32 anos após a promulgação da Constituição de 1988, a INA defende a integridade do indigenismo constitucional em julgamento no STF

Indigenistas Associados

32 anos após a promulgação da Constituição Federal de 1988 (05/10/1988), a INA protocola razões de mérito como amicus curiae no Recurso Extraordinário n. 1.017.365, para reafirmar o estatuto do indigenismo constitucional, demonstrando os seus aspectos conceituais, técnicos e jurídicos. Reunindo casos concretos e exemplos etnográficos, a INA concluiu que a tese do marco temporal é um critério fictício e artificial, incapaz de abranger toda a complexidade da matéria.

Em 2019, o STF reconheceu a repercussão geral do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, caso que discute uma reintegração de posse movida contra o povo Xokleng, da Terra Indígena Ibirama Laklãno, em Santa Catarina. Isso significa que a escolha desse caso servirá de paradigma para a definição do Tema 1.031, quer dizer, para a definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena, o que terá repercussão sobre todos os povos indígenas do Brasil.

A seguir, elencamos alguns dos pontos centrais identificados pela INA para uma adequada hermenêutica que seja capaz de resguardar a integridade do indigenismo constitucional, considerando a complexidade e especificidade da matéria, bem como o respeito à sua história constitucional:

1) há a necessidade de se levar à sério a matriz principiológica contida no caput do art. 231, a fim de não se confundir os critérios adotados pela Constituição com conceitos civilistas, daí falar-se em “indigenismo constitucional”;

2) os critérios que definem o conceito constitucional de terras de ocupação tradicional (§ 1º do art. 231) devem ser compreendidos de maneira interpenetrada e entrelaçada, como enraizamentos que se entrecruzam, descabendo qualquer hierarquização entre eles, daí falar-se em inadequação da teoria dos círculos concêntricos (círculos justapostos em ordem de precedência entre os critérios);

3) não se deve condicionar os critérios do § 1º do art. 231 às imputações de conceitos civilistas autônomos, vez que os conceitos do indigenismo constitucional têm por guias os princípios norteadores do caput do art. 231 (o necessário respeito às tradições, mundivisões, línguas, organização social dos povos indígenas) e por guardiões os princípios do § 4º (inalienabilidade e indisponibilidade das terras de ocupação tradicional e imprescritibilidade dos direitos originários e do reconhecimento das tradições, mundivisões, línguas, organização social dos povos indígenas);

4) a CF/88 adotou vetores antropológicos e não cronológicos: usos, costumes e tradições de cada povo – daí a necessidade de se prevalecer um efetivo diálogo intercientífico;

5) ao adotar vetores antropológicos, o Constituinte pretendeu justamente evitar se enveredar por complexidades acerca da imemorialidade da ocupação (ou substitutivos temporais);

6) a análise de vários casos etnográficos demonstra que as compreensões endógenas de tempo-espaço de diversos povos indígenas não estão necessariamente contidas nas imputações homogêneas de temporalidade ocidentais, o que traz um problema sem precedentes para as pretensões de se instituir um marco temporal alheio às suas mundivisões;

7) os direitos originários são direitos coletivos e congênitos e, como tal, nascem e morrem com um povo, sendo que tais direitos são imprescritíveis;

8) os procedimentos administrativos realizados por equipes multidisciplinares estão orientados por técnicas e procedimentos de saberes científicos de diversas áreas, como a antropologia, a etnohistória, a arqueologia, a linguística, as ciências ambientais etc, extrapolando, portanto, as acepções e compreensões do saber estritamente jurídico. E além disso, ao contrário do que se supõe, há critérios concretos e objetivos no âmbito dos trabalhos das equipes multidisciplinares para a identificação e delimitação dos ambientes e paisagens indígenas a partir dos modos da ocupação indígena;

9) há o problema em se encarar o indigenismo constitucional pelo recorte de um “fato” indígena, já que o chamado “fato” geralmente retratado pelo “click” da semântica narrada pelos não indígenas tende inevitavelmente a ocultar ou apagar inúmeros elementos atômicos e relações diferenciais de dentro do âmago daquilo que se pode vagamente denominar pelo termo “tradicionalidade”;

10) os intrincados cenários anteriores ao fatídico momento capturado pelo “click” em data escolhida (05/10/1988), incluindo os frequentes históricos de violências e esbulhos contra os indígenas, tendem a desaparecer com uma certa dominância dos quadros instantaneamente retratados das semânticas feitas pelos não índios;

11) o critério de um marco temporal é alheio à moldura do texto constitucional e, na prática, atua como um mecanismo de captura semântica sobre todo o conjunto normativo, colocando todos os procedimentos demarcatórios (inclusive os mais antigos, finalizados há bastante tempo) em absoluta insegurança jurídica;

12) essa captura semântica impõe uma espécie de suspeição inexorável sobre todos os procedimentos demarcatórios, conforme se verifica no boom de judicilizações sobre inúmeros procedimentos administrativos (alguns, aliás, finalizados no começo na década de 1990), desconsiderando as especificidades técnicas de cada etnia e os modos de ocupação singulares de cada povo;

13) essa captura semântica faz inverter a lógica constitucional da anterioridade dos direitos primários e congênitos, fazendo com que, ao invés de se exigir a comprovação por parte dos ocupantes não indígenas de que sua ocupação não decorre de desocupação forçada dos indígenas e de práticas ostensivamente atentatórias contra os direitos existenciais e territoriais dos indígenas, passa na prática a exigir dos indígenas prova quanto a um direito que em tese é congênito ao seu povo e anterior ao próprio texto constitucional;

14) essa captura semântica, ademais, tende a excluir da análise toda a dimensão do esbulho e da violência cometidos contra os povos indígenas;

15) além disso, esse mecanismo engrenado pelo binômio “marco temporal-renitente esbulho” deixa de levar em consideração toda a dimensão das possibilidades e formas de resistência desenvolvidas e encontradas como estratégias de sobrevivência pelos povos indígenas ao longo do tempo, na medida em que o judiciário passa a reconhecer tão somente a violência física e a formalização de disputas judiciais como formas de resistência, quando se sabe que a violência física nem de longe é a única forma de luta e resistência e quando se sabe que antes da CF/88 os indígenas não detinham capacidade civil para ingressar com ações judiciais, sendo que os órgãos que os representavam sabidamente deixavam de fazê-lo.

Em síntese, na avaliação de indigenistas, juristas, lideranças indígenas e do Ministério Público Federal (MPF), a tese do marco temporal é uma tese perversa, pois legaliza e legitima as violências a que os povos foram submetidos até a promulgação da Constituição de 1988, em especial durante a Ditadura Militar, levando a um processo de contínua e sistemática destruição da cultura, dos modos de vida e das condições para exercer os direitos existenciais de um povo enquanto coletividade sociocultural diferenciada.

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