Crianças indígenas retiradas das famílias: “o culpado é o próprio governo”

Documentário “Negligência de quem?” estreia hoje, 24/11, seguido de debate, às 17 horas com especialistas entrevistados no filme.

por Silvana Jesus do Nascimento, em Le Monde Diplomatique

Ao apresentar a problemática das crianças indígenas kaiowá e guarani em situação de acolhimento institucional em Dourados (MS), destacando o drama vivido por algumas mães que tiveram seus filhos levados a esses abrigos, os documentaristas Joana Moncau e Spensy Pimentel acertam ao propor como ponto de partida a indagação: “Negligência, de quem?”. Embora exista uma variedade de explicações para a motivação de cada caso de institucionalização de crianças indígenas, a maioria aponta para a insuficiência do Estado em oferecer respostas aos problemas sociais denunciados pelos Kaiowá e Guarani.

Durante reunião da Kunhangue Aty Guasu – Grande Assembleia das Mulheres Kaiowá e Guarani – realizada no município de Amambai, em 2018, ao refletir sobre o caso de uma das personagens do documentário, Élida de Oliveira, uma liderança kaiowá presente disse:

Quem é o culpado de tudo, dessa retirada de crianças guarani? O culpado é próprio governo, […], porque nós não temos mais rios, não temos mais bicho, não temos mais caça, não temos mais mel, não tem mais, por isso estamos morando na beira da estrada, embaixo de lona, estamos tomando água suja. Isso é que vocês têm que entender. Quem é o culpado? É o próprio governo.

Foi em meados dos anos 2000 que ganharam destaque nacional na imprensa as denúncias sobre mortes de crianças indígenas por desnutrição em Mato Grosso do Sul. O estado concentrou, por volta de 2004/2005, um alto índice de registros de mortalidade infantil, o que foi objeto de investigação de duas Comissões Parlamentares de Inquérito – uma estadual, em 2005, e outra federal, em 2008 – que deveriam apurar as causas, as consequências e os responsáveis pelas mortes de crianças indígenas por subnutrição. É em meio a essa busca do Estado por oferecer resposta a essa problemática que novos agentes e políticas entraram em cena e se depararam com a questão dos acolhimentos de crianças kaiowá e guarani.

Foi nesse período, em que eu cursava a graduação em Ciências Sociais na recém criada Universidade Federal da Grande Dourados que me aproximei das histórias sobre a judicialização envolvendo a guarda das crianças indígenas kaiowá e guarani, em Mato Grosso do Sul. A retirada, o “abrigamento” (termo utilizado na época) e a adoção (como se diz hoje, compulsória) dessas crianças por outras famílias provocava, e ainda provoca, discussões acaloradas entre os agentes da chamada “rede de proteção”. Entretanto, o tema aciona experiências de sofrimento, violência, indignação e luta de longa duração na história dos povos indígenas.

Naquele momento, para muitas famílias, o recolhimento de um ou mais dos seus filhos em situação de desnutrição dava-se com a hospitalização e posterior internação social para recuperação de peso no Centro de Recuperação Nutricional, conhecido como Centrinho, equipamento anexo ao Hospital da Missão Evangélica Caiuá, da Igreja Presbiteriana, situado ao lado da Reserva Indígena de Dourados – uma das mais populosas terras indígenas do país, com quase 20 mil habitantes, hoje, dos grupos Kaiowá, Guarani e Terena. Nos casos em que a família não possui uma rede de cooperação e apoio forte, é quase impossível para as mães kaiowá e guarani manterem a dedicação exclusiva de acompanhamento ao filho. O tempo prolongado da internação social, portanto, frequentemente gera o afastamento da criança de sua família e parentela.

A parentela ou família extensa é central para a organização social Kaiowá e Guarani, sendo denominada por eles te´ýi.  Uma parentela reúne três gerações interligadas por meio dos “fogos domésticos”. Os fogos domésticos se assemelham com as famílias nucleares, mas diferem destas, pois geralmente contam com a grande presença de agregados como crianças adotivas e outros parentes. A criança kaiowá e guarani é socializada no fogo doméstico e na parentela. A circulação das crianças entre outras parentelas ocorre na medida em que se cresce e seguindo as regras de relações do seu grupo.

A construção do “abandono” das crianças kaiowá e guarani ocorria na medida em que era inviabilizada a convivência no fogo doméstico e na parentela. Como alternativa, elas poderiam ser colocadas em famílias substitutas indígenas de outra parentela ou grupo étnico ou serem “abrigadas”. A condução das crianças kaiowá e guarani a abrigos urbanos concentrou a maior atenção no debate público, por deixar em aberto o destino da criança, que poderia retornar para alguma das comunidades indígenas do entorno, permanecer institucionalizada ou ser encaminhada para a adoção por não indígenas em âmbito nacional ou internacional, conforme a decisão da Justiça.

Em Mato Grosso do Sul, os tensionamentos na “rede de proteção” se iniciaram quando as agências da esfera federal (Fundação Nacional do Índio, Ministério Público Federal e Universidade Federal do Mato Grosso do Sul) passaram a realizar o enfrentamento público das práticas protetivas da criança indígena realizadas pelas esferas estadual e municipais (Vara da Infância e Juventude, Promotoria da Infância e Juventude, Conselho Tutelar, instituições de abrigamento e outras entidades da sociedade civil). Acusados de privilegiarem o afastamento da criança indígena do convívio familiar e comunitário por preconceito étnico e econômico, os agentes das instituições estaduais e municipais reagiram destacando as graves violações de direitos vividas pelos povos indígenas e a contradição com o princípio do melhor interesse da criança.

A polarização do debate público sobre o recolhimento das crianças kaiowá e guarani pelo Estado parece nos colocar diante de uma grande novidade. Entretanto, a literatura histórica e antropológica demonstra que essas micropolíticas que envolvem escolarização e internatos de crianças e jovens são fenômenos antigos na história dos povos indígenas. Entre os Kaiowá e Guarani, mesmo levando em conta apenas o último século, há mais de uma geração que foi socializada entre missionários, “fazendeiros” e outros não indígenas.

A situação dos Kaiowá e Guarani sofreu profundas alterações logo após a Guerra da Tríplice Aliança (1864- 1870). As diferentes etapas de exploração econômica, começando pela erva mate, depois gado, soja e cana-de-açúcar vêm marcando a história desses indígenas. As iniciativas desenvolvimentistas interferiram na vida dos Guarani e Kaiowá e gradativamente geraram o que é conhecido como “confinamento” das famílias indígenas em reservas.

A característica principal do confinamento kaiowá e guarani é a insuficiência de terras para a sobrevivência física e cultural. O Estado brasileiro, ao liberar as terras kaiowá e guarani para as frentes de colonização, no século passado, confinou esses povos em oito reservas indígenas espalhadas pelos municípios do Sul de Mato Grosso do Sul. A perda da terra veio acompanhada pelas interferências crescentes do Estado no dia-a-dia da vida na aldeia.

As relações de parentalidade kaiowá e guarani foram fragilizadas por epidemias como a febre amarela e a tuberculose, mas também pela mistura arbitrária de parentelas e a emergência de novas figuras de autoridade – frequentemente autoritárias – que caracterizam os espaços de reservas indígenas. Uma geração de lideranças kaiowá e guarani sofreu os impactos da interação social de suas comunidades com colonos, missionários e indigenistas. Orfanato, escola e hospitais foram algumas das entidades assistenciais instaladas arbitrariamente na Reserva Indígena de Dourados que limitaram as possibilidades de reprodução do sistema social indígena – “avá reko”.

O trabalho de crianças e adultos nas fazendas da região foi um dos modos de sobrevivência que as famílias indígenas encontraram. A partir de relações de apadrinhamento e compadrio, crianças e jovens indígenas desempenharam tarefas rotineiras no cotidiano das fazendas, o que colaborou na negociação da permanência de grupos kaiowá e guarani nos seus territórios tradicionais, em vez de serem levados para as reservas.

O fato de a circulação das crianças indígenas para fora das suas parentelas ser histórica não reduz a complexidade da problemática na atualidade. Quando esses casos são analisados não apenas por motivações individuais, mas em uma perspectiva sociológica, é evidenciada a política de assimilação cultural envolvida. No passado, a integração dos índios à sociedade nacional foi imaginada por meio de uma micro e uma macro política de diluição dessas comunidades nas camadas mais vulneráveis da população.

A questão é que atualmente a linha política oficial é de reconhecimento das diferenças. O que implica na transformação não somente de instituições e discursos, mas de sensibilidades e afetos. As políticas indigenista, da infância e juventude e da assistência social passam a atuar conforme o novo paradigma. É nesse cenário que emergem os burburinhos com relação aos modos mais adequados para se realizar o cuidado institucional das crianças e jovens kaiowá e guarani.

Os militantes e críticos das políticas para as crianças indígenas passaram a apontar que a universalização da infância e juventude não é suficiente para garantir os direitos das crianças indígenas. Chamaram a atenção para os modos distintos de concepção da infância e da família entre os povos tradicionais. Exploravam, a partir de casos concretos, a violência potencial do “choque cultural” na chegada das crianças a instituições que não as recepcionam em sua língua, e que as expõem ao preconceito não apenas com relação aos seus familiares, mas também ao seu grupo étnico.

Avanços tímidos

Duas décadas após a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente [ECA], é aprovada a Lei nº 12.010, de 2009, que ficou conhecida como a “Nova Lei da Adoção”. Iniciava-se, no Brasil, um período em que a prioridade dos interesses da criança e do adolescente e os direitos reprodutivos dos povos indígenas pareciam andar juntos.

Noções carregadas de estigmas como “família desestruturada”, “índios desaldeados” ou “índios integrados” pareciam dar lugar a perspectivas que destacavam as relações familiares e de parentesco e o direito a autoidentificação que podiam ser acionadas em uma política de proteção integral às crianças e adolescentes.  Seguindo as orientações legislativas internacional e nacional, a política de “convivência familiar e comunitária” era incorporada à discussão, compondo o interesse prioritário da criança. Considerava-se que as famílias indígenas, confrontadas por um histórico de violação dos seus direitos, em que foram impossibilitadas de viver plenamente de acordo com os seus costumes e tradições, tinham direito de receber amparo público, quando necessário, para poder criar seus filhos em condições dignas. Os esforços seriam investidos na manutenção das crianças em suas famílias de origem, reservando-se a adoção para situações excepcionais.

Os registros mais atuais de crianças kaiowá e guarani em acolhimento institucional apontam para uma visão menos otimista. As crianças indígenas, especificamente as kaiowá e guarani, são maioria em várias casas de acolhida do Sul de Mato Grosso do Sul. Há vários anos agentes e militantes da Rede de Proteção em Dourados vem chamando a atenção para esse dado no município. Os dados sobre a identidade étnica das crianças com medidas de proteção são tratados com indiferença na política pública, o que dificulta a apreensão dessa realidade. Entretanto, depreende-se dos dados de relatório produzido pela Funai[1], em 2017, que a preponderância das crianças kaiowá e guarani institucionalizadas é recorrente também em outros municípios do Estado.

Em 2018, o Conselho Indigenista Missionário denunciou a retirada de crianças guarani e kaiowá das aldeias de Mato Grosso do Sul para a ONU. Destacou a situação de crise humanitária vivida pelas crianças e famílias da Reserva Indígena de Dourados. A questão também vem sendo tema das reuniões realizadas pelos movimentos guarani e kaiowá, que têm convidado os agentes públicos a se manifestarem. As mulheres têm ocupado um espaço de destaque nessas assembleias expondo a dor de serem afastadas dos filhos e reivindicando o direito de criá-los de acordo com sua cultura.

Como concluiu a Rede de Apoio e Incentivo Socioambiental, em relatório coordenado por mim, realizado, em 2020, sobre a situação das crianças kaiowá e guarani: de um lado percebe-se a  persistência da problemática da criança e do jovem indígena e a falta de habilidade do poder público em oferecer respostas efetivas para a nutrição e o cuidado das crianças; de outro lado, a complexificação dos modos de cuidados de crianças pelos Kaiowá e Guarani a partir dos processos históricos de colonização. Não há saídas simples, como se pode imaginar à primeira vista, mas há muito por fazer.

Nos últimos anos têm sido ampliados os dispositivos jurídicos de reconhecimento da identidade étnica das crianças e jovens dos povos tradicionais. A conceituação normativa de família extensa é uma abertura importante para a diversidade cultural. A possibilidade da atuação de outras instituições e agentes na rede de proteção às crianças e adolescentes – como indigenistas e antropólogos – também possibilita a pluralização das vozes nos processos judiciais. Infelizmente, ainda são recorrentes as denúncias de descumprimento dessas medidas legais que possibilitam o direito à ampla defesa das famílias indígenas.  É necessário avançar ainda mais, como no direito à consulta aos povos indígenas, como prevê a Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho, ratificada no Brasil em 2004.

Os indígenas precisam ter participação ativa nos espaços de cuidado e proteção das suas crianças. A construção conjunta de espaços de diálogos e implementação das soluções por eles proposta é condição fundamental para romper com as práticas de racismo institucionalizadas. Incorporar as diversas vozes existentes nas comunidades indígenas é o caminho para a construção de uma ética de cuidado plural para as crianças e jovens indígenas. Mas, para isso, é preciso reconhecer os indígenas como sujeitos de conhecimento e mestres de saberes profundos. É preciso apurar o olhar e o coração para as famílias e as parentelas das crianças kaiowá e guarani.

Silvana Jesus do Nascimento é cientista social formada pela Universidade Federal da Grande Dourados e doutora em Antropologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Como indigenista, atua como membro da Rede de Apoio e Incentivo Socioambiental (RAIS) (e-mail: [email protected]).

Debate sobre o documentário, dia 24, 17 horas, no canal no Youtube do Diplô, acesse  https://www.youtube.com/diplobrasil

Participam do debate:

Janete Alegre, liderança indígena e integrante da Kuñangue Aty Guasu – Grande Assembleia das Mulheres Kaiowa e Guarani

Marco Antonio Delfino de Almeida, procurador do Ministério Público Federal (MPF) em Dourados (MS)

Silvana Jesus do Nascimento, antropóloga sul-mato-grossense, doutora pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Neyla Ferreira Mendes, defensora pública e Coordenadora do Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Povos Indígenas e de Igualdade Racial e Étnica – NUPIIR

A mediação será feita por Spensy Pimentel, antropólogo e jornalista.

[1] FUNAI/BRASIL. Relatório Mapeamento qualificado de todos os casos de crianças e jovens indígenas em situação de acolhimento institucional e familiar da região de Dourados/ MS. Coordenação Regional da Funai de Dourados/MS. Serviço de Promoção dos Direitos Sociais e de Cidadania – SEDISC. Novembro de 2017. Disponível em: http://www.suas.sedhast.ms.gov.br/wp-content/uploads/2019/09/3.2-RELAT%C3%93RIO-Mapeamento-Qualitativo-dos-casos-de-acolhimento-institucional-de-crian%C3%A7as-e-jovens-ind%C3%ADgenas-CR-Dourados-1.pdf. Acesso em 21/11/2020.

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