Ação elaborada conjuntamente por organizações da sociedade civil denuncia ausência de proteção às comunidades diante da Covid pelo Estado brasileiro. Organizações aguardam julgamento da Ação pelo Supremo.
Por Sara Campos, Terra de Direitos
A violação do direito aos territórios pelo Estado brasileiro para as comunidades quilombolas é uma realidade que reverbera com cada vez mais intensidade em contexto de pandemia.
A ausência dos títulos de posse coletiva dos territórios tradicionais têm impactos no cotidiano das comunidades. No entanto, o não acesso aos serviços essenciais possui um agravante neste ano. Políticas públicas como saneamento básico e fornecimento de água e luz são essenciais para garantir mínima proteção diante da Covid. Sem esses serviços, as comunidades estão ainda mais vulneráveis à Covid.
A titulação de territórios vai muito além de um reconhecimento legal e torna-se um documento fundamental que permite o acesso dessas comunidades tradicionais às políticas públicas relacionadas a temas como saúde, educação e agricultura familiar, como Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). O racismo estrutural imposto pelo governo Bolsonaro impulsiona conflitos agrários nas regiões não reconhecidas com disputas de terra com ruralistas e posseiros.
Dados de julho deste ano do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) aponta que apenas 5,34% das localidades quilombolas mapeadas pelo IBGE tiveram o título de propriedade definitiva expedido por órgãos do Poder Executivo Federal ou Estadual, nos termos do determina a Constituição Federal.
Givânia Silva, integrante do quilombo Conceição das Crioulas, em Pernambuco, e membro da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) ressalta que a pandemia aprofundou os danos e prejuízos que estão diretamente relacionados ao racismo estrutural. “Na pandemia, as comunidades sem titulação ficaram mais expostas porque não têm território para produzir e ficaram dependentes de produção externa. Muitos quilombolas residem em áreas sem autonomia para criação de mecanismos de proteção no combate à COVID-19. Já o processo de regularização fundiária que era lento passou simplesmente a não existir após a pandemia”.
A Conaq, com apoio de organizações sociais, entre elas a Terra de Direitos, uniram-se para reivindicar direitos garantidos a esses povos pela Constituição Brasileira e obrigar o governo federal a adotar medidas de urgência no combate à pandemia nos quilombos e de proteção a essas comunidades. Uma construção coletiva que reuniu advogadas e advogados quilombolas de diferentes organizações de direitos humanos, e entidades da sociedade civil resultou no Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 742 que atualmente tramita no Supremo Tribunal Federal (STF), sob relatoria do ministro Marco Aurelio Mello. A peça jurídica aborda diversas violações aos direitos dos quilombolas, entre elas a falta de assistência médica e o acesso a materiais preventivos contra a COVID-19. Protocolada em 09 de setembro, o ministro relator despachou a ação para julgamento pelo colegiado.
“Fica demonstrado amplo quadro de violação de direitos à posse e à propriedade para com as comunidades quilombolas, falha estrutural do Estado em prover o que se determinou na Constituição. O direito constitucional quilombola de acesso ao território, imprescindível para resguardar os modos de fazer, viver e criar, não foi implementado à maioria das comunidades quilombolas”, sublinha um trecho da ação protocolada pela Conaq.
Um exemplo da não estruturação dos serviços essenciais nas comunidades em decorrência da não titulação das áreas é o de saneamento básico. Essencial para contenção da Covid, os municípios com localidades quilombolas possuem o maior índice de inadequabilidade no saneamento, correspondendo a 23,59% dos domicílios, enquanto nos municípios sem localidades quilombolas, a inadequabilidade está presente em 18% dos domicílios (Dados Censo 2010).
“Acreditamos que o Governo Federal precisa ser obrigado a atender aos parâmetros constitucionais de tratamento dessas comunidades, hoje tratadas com total descaso pelo Estado brasileiro” ressalta Maira Moreira, advogada popular da Terra de Direitos.
Entre os juristas consultados para a elaboração da peça estão nomes como Daniel Sarmento, doutor em Direito Constitucional; Carlos Marés, especialista em defesa dos povos indígenas e Deborah Duprat, reconhecida publicamente pela defesa dos Direitos Humanos. “Tivemos um longo processo de escuta, conversando com juristas experientes. Esses especialistas nos ajudaram no aprimoramento de nosso pedido”, destaca Biko Rodrigues, da Conaq.
Resistência
Visando a não proliferação do coronavírus, muitos territórios quilombolas utilizaram recursos de barreiras sanitárias, também conhecidas como áreas de proteção. “Como muitas comunidades não possuem titulação, isso fez com que muitas delas não fossem respeitadas por posseiros que estão dentro do limite territorial. Isso causou muitos conflitos aqui na região e em vários quilombos do Brasil”, ressalta Aurélio Borges, da coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará (Malungu), residente no quilombo Macapadinho, única comunidade quilombola titulada no município de Santa Isabel, no Pará.
Segundo o levantamento da Malungu, apenas no Pará foram catalogadas 528 comunidades quilombolas. O número foi resultado de um cruzamento de dados fornecidos pelo IBGE, Incra e CPI Proindio.
Procuradoria-geral da República
Na última semana, dia 05, a Procuradoria-Geral da República (PGR) defendeu que o Supremo Tribunal Federal estabeleça um prazo ao governo federal para detalhar medidas a serem tomadas no enfrentamento à pandemia nas comunidades quilombolas. Em seu parecer o procurador-geral da República, Augusto Aras, também manifestou-se favoravelmente à criação de um grupo de trabalho para avaliar as medidas já realizadas e para planejar outras ações de prevenção.
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Imagem: Comunidade quilombola no município de Alcântara (MA) – Foto: Agência Brasil