Os Karitiana e a Covid-19. Por Íris Morais Araújo

Proponho uma reflexão sobre as ações Karitiana em função da Covid-19. Até a chegada da doença, o grupo realizou medidas preventivas, valendo-se de sua Festa dos Remédios e, ao mesmo tempo, atendendo às recomendações não indígenas no enfrentamento da gripe. Contudo, após a contaminação generalizada e a ocorrência de dois falecimentos em hospitais, os Karitiana decidiram concentrar-se apenas nos seus próprios meios de cura. Procuro desvendar os fundamentos dessa decisão.

No Mundo Amazônico

À memória do cacique Gumercindo e de sua mãe, a sábia Enedina, falecidos em decorrência da Covid-19, respectivamente, em maio e junho de 2020

Este pequeno texto tem o intuito de refletir sobre os sentidos de algumas das ações protagonizadas pelos Karitiana concernentes à Covid-19. Eles são uma população indígena falante da língua de mesmo nome, da família linguística Tupi-Arikém. Contam com uma população de 397 pessoas (Rocha, 2017) espalhada por seis aldeias e as cidades de Porto Velho e Cacoal, no estado de Rondônia da Amazônia brasileira. Com efeito, quatro dessas aldeias localizam-se dentro da Terra Indígena Karitiana, localizada na primeira cidade e distante cerca de 100 quilômetros de seu centro urbano. Outras duas estão em áreas reivindicadas pelo grupo há décadas à Fundação Nacional do Índio – Funai, pois é parte de seu território tradicional.

As conversas que mantenho pelo Whatsapp com alguns interlocutores Karitiana e a participação em um grupo denominado “Máscaras Indígenas”, formado no mesmo aplicativo para viabilizar a produção máscaras aos indígenas de Rondônia, me permitiram saber dos fatos recentes aqui reportados. Mas eles não se sustentariam sem o trabalho de campo, realizado por oito meses entre 2011 e 2014, a elaboração  dessa  experiência  em  textos etnográficos – aqui recupero, mas também reconsidero e reescrevo, argumentos já apresentados em minha tese de doutorado e em Araújo (2017) – e o contato que mantive com esses amigos desde então.

Não uso o termo “amigos” ao acaso: essas relações são constantes, duradouras e cheias de afeto. Esses diálogos, às vezes muito íntimos, nunca me levaram a cogitar uma eventual publicação. Mas veio a Covid-19, e me  vi disposta a cristalizar na escrita essas relações a distância. Atribuo esse impulso à emergência que todos vivemos, e por isso merecedora de ações (mesmo que pequenas) inéditas. A memória da alegre convivência com os que faleceram me desafiou a elaborar algo a respeito de suas mortes trágicas, talvez evitáveis em circunstâncias políticas menos difíceis a qual vivemos.

As notícias da Covid-19 chegaram, para os Karitiana, pela TV. No começo da pandemia, nossas mensagens abordavam, ambos abismados, sobre a quantidade de falecidos pela gripe na Itália, a preocupação geral sobre nossa saúde e a necessidade de cuidados pessoais para evitar a doença. Também me contavam e me mandavam fotos que o grupo se preparava para chegada da nova doença realizando a Festa dos Remédios. Em sua língua, nomeiam esse ritual – um banho coletivo de plantas diversas garante corpos fortes, saudáveis, os quais as doenças não afetam – por meio da planta gopatoma.

Patom, explicou-me um amigo, é tudo aquilo que uma pessoa não pode ver. Outro interlocutor me explicou, mais concretamente, que patom é a palha utilizada pelo pescador quando usa o timbó, de modo que o peixe não consiga vê-lo; é o arbusto que esconde o caçador da caça. Essas barreiras, contudo, também atuam em sentido contrário, dificultando que os predadores notem suas presas. Para os Karitiana, os males físicos resultam de ataques de agressores. O uso dessas plantas, em especial do gopatoma, os distancia desses não humanos.

Assim, o gopatoma, ao mesmo tempo que protege os Karitiana dos espíritos predadores, tornando-os invisíveis para esses últimos, os impedem de se assustarem, vendo os não humanos o tempo todo. A planta deve ser compreendida à luz das qualidades perspectivas do pensamento ameríndio (Viveiros de Castro, 2002), pois permite que os Karitiana construam um ponto de vista distinto dos seus agressores, criando uma descontinuidade de tal forma que se tornem imperceptíveis uns para outros.

Na Festa dos Remédios, os Karitiana também cantam certas músicas. Ao procurarem  fortalecer  seus  corpos,  e  ao  mesmo  tempo  seus  vínculos  como parentes, os meus amigos referem-se a uma série de animais que consideram sopipok,  espertos,  que  sabem  se  safar  de  ataques.  As  aves  oedn  (tipo  de nambu), pom pom (tipo de nambu), owojopok (tipo de nambu), orojem (japó), e  o  inseto  ereryp  (tipo  de  marimbondo)  figuram  nesse  rol.  A  música  “Ajom ejom”, cantada nessas ocasiões, assim expressa:

Kabmant ajom ejomAgora você ficará forte
Kinda sopipok amejonCoisa forte, esperta
Ejom sopipok amejonVocê ficará forte, esperto
Ejom sopipokoratVamos ficar espertos
Kabmant ajom ejomAgora você ficará forte
Oedn sopipok amejon[Tipo de] Nambu esperto, forte
Oedn sopipokorat[Tipo de] Nambus espertos
Pom pom sopipoko amejon[Tipo de] Nambu esperto, forte
Pom pom sopipokorat[Tipo de] Nambus espertos
Owojopok sopipok amejonCujubim esperto, forte
Owojopok sopipokoratCujubins espertos
Orojem sopipok amejonJapó esperto, forte
Orojem sopipokoratJapós espertos
Ereryp sopipok amejon[Tipo de] Marimbondo esperto
Ereryp sopipokoratMarimbondos espertos, fortes

Mas a gripe, para os Karitiana, é uma velha conhecida. O excerto que se segue, parte do depoimento de Antônio Paulo Karitiana à historiadora Lílian Moser (1993), elabora o estabelecimento de vínculos do grupo com os seringueiros. Nesses encontros, os invasores do território indígena forneciam sal, açúcar, conserva, sardinha, farinha, óleo – mercadorias, em suma. Em meio à profusão de bens, traziam também a gripe e seu remédio – “pílula pequenininha e grande”.

Moraes falou: “não tem sal, acabou o sal” […] “Vamos de novo lá nos brancos buscar sal, açúcar”. […] Pegaram o caminho, caminhando de novo para lá. Chegaram de novo. Diz que estava o Figueiredo. “Oi, compadre!”. Figueiredo  tinha muita mercadoria. Então, ele disse: “Chega, compadre!”. “Compadre, nós queremos sal. Onde tem sal, compadre?” “Sal tem amontoado de sal, mercadoria, todo ele, muito. Leva tudo isso pra lá”. Ele deu conserva, sardinhas e farinha, óleo, açúcar. […]

Fomos andando, andando, até chegar na maloca. Nós chegamos. Rapaz, então, caiu de gripe, tosse, ficou doente! “Rapaz, vamos embora daqui!” E se mandou mais uma vez para lá. Só Moraes ficou primeiro no seu lugar. Aqui, doente chegou. Aqui, pegou da gente. Saiu daqui, aqui doente, pegou da gente. Saiu. Ficou rodando, rodando, Moraes. […] Deu remédio também. Remédio que as pessoas deram para ele. Remédio, antigamente, era pílula pequenininha e grande. Não tinha tanto assim remédio” (Antônio Paulo Karitiana, em Moser, 1993, pp.96-100).

A narrativa trata do ciclo de aproximação do invasor ao território indígena, troca de mercadorias pelo engajamento na teia extrativista e afastamento pela doença. Nesse caso, porém, a completa distância nunca mais ocorreria: Moraes, o cacique protagonista dessa história, resolveu viver perto dos seringueiros. Das suas mãos chegariam também as pílulas para aplacar a gripe.

É possível iluminar o depoimento de Antônio Paulo segundo a formulação de Laura Pérez Gil (2010) sobre o interesse dos Yaminawa em usufruir de inúmeros sistemas de cura, proporcionados ao grupo pela diversidade regional o qual estão inseridos. Segundo a antropóloga,

O diálogo […] é levado aqui até suas últimas consequências: não é feito unicamente um esforço de compreensão e de tradução, mas de aceitar para si as possibilidades abertas pelo outro. Poderíamos dizer que essa abertura à alteridade – a proverbial abertura ameríndia ao exterior – é também, neste caso, uma abertura à cura (Pérez Gil, 2010, p.179).

Antônio Paulo reflete sobre o momento inicial de experimentação, pelos Karitiana, de um tipo de cura exterior à sua. Muitas décadas se passaram, tal interesse se manteve e foi registrado por antropólogos em tempos diversos. Mauro Leonel e Betty Mindlin (1983, p.50) chamavam a atenção, no início dos anos 1980, para o fato de que a administração do então Parque Indígena Karitiana era provavelmente a única a “manter fichas de controle médico e de atendimento de enfermagem em Rondônia”. Duas décadas depois, Felipe Vander Velden (2004, p.130) constatou o bom funcionamento do atendimento à saúde oferecido ao grupo, realizado pela Fundação Nacional de Saúde.

Assim, os Karitiana valorizam sobremaneira tal tipo de vínculo com os não indígenas, efetivado por meio de agentes e dispositivos organizados pela Secretaria Especial de Saúde Indígena, a Sesai. Um de seus jovens líderes, Elivar, é atualmente vice-presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena, o Condisi, que realiza o controle social das ações do órgão estatal, e ativo integrante das ações concernentes à Covid-19 em Rondônia.

Nos períodos em que estive com os Karitiana, foi uma constante conviver com agentes de controle biológico, dentista, enfermeira e técnicas em enfermagem. Vi as últimas visitando casas, auferindo a pressão, acompanhando o peso de crianças e idosos. Também presenciei equipes maiores em campanha para verificação de diabetes ou aplicando vacina contra gripe e HPV.

O convívio entre os Karitiana e tais profissionais é dotado de intensidade e intimidade. Chamou-me a atenção como foram cuidados pelas enfermeiras por ocasião dos falecimentos (tanto o que acompanhei como as notícias    que tive dos demais), que monitoravam constantemente o estado de saúde daqueles gravemente abalados.

Assim, a ideia de um sistema de saúde indígena o qual tem direito e acesso é bastante concreta. Levando em conta a precariedade geral do sistema de saúde pública no Brasil, que atinge as populações indígenas de forma particularmente violenta, não é um exagero afirmar que os Karitiana estão em situação privilegiada nesse quesito.

O eco das epidemias anteriores, e o fato de eles próprios reconhecerem que “quase acabaram”,(1)   levou o grupo a se concentrar em seus territórios e procurarem formas de enfrentar o período difícil que se avizinhava. As equipes de saúde que atuam diretamente nas aldeias tentavam convencer os Karitiana da gravidade da doença, pedindo para que não se deslocassem para o centro urbano de Porto Velho.

Assim, especialmente por meio da atuação da jovem liderança Cledson, atual presidente da Associação Akot Pytim Adnipa – do Povo Indígena Karitiana, o grupo tentava se manter afastado da cidade e, ao mesmo tempo, suprido de alimentos.(2) O presidente da associação mobilizou contatos, lançou campanhas de financiamento, compôs redes de apoio com outros agentes e instituições. Os vídeos feitos por Cledson, veiculados nas redes sociais, mostravam a exitosa distribuição de cestas básicas, materiais de limpeza e kits de higiene pessoal para o grupo.

Os pedidos dos profissionais de saúde para que permanecessem nas aldeias, os esforços das lideranças para abastecerem as famílias e as notícias do aumento das mortes no Brasil, contudo, não foram suficientes para que o grupo deixasse de frequentar a cidade. As notícias de que os beneficiários do programa de transferência de renda Bolsa-Família também se tornavam detentores do auxílio emergencial – garantia do pagamento de seiscentos reais por três meses –, fez com que alguns Karitiana se deslocassem para os bancos e o comércio de Porto Velho.

Com efeito, desde que estabeleceram vínculos com o indigenismo oficial, no final da década de 1960, os Karitiana frequentam regularmente a capital de Rondônia. Se dormem na cidade, alojam-se em uma área onde esteve, até muito recentemente, instalado o escritório da Funai na cidade: por isso, meus anfitriões a denominam simplesmente de Funai.

Situada próxima ao centro e às margens do Rio Madeira, no bairro Arigolândia – um dos mais antigos da cidade, formado na Segunda Guerra Mundial pelos soldados da borracha –, a área é composta de três construções. Uma delas abrigava exclusivamente as salas de trabalho dos funcionários da fundação, e atualmente se encontra abandonada. A outra, as salas da Associação Akot Pytin Adnipa – do Povo Indígena Karitiana e os cômodos usados como alojamento dos Karitiana e de indígenas de outros grupos. A terceira, uma sala sem divisórias que, quando cheia, não deixa de lembrar uma grande casa comunal, também serve de alojamento dos indígenas em Porto Velho.

Esses espaços de uso dos indígenas foram erguidos, de acordo com meus anfitriões, quando o indigenista Apoena Meirelles esteve à frente da Funai. Atualmente, o imóvel encontra-se em péssimas condições físicas e, inclusive, não possui água corrente: os indígenas usam uma bica próxima para beber água, tomar banho, lavar roupa etc. Toda manutenção que recebe (por exemplo, corte do mato) se dá por interesse de quem ali se aloja.

Nenhum Karitiana admite viver nesse lugar – ao contrário de parcelas de outras populações indígenas amazônicas, que se assumem como habitantes do ambiente urbano (por exemplo, para o Alto Rio Negro, Lasmar, 2005; Andrello, 2006; Iubel, 2015) –, pois todos possuem casa em alguma das aldeias do grupo. Ao mesmo tempo, ninguém deixa de frequentá-lo no mínimo alguns dias por mês, quando vão à cidade receber seus benefícios e fazer compras. As idas à cidade – e os usos da Funai –, contudo, ultrapassam uma relação prática. A forma mais precisa de definir esse aspecto é afirmar que os Karitiana – tal como os Yaminawa, pesquisados por Oscar Calávia Saez (2006) e Laura Pérez Gil (2018) – vivem no trânsito entre aldeia e cidade.

Esse deslocamento, segundo os Karitiana, que levou a Covid, em maio, para as aldeias. As notícias que chegavam eram preocupantes. Falavam-me que, com exceção de uma aldeia (essa informação será relevante para o argumento aqui desenvolvido), todos os moradores das demais adoeceram de uma vez. Dor no corpo, falta de ar, febre alta. As equipes de saúde, em atuação com  as jovens lideranças, deslocavam os indivíduos com sintomas mais graves – tinham acesso ao oxímetro e, portanto, conseguiam conferir a saturação de oxigênio dos doentes – para permanecerem em observação na Casa de Saúde Indígena (Casai) de Porto Velho. Alguns deles foram internados, entubados, postos na UTI.

A “abertura para a cura” do outro (Pérez Gil, 2010), no caso dos Karitiana, foi prenhe de consequências, e parece ter grassado uma relação cosmopolítica relevante. A esse respeito, tomo de empréstimo as formulações de Kelly (2009) sobre os modos de relação dos Yanomami com sistemas de saúde exógenos ao seu. É por avaliarem estar em solo estrangeiro que fica garantida, desde o olhar indígena, a eficácia do tratamento médico.

O sistema de saúde participa, agora desde uma perspectiva indígena, de uma economia simbólica da alteridade que constrói relações e significados sociais […] o status de “estrangeiros” e “inimigos potenciais” dos brancos tem repercussões no caráter e na eficiência do sistema de saúde que superam, de longe, as consequências derivadas das incompatibilidades no conhecimento e da prática médica entre os Yanomamis e os profissionais de saúde brancos (Kelly, 2009, p.277).

Ao se colocarem disponíveis aos sistemas de saúde não indígenas, os Karitiana procuram realizar o que Mauro Almeida denominou “acordo pragmático” ‒ “diferentes sistemas do mundo podem entrar em  acordo  sobre certas consequências  pragmáticas  de  seus  postulados,  sem  que  haja correspondência entre esses postulados ou sobre as visões de mundo respectivas” (Almeida, 2003, p.16). Tal assertiva, por sua vez, permite construir uma perspectiva que se afaste de argumentos oriundos da ideia     de aculturação. Aparecida Vilaça (2007) que enfatiza os não  indígenas  como um dentre muitos “outros”, com os quais as populações ameríndias se relacionam acionando a lógica xamânica – que implica percursos corporais – na construção de relações de alteridade. A autora defende que a elaboração ameríndia sobre tais vínculos específicos é uma “fisiologia do contato”, uma vez que o referido nexo os leva a novas experiências corporais. É o caso relativo, por exemplo, do que comem ou vestem. E, novamente para o tema levantado, sobre como podem ser curados.

O grupo opta por lidar com um sistema exterior e ontologicamente distinto do seu, sabendo que os médicos utilizam “diferentes métodos de determinar os fatos e avaliá-los” (Almeida, 2003, p.18). Apostam, contudo, que podem ser comensuráveis na produção de verdades e, no caso aqui presente, de cura. O acordo pragmático, contudo, não anula a diversidade de pressupostos em jogo. Ao mobilizar a Festa dos Remédios, o sentido da doença é a agressão por um não parente; ao procurar o sistema de saúde não indígena, os Karitiana sabem também que se trata de uma gripe, enfermidade causada por um vírus.

A notícia do falecimento do cacique Gumercindo chegou pelo grupo de Whatsapp, no começo da noite de 25 de maio. Ele foi a primeira vítima indígena da Covid-19 no estado de Rondônia. Os áudios enviados por Elivar e Cledson, muito emocionados, denotavam o desespero pela perda. Cerca de dez dias depois, a mãe do cacique, Enedina, moradora de aldeia diferente da do filho falecido, também morreu da gripe.

Consternados com esse segundo óbito, preocupados, os apoiadores dos Karitiana no grupo de Whatsapp “Máscaras indígenas” se perguntavam sobre a viabilidade de uma testagem de toda população, para que se tentasse evitar uma matança ainda maior. Elivar esclareceu que o grupo não queria ser testado: afinal, quem ia doente para a cidade corria o risco de morrer nos hospitais.

Nesse meio tempo, soube que os moradores da aldeia que, num primeiro momento, eram os únicos que não tinham tido contato com a Covid-19, na verdade, esconderam dos  demais  que  também  tinham  adoecido.  Manter  o segredo era fundamental para que não tentassem ser convencidos a se submeterem aos processos de cura disponíveis em ambiente urbano.

A ineficácia da prática médica desmobilizou o grupo na procura pela cura do outro. Os rituais coletivos, depois da trágica experiência de morte, foram considerados o único meio [para] garantir o restabelecimento de seus corpos.

Até agora, felizmente, ninguém mais morreu. Em minha última conversa com Elivar, ele observou que, embora mais magros, embranquecidos e com olheiras acentuadas, seus parentes se recuperavam na aldeia, com seus remédios tradicionais.

Notas

1 O declínio populacional, consequência da intensificação de relações com os não  indígenas, foi violento de tal forma que Darcy Ribeiro, em Os índios e a civilização, de 1957, considerou os Karitiana extintos (Vander Velden, 2012, p. 48). O desaparecimento não ocorreu em função das medidas concretas tomadas pelo grupo. Antônio Moraes – o mesmo que, segundo o depoimento de Antônio Paulo, se estabeleceu próximo aos seringueiros – desposou muitas mulheres, algumas delas interditas pelas regras de casamento. Ademais, dois grupos locais distintos, que se mantiveram relativamente afastados por algumas décadas, se reencontraram e estabeleceram alianças.

2 Os Karitiana adotaram a alimentação não indígena desde o estabelecimento de vínculos perenes com os não indígenas. Em Vander Velden (2008) e Araújo (2017) são discutidos seus fundamentos sociocosmológicos.

Referências

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Fonte:
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Gumercindo da Silva Karitiana foi o primeiro indígena a morrer com Covid-19 em Rondônia. Foto: Reprodução Arquivo pessoal

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