“Queimar a caatinga é formar mais desertos”, diz especialista em meio ambiente

Só no sertão pernambucano já foram contabilizadas cerca de 250 ocorrências de incêndio em vegetação nativa da caatinga

Lucila Bezerra, Brasil de Fato

O número de queimadas no país tem aumentado nos últimos meses, principalmente na Amazônia e no Pantanal; mas o Cerrado, o Pampa e a Caatinga também vêm sendo ameaçados pelos incêndios florestais. A Caatinga abriga aproximadamente 1,5 mil espécies de animais que são ameaçados pelas queimadas. Em Pernambuco, desde o início de agosto, os bombeiros já atenderam cerca de 250 ocorrências de incêndio em vegetação nativa somente no sertão do Pajeú.

O presidente do Centro de Pesquisas Ambientais do Nordeste (CEPAN) e pós-doutor em Biologia, Severino Ribeiro, foi o entrevistado da semana no Revista Brasil de Fato Pernambuco. O pesquisador explicou que essas queimadas podem ser irreversíveis para o solo: “A ciência ainda não tem a resposta de como a gente reverter, de como a gente restaurar, de como a gente recuperar essa área”.

Além disso, ele acredita que as ações e as omissões do Governo Federal têm impactado diretamente no aumento das queimadas e desmatamentos no país: “Problema ambiental sempre teve, mas a gente nunca teve ausência e desmonte”. Confira a entrevista:

Brasil de Fato: A Caatinga ocupa uma área equivalente a 11% do território nacional e abrange os estados do nordeste e o norte de Minas Gerais. Quais são os principais impactos das queimadas na região?

Severino Ribeiro: A Caatinga é um tipo de formação vegetal, que na verdade são as Caatingas, porque temos diferentes tipos de Caatinga: arbórea, arbustiva e herbácea; e esse tipo de vegetação savânica de floresta seca só ocorre no nosso país.

A frequência dos focos de incêndio, que outrora tinha um regime normal – vários ecossistemas brasileiros queimam como um ciclo natural da sua dinâmica de funcionamento -, o que está acontecendo hoje é que devido às atividades humanas, a gente está potencializando a frequência desses incêndios e isso vale para todos os ecossistemas brasileiros.

Hoje estamos vivendo, presenciando, sentindo, os efeitos das mudanças climáticas, os aumentos de temperatura. E na nossa região, a região Nordeste, onde está inserida grande parte da nossa Caatinga, esses efeitos das mudanças climáticas são muito mais frequentes, muito mais persistentes e atuam numa maior magnitude.

A Caatinga é um semideserto, a gente tem uma condição aqui de semideserto, e as mudanças climáticas estão ampliando e potencializando a formação de novos desertos através de um processo chamado de desertificação. São pessoas que queimam a vegetação nativa deliberadamente para abrir pasto, para abrir a fronteira agrícola, para fazer o loteamento; e hoje esses crimes estão muito mais frequentes.

O que a gente está vendo no Brasil é uma tragédia: o Pantanal queimou 24%, isso são dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). O que a gente está vivendo no Brasil hoje é uma tragédia jamais documentada em nenhuma série histórica dos sistemas de monitoramento que acompanham o avanço de queimadas e de desmatamentos no Brasil.

As queimadas já estão a poucos quilômetros do Parque Nacional da Serra da Capivara, que é Patrimônio Cultural da Humanidade e onde estão os primeiros vestígios do ser humano nas Américas. De que forma é possível combater o avanço do fogo?

A gente tem o Parque da Capivara e a Chapada do Araripe, que é outra região muito importante em termos de geodiversidade, de sociocultural – dos hieróglifos, das pinturas rupestres. A chapada do Araripe também abriga uma espécie globalmente ameaçada de extinção, chamada soldadinho do Araripe; e a serra da Capivara talvez seja o sítio histórico-cultural e paleontológico mais importante do mundo. Tudo o que a gente está vendo aqui, do avanço das linhas de fogo, do aumento dos focos de incêndio; tudo isso dava pra ser controlado

É inadmissível que o estado de Pernambuco não tenha um sistema de monitoramento de queimada e desmatamento. A gente tem sistemas gratuitos, como o Mapbiomas, que faz isso. A gente tem sistemas gratuitos que podem ser regionalizados através do nosso Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) para ajudar as nossas agências estaduais de fiscalização e o nosso estado não tem um sistema de monitoramento para entender, combater, prevenir e planejar. Combater queimada requer planejamento e isso só se faz com monitoramento e estudo.

Apesar de também apresentarem queimadas, a Caatinga vem sendo deixada de lado, quando em comparação à outras vegetações no País, ainda que a mesma apresente uma rica biodiversidade que é exclusivamente brasileira. A que o senhor atribuiria esse fato?

A gente tem modificações profundas na dinâmica de funcionamento da Caatinga quando a gente queima. Por ser uma vegetação seca xerofítica, ela queima mais fácil. A gente olha para aquela paisagem e vê aquela vegetação cheia de folhas retorcidas, brancas; daí que vem o nome Caatinga que significa mata branca. Esse nome foi dado pelo efeito visual que a Caatinga tem quando perde as folhas, é uma estratégia que a vegetação tem para economizar água.

Então, ela queima mais rápido, porque naturalmente ela é uma vegetação mais seca. Existe um processo, que é um dos processos que a ciência ainda não tem a resposta de como a gente reverter, de como a gente restaurar, de como a gente recuperar essa área; é um processo chamado de desertificação.

A desertificação acontece pelas más práticas no uso do solo, ou seja, quando a gente corta a vegetação nativa, queima e coloca em uma lavoura. Depois de um tempo, essa área perde a sua fertilidade, então o agricultor vai para outra área, corta, queima e planta. Isso é uma dinâmica socioecológica muito comum no semiárido brasileiro, é o que a gente chama de agricultura de coivara, de corte e queima.

Queimar a Caatinga é a gente formar mais desertos, e quando a gente forma mais desertos, quando a gente amplia essa área de desertificação, a gente está retroalimentando a pobreza. Aqueles sertanejos que vão perder a sua área, que tem potencial de ser cultivada, de produzir alimentos; ele, ao invés de se fixar no seu imóvel rural, no seu sitiozinho, na sua terrinha, ele vai vir pra cidade atrás de emprego, atrás de comida.

Em uma audiência pública do Senado, o ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles criticou um excesso de medidas para proteger os biomas e sugeriu a criação de gado como medida para conter as queimadas. Como esse tipo de posicionamento impacta no jeito que a sociedade entende a preservação? 

O ministro Salles não entende nada de meio ambiente. Ele usa toda essa retórica utilizando de vários e vários dados que são falsos, que não correspondem com a realidade. Esse devaneio de “boi bombeiro”, isso para nós que somos técnicos, que somos pesquisadores, isso é quase uma piada.

Saiu um trabalho muito interessante em uma revista científica muito prestigiosa chamada “Science Advanced”, que é uma das revistas científicas mais lidas do mundo e o professor da UFMG [Universidade Federal de Minas Gerais], Raoni Rajão, conseguiu provar que apenas 2% dos agricultores brasileiros causam os danos na Amazônia, são as maçãs podres. Sendo que essas maçãs podres estão ganhando palco, estão ganhando holofote, estão ganhando voz e essa voz está destruindo a imagem do Brasil no cenário internacional.

Isso implica em redução de investimento, em barreiras para a nossa agricultura, isso implica em várias e várias restrições para firmar acordos internacionais, feito a gente está presenciando essa novela que se tornou o acordo União Europeia – Mercosul por causa das barreiras ambientais que o Brasil não está conseguindo cumprir; diz que vai cumprir, mas no outro dia descumpre. Existe uma insegurança na fala do governo brasileiro, do que ele diz na agenda ambiental brasileira e isso é terrível em todos os sentidos: econômico, ambiental e moral também.

Entre 2019 e 2020, houve uma redução de 58% no orçamento destinado à contratação de pessoal de prevenção e controle de incêndios florestais em áreas federais, apesar de 2020 ter sido o ano com maior número de queimadas na história do Brasil. Como você observa essa medida do governo Bolsonaro e como ela impacta no meio ambiente?

De dois anos pra cá, na gestão do Governo Federal atual, esse tipo de evento vem se tornando cada vez mais frequente. Eu vou parafrasear um Procurador da República que fez uma citação belíssima para a gente entender como a fala de um governante tem um papel importantíssimo. Ele falou o seguinte, que a Amazônia é como uma Bolsa de Valores: se o governo dá um sinal positivo, a bolsa sobe; se o governo dá um sinal negativo, a bolsa desce; e é a mesma coisa na Amazônia. Se o governo fala “ah, não vou punir garimpeiro, não vou punir pessoas que estão fazendo pasto criminoso, não vou queimar as máquinas do garimpo”, o que acontece com o desmatamento na Amazônia? Sobe! O que acontece com as queimadas no pantanal? Sobe! O que acontece com as queimadas ao lado de uma unidade de conservação ambiental como é o Parque Nacional da Serra da Capivara? Sobe!

Problema ambiental sempre teve, mas a gente nunca teve ausência e desmonte. Ausência de fiscalização, pouco dinheiro para o ministério, pouca multa, isso acontecia. Agora, desmonte, falar de passar boiada, tirar deliberadamente resoluções protetivas de manguezal e áreas de restinga, reconfigurar o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) que era a instância máxima de participação social em tomada de decisão para a pauta ambiental brasileira. Isso aqui não é uma fala política, é uma fala técnica de perplexidade, que faz com que a gente não tenha essa tragédia que a gente está vivendo em focos de incêndio e uma completa ausência da prevenção. É uma vontade política, não tem outra explicação.

Edição: Vanessa Gonzaga

Foto: Paula Cavalcanti

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