Após assassinato no Carrefour, Bolsonaro critica a revolta, não o racismo. Por Leonardo Sakamoto

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Diante da morte de João Alberto Silveira de Freitas, um homem negro, pelas mãos de um segurança e um policial militar brancos, em uma unidade do Carrefour, em Porto Alegre, o presidente Jair Bolsonaro criticou a revolta, não o racismo.

Em uma série de postagens no Twitter, Bolsonaro diz que “brancos, negros, pardos e índios” vivem em harmonia e que há quem queira plantar “o conflito, o ressentimento, o ódio e a divisão de classes”, mascarando isso de “luta por igualdade” e “justiça social”.

Ignorando a violência causada pelo racismo, disse que “não adianta dividir o sofrimento do povo brasileiro em grupos”. E afirmou que “aqueles que instigam o povo à discórdia, fabricando e promovendo conflitos, atentam não somente contra a nação, mas contra nossa própria história”. E crava: “seu lugar é no lixo!”

Ou seja, como o presidente não acredita em racismo, quem protesta contra uma sociedade e um Estado racistas atenta, segundo ele, contra o país e deveria ser descartado. Um pouco mais e evocada a Lei de Segurança Nacional.

E, despejando uma betoneira de cinismo, ainda citou a “corrupção política” como um grande mal do país, sem discorrer, claro, sobre o fato de seu filho, o senador Flávio Bolsonaro, ter sido denunciado por desvios de recursos públicos, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha.

Nada disso é novo. O que nos leva a reconhecer que ele não cometeu estelionato eleitoral sobre o ódio e a intolerância. Entrega, portanto, o que prometeu em campanha.

Em 23 de outubro de 2018, chamou de “coitadismo” as políticas de cotas em entrevista à TV. Na sua opinião, ações afirmativas – instituídas para compensar desigualdades estruturais – reafirmam o preconceito e dividem a sociedade.

“Isso não pode continuar existindo. Tudo é coitadismo. Coitado do negro, coitado da mulher, coitado do gay, coitado do nordestino, coitado do piauiense. Vamos acabar com isso”, afirmou. Cinco dias depois, foi eleito.

Em julho daquele ano, questionado sobre a forma que pretendia reparar a dívida histórica da escravidão, respondeu: “Que dívida? Eu nunca escravizei ninguém na minha vida”.

Em abril de 2017, deu uma declaração que entrou para os anais mais fedorentos da história recente: “Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve mais”.

Se isso enoja parte da população, excita a outra, que não se indigna diante de uma mulher negra ganhar, em média, muito menos que o homem branco para exercer a mesma função. Indigna-se com quem diz que racismo existe. Nem fica revoltado diante da morte de jovens pobres e negros pelas mãos da polícia. Revolta-se com a filha negra da empregada se sentar no mesmo banco de faculdade que eles. E não acha preconceito espancar o sujeito negro que foi acusado de roubar o próprio carro no estacionamento de um supermercado – um supermercado Carrefour, aliás, em 2009. Para essa parte da sociedade, preconceito são as cotas.

Alinhadíssimo com o chefe, o vice-presidente, Hamilton Mourão, cravou que não existe racismo no Brasil ao comentar a morte de João Alberto. E, mostrando-se adepto do bolsonarismo-raiz, afirmou que “isso é uma coisa que querem importar aqui para o Brasil”. Disse que racismo existe nos Estados Unidos, não aqui.

Esse é o mesmo Mourão que, em outubro de 2018, afirmou: “Meu neto é um cara bonito, viu ali? Branqueamento da raça”.

A frase sobre o “branqueamento da raça” tem respaldo entre parte dos cientistas, intelectuais e médicos brasileiros do final do século 19 e começo do século 20 que defendiam que a “mistura de raças” levaria ao embranquecimento da nacionalidade, pois a “raça branca” seria superiora e triunfaria ao final. Naquela época, isso era visto como ciência. Hoje, como racismo.

Esse é o mesmo Mourão que havia dito, em agosto daquele mesmo ano: “Temos uma certa herança da indolência [vagabundagem, preguiça], que vem da cultura indígena. Eu sou indígena. Meu pai é amazonense. E a malandragem, Edson Rosa [vereador negro, presente na mesa], nada contra, mas a malandragem é oriunda do africano. Então, esse é o nosso caldinho cultural”.

Se a vagabundagem é indígena, a malandragem é negra, o genocídio é branco?

Para endossar o presidente e o vice, há quem demonstrou mais solidariedade ao vidro quebrado em protestos do que à revolta de pessoas que sabem que podem ser mortas no supermercado por ter a cor de pele “errada”. Desenhando: brancos > vitrines > negros.

Políticos dizem não incitar a violência com suas palavras. Por vezes, não são eles que atacam, mas é a sobreposição de seus discursos violentos ao longo do tempo que distorce o mundo e torna agressões banal. Ou, melhor dizendo, “necessárias” para garantir que o país se mantenha em ordem.

A harmonia pregada por Bolsonaro entre os diferentes grupos que compõe a sociedade brasileira é uma ficção. O falso equilíbrio acontece na base da porrada, do estupro, da ameaça, da cooptação. Tudo está em paz desde que seja da forma como o poder quer. Quando alguém questiona o lugar que lhe foi pré-determinado, é “educado” com truculência física e simbólica até que seja “convencido”

Para os dois líderes do país, não existe racismo no Brasil. O que existe são coincidências.

Como aquelas que fazem com que balas de revólveres acertem mais os jovens negros e pobres. Ou que faz com que os joelhos de agentes de segurança aterrissem no pescoço de homens negros até que eles não possam mais respirar.

Foto: Reprodução de vídeo da internet

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