, e informou acreditar que as ameaças estão relacionadas ao conflito pela terra na região.
Com o agravamento do conflito, o Ministério Público Federal (MPF) instaurou, também no último mês de agosto, uma ação civil pública requerendo que a Funai e a União procedam com a conclusão da demarcação da Terra Indígena Tekoha Je’y. Para os Guarani, a demarcação é a garantia do direito territorial, mas também o único caminho para que as agressões cessem.
Esses acontecimentos atípicos no pacato cotidiano dos Guarani tem gerado tensão e angústia entre os moradores do tekoha. Os Guarani temem um processo de criminalização das lideranças, motivado pelo simples fato de estarem resistindo e defendendo o território que tradicionalmente ocupam.
Lideranças de outros territórios indígenas estão na Terra Indígena, desde o dia 12 de setembro, com o objetivo de fortalecer a comunidade com plantio de alimentos tradicionais, construções de banheiros ecológicos e também com a espiritualidade guarani, que é a forma tradicional de lutar e resistir no território.
Solidariedade
Os guarani nhandeva e os guarani mbya seguem vivendo e resistindo no território tradicionalmente ocupado por seus ancestrais. A Terra Indígena está situada em uma região próxima ao centro urbano do município de Paraty (RJ) e também ao município de Cunha (SP). Uma região de interesse para diversos empreendimentos imobiliários, turísticos e para o agronegócio.
Na língua guarani, Tekoha Je’y significa “a terra que está de volta”, demonstrando a importância ancestral do território em Paraty e sua ligação com outras terras indígenas do povo Guarani como parte do Yvyrupa, o grande território do povo Guarani, grande povo. A vida reside também na palavra para os guarani. Para os não indígenas (jurua), as palavras perderam o poder de garantir a vida para espalhar o ódio.
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Famílias do tekoha Je’y lutam pelo território tradicional desde a década de 1960, quando uma nova onda de invasões teve início. Crédito da foto: Richard Wera Mirim