IX Fospa publica Carta de Mocoa

CPT

Documento reúne reflexões e apostas tecidas durante a nona edição do Fórum. Carta traz apontamentos construídos coletivamente durante todo processo iniciado há três anos, em seguimento à Carta de Tarapoto, fruto da edição anterior do Fospa, realizada no Peru.

O IX Encontro Internacional do Fórum Social Panamazônico (Fospa) foi realizada entre os dias 12 e 15 deste mês de novembro e reuniu cerca de 1.300 pessoas de diferentes países. Todo o processo envolveu a realização de 14 pré-fóruns, nos nove países da Pan-Amazônia, além da programação do Fospa Em Movimento.

Leia a Carta na íntegra:

CARTA DE MOCOA

Voltemos à terra: um apelo à unidade dos povos para tecer os caminhos em direção a uma vida digna na Amazônia

Com a permissão dos antepassados, homens e mulheres idosos, homens e mulheres sábios; do IX Encontro Internacional do Fórum Social Pan-Amazônico FOSPA, dirigimos estas palavras para que ressoem nos sentimentos daqueles que habitam e se relacionam com a Amazônia.

A Lei Maior que nos convoca a viver com dignidade na diversidade indígena, camponesa, negra, ribeirinha, urbana, de gênero e idade; chamamos a sentir a partir das espiritualidades, a olhar para dentro de nós mesmos, a fortalecer nossos laços e curar as feridas de nosso território e corpo, a ganhar a força interior, a unidade que, como povos, necessitamos para a compreensão e ação conjunta no cuidado e defesa da Amazônia.

– ACESSE O ATLAS DE CONFLITOS SOCIOTERRITORIAIS PAN-AMAZÔNICOS EM PORTUGUÊS (AQUI) E EM ESPANHOL (AQUI)

ESPERANÇA PARA A AMAZÔNIA

É o momento de voltarmos às nossas origens e planejar a vida conforme nossas próprias visões, espiritualidades e com nossas próprias mãos. Empresas e governos corporativistas mantêm uma organização estatal subordinada ao modelo de desenvolvimento do capital, com uma visão neoliberal de saquear os bens da mãe terra, que é a salvaguarda para a sobrevivência e o bem viver do povo aqui estabelecido. Esta apropriação abusiva e violenta ignora os habitantes, homens e mulheres, dos territórios amazônicos e espezinha os direitos humanos e os da natureza. Os Estados que afirmam representar os interesses dos cidadãos, mas colocam nosso patrimônio e nosso trabalho nas mãos de empresas transnacionais, são Estados traidores e criminosos.

O ecossistema amazônico é uma floresta de complexas interações e sabedoria natural com mega biodiversidades, expressões naturais e culturais, desde os Andes até o Atlântico. A defesa da floresta exige aprender a viver com ela, compartilhando suas próprias formas de abrigo, alimentação, economia, medicina e sabedoria ancestral, caminhando para relações de respeito e igualdade em nossas comunidades, erradicando todas as formas de violência.

Esta força vital não é compreendida nem compatível pela sociedade consumista com suas ambições extrativistas, que a partir de uma visão inaceitável de acumulação, age sem se importar com a destruição da casa comum, como sinal de uma decomposição da espécie humana, gerada por suas formas exploradoras de relacionamento. Aprenderemos a viver bem, consolidando comunidades autônomas com uma ética simples: a da vida, e suas manifestações  amazônicas  particulares;  com  processos  de  sobrevivência  e  convivência compatíveis  com  ela,  sabendo  que  a  defesa  da  floresta  amazônica  contribui  para  a conservação da vida no planeta.

Hoje sofremos uma crise ambiental, social e política que vai contra este destino natural. A incapacidade  das  empresas  e  dos  Estados  de  proteger  a  humanidade  da  pandemia de Covid-19 expôs o fracasso do modelo neoliberal e mostrou, ao contrário, o aprofundamento estrutural das brechas sociais, étnicas e de gênero de um desenvolvimento colocado nas mãos do privado sobre o público, o que levou a uma alta concentração de riqueza, além de ter sido atravessada pela corrupção.

Em meio à intensificação da crise climática e de saúde que atinge especialmente as pessoas empobrecidas, as mulheres e os povos indígenas, os governos têm aproveitado para ditar políticas  de  “recuperação  econômica”  que  beneficiam  abertamente  grupos  financeiros  e empresariais. O confinamento tem servido para intensificar os megaprojetos de mineração e  energia,  infra-estrutura  e  a  expansão  da  agroindústria  e  da  pecuária  extensiva.  Estas medidas  anunciam  uma  época  de  extrema  despossessão  dos  elementos  vitais  para  a sustentabilidade física e cultural de todos os povos da Amazônia, rurais e urbanos.

Este modelo está sendo imposto pelo crescente recurso a governos ditatoriais na tentativa de desmantelar, através de estratégias estatais e paraestatais, os processos de resistência dos povos à pilhagem e desterritorialização, atropelando os direitos de protesto social e oposição  política.  Hoje  vivemos  os  casos  da  Colômbia  e  do  Brasil,  onde  há  numerosos assassinatos de cuidadores de territórios e da natureza, bem como a situação na Venezuela, onde seu povo tem sido submetido a medidas coercitivas unilaterais de nível internacional. Mas também vemos com preocupação como a elite corrupta do Peru, liderada por grupos econômicos  e  políticos  ultraconservadores,  tentou  tomar  as  rédeas  do  poder  pela tempestade  para  impedir  o  surgimento  de  movimentos  alternativos  em  detrimento  das liberdades, da democracia e dos direitos humanos, tirando a vida de dois jovens.

Tudo  indica  que  perdemos  o  horizonte  da  vida  e  que  é  necessário  recuperá-lo urgentemente.  É  por  isso  que  o  chamado  para  retornar  à  origem,  às  nossas  raízes territoriais e culturais, a fim de corrigir profundamente os rumos que a história tomou, particularmente na Amazônia.  Avançar em direção à AMAZÔNIA     QUE QUEREMOS, implica no compromisso de todos nós com o desenvolvimento das seguintes tarefas que este IX FOSPA propôs:

Povos e culturas na identidade amazônica:

  • Fortalecer  a  identidade  amazônica  e  latino-americana  dos  povos  como  produto  de  um intercâmbio  complexo  que  deu  origem  à  diversidade  cultural  amazônica.  Promover  o reconhecimento dos países como uma diversidade territorial que inclui a Amazônia.
  • Defender  a  decisão  dos  Povos  em  Isolamento  Voluntário  e  Contato  Inicial  (PIACI)  e  a intangibilidade dos territórios ocupados por eles.
  • Reconhecer e proteger os anciãos de nossos povos indígenas, camponeses e negros como garantes da sabedoria ancestral e da memória cultural, em face da mercantilização de nosso conhecimento.
  • Do princípio da natureza saudável – povos saudáveis, propomos fortalecer nosso próprio sistema de saúde baseado na  medicina  ancestral e o  reconhecimento  de  aspectos culturalmente apropriados da saúde ocidental.
  • Desenvolver a educação intercultural comunitária como expressão do respeito e tecido das culturas na construção de uma cidadania plurinacional como povos amazônicos.
  • Trabalhar para a integração dos povos, a transformação de nossos conflitos territoriais e interculturais e de relações eqüitativas entre o rural e o urbano.
  • Repensar  o  processo  de  urbanização  em  direção  às  cidades  com  foco  amazônico, que reconhecem as territorialidades dos povos e culturas amazônicas nelas. Implica também a adoção da abordagem amazônica no sistema educacional, que forma consciências e práticas amazônicas na infância e na juventude.

Territórios e modos de vida:

  • Promover a soberania energética, hídrica e alimentar nos territórios da Amazônia, como expressão  da  gestão  comunitária  do  território,  com  a  participação  ativa  de  mulheres  e jovens.
  • Promover a transição democrática, justa e popular da energia para a comunidade e o uso público de energia limpa, tornando a produção, o acesso e o gozo da energia um direito dos povos da Amazônia.
  • Fortalecer e promover economias transformadoras como culturas de vida que contribuem para a implementação de relações de convivência harmoniosas com a Amazônia.
  • Promover economias locais ou de vizinhança e integração em um mercado autônomo com regras de intercâmbio comunitário e solidário.
  • Promover  a  agroflorestação  ecológica,  a  agricultura  familiar  camponesa  e  a  gestão comunitária da selva e das florestas, para a segurança alimentar e a soberania.

Autonomia e autogoverno:

  • Compreender,  adotar  e  expandir  iniciativas  de  governança  comunitária  baseadas  nos princípios da vida e da lei de origem como um guia para uma boa vida em harmonia com a Amazônia.
  • Valorizar a miscigenação e os pardos como parte integrante da construção social do território andino-amazônico.
  • Fortalecer  nossas  organizações  no  reconhecimento  e  respeito  pelo  direito  à autodeterminação dos corpos e territórios das mulheres, garantindo nosso compromisso de nos  envolvermos  na  erradicação  de  todos  os  tipos  de  violência  contra  as  mulheres  em nossas  práticas  familiares  e  comunitárias,  como  parte  do  desmantelamento  do  sistema capitalista e patriarcal.
  • Promover  a  articulação  da  diversidade  dos  processos  organizacionais  presentes  nas comunidades  indígenas, camponesas,  negras  e  urbanas,  de  mulheres,  jovens,  crianças  e outras associações de diversos setores, no campo e na cidade. 
  • Organizar/harmonizar os territórios amazônicos com base na vida da água, seus ciclos e cursos naturais, como uma forma de enfrentar os planos empresariais e governamentais. 
  • Coesão  do  tecido  social  e  comunitário  para  nos  curar  de  práticas  corruptas  em  nossos processos e lideranças, e para bloquear essa influência das empresas e governos estaduais em nossos territórios.
  • Fortalecer as experiências dos indígenas, camponeses e afrodescendentes como protetores da Amazônia e dos processos comunitários.
  • Construir  cenários  de  justiça  ambiental  e  popular  para  a  reivindicação  e  legitimação  de nossos governos comunitários. Para continuar e fortalecer a etapa dos caminhos anteriores – os horizontes exigem a vontade unitária de toda a diversidade de iniciativas que trabalham no cuidado integral da Bacia. Neste  caminho  continuaremos  a FAZER  A  AMAZÔNIA  PARA O BEM VIVER e  somos, então, chamados a promover a articulação de propósitos e experiências em torno das Iniciativas de Ação, cujas agendas como um todo se propõem a avançar as seguintes tarefas:
  • Promover  processos  de  ação-pesquisa  participativa  sobre  as  realidades  dos  sistemas  de energia,  alimentação,  educação,  saúde  e  água  na  Amazônia,  bem  como  sobre  a  vida comunitária, a fim de dar mais fundamentos às nossas alternativas.
  • Promover  a  vigilância  e  monitoramento  ambiental  participativo  e  o  mapeamento  sócio-territorial das organizações locais para acompanhar os conflitos gerados pelas atividades extrativistas, mega infra-estrutura e agroindústria, e para evitar a afetação de direitos.
  • Promover  intercâmbio,  treinamento  e  escolas  de  pesquisa  sobre  sistemas  de  produção sustentável na Amazônia.
  • Promover a Declaração Universal dos Direitos dos Rios e a intangibilidade das cabeceiras, fontes de água, rios e florestas nos territórios da Amazônia, a fim de evitar os impactos negativos  das  atividades  extrativistas,  agroindustriais,  hidrelétricas  e  transnacionais  das hidrovias.
  • Exigir que nenhum território amazônico seja declarado Distrito Mineiro, e que seu status como sujeito de direitos seja respeitado, conforme reconhecido pelas normas nacionais e internacionais para a proteção e cuidado da Amazônia.
  • Criar estratégias para o reconhecimento dos direitos territoriais, culturais e econômicos do campesinato, como sujeito social que contribui para o cuidado e a manutenção da vida na Amazônia.
  • Promover o Tribunal de Justiça sobre os direitos das mulheres da Amazônia Andina e suas decisões, a fim de tornar visíveis as lutas das mulheres, denunciar a violência racista, sexista e exploradora e exigir justiça e reparação para as vítimas. 
  • Incentivar  homens  e  mulheres  a  integrar  a  dinâmica  do  cuidado  domiciliar  em  sua  vida diária como forma de criar condições para a participação política das mulheres. 
  • Desenvolver  estratégias  jurídico-políticas  nacionais  e  internacionais  para  exigir responsabilidade  direta  das  empresas  e  instituições  financeiras  pelo  cumprimento  dos direitos humanos.
  • Promover campanhas e demandas internacionais na busca de sanções legais e sociais contra corporações que violam os direitos humanos.
  • Exigir que os Estados ratifiquem e implementem o Acordo de Escazú para a proteção da natureza e de seus defensores.
  • Promover ações que promovam a consciência ambiental das sociedades e exijam que os Estados reconheçam os direitos da natureza.
  • Avançar  na  articulação  das  diversidades  nos  processos  comunicativos  que,  numa perspectiva comunitária e democratizadora, reconhecem e ampliam as lutas e experiências dos  povos  da  Amazônia  e,  a  partir  de  suas  necessidades,  conhecimentos  ancestrais  e construções  coletivas  fortalecem  a  disputa  pelo  campo  eletromagnético,  digital  e  de software para o desenvolvimento qualificado de suas apostas. 
  • Promover planos de vida e ordenamento territorial a partir de nossas próprias visões, em oposição ao modelo de desenvolvimento extrativista e consumista do capital.
  • Construir  estratégias  políticas,  sociais  e  jurídicas  para  a  aplicabilidade  e  garantia  dos direitos  coletivos  dos  povos  indígenas,  afrodescendentes  e  camponeses  contra  as atividades das empresas que invadem nossos territórios e locais sagrados.
  • Exigir que os Estados ratifiquem e implementem plenamente a Convenção 169 da OIT e a Declaração sobre os Direitos dos Camponeses. Em  geral,  que  sejam  estabelecidos mecanismos  de  consulta  em  relação  a  qualquer  tipo  de  projeto  que  envolva  os  direitos territoriais das comunidades.
  • Acolher  a  data  de  22  de  setembro  como  o  dia  da  mobilização  pelos  direitos  dos  povos indígenas da Amazônia, e 5 de setembro como o dia das mulheres indígenas da América Latina.
  • Denunciar o modelo econômico do capital como o principal gerador da crise climática e ambiental, suas falsas soluções de “economia verde”, e reconhecer o cuidado ancestral dos povos amazônicos e a necessidade de novos modelos de uso de energia, alimentos e água.
  • Promover as novas Iniciativas de Ação que surgiram no desenvolvimento deste IX FOSPA, tais  como  as  de  Transição  Energética,  Governo  Comunitário  e  Soberania  Amazônica, Biodiversidade Amazônica e Comunitária.

Desta  forma,  os  povos  amazônicos  e  andinos  reunidos  na  IX  FOSPA  reafirmam  nosso compromisso com a vida e a natureza, e chamam a fortalecer a grande aliança de nossa diversidade de pensamentos e formas de fazer, para a defesa e cuidado da Amazônia; com a orientação dos povos ancestrais, o diálogo do conhecimento e a harmonia com todos os seres que aqui vivem.

O  convite  é  tecer-nos  nestes  caminhos  do  Bem  Viver  e,  nesta  jornada  da  palavra, aprofundar nossos sonhos comuns e processar nossas diferenças.

Graças  à  participação  ativa  de  irmãos  e  irmãs  de  diferentes  partes  do  mundo, principalmente  dos  nove  países  da  Amazônia:  Brasil,  Bolívia,  Peru,  Equador,  Venezuela, Suriname,  Guianas  e  Colômbia, com  Mocoa -Putumayo- como  coração  do  IX  Fórum Social Pan-Amazônico realizado de 12 a 15 de novembro de 2020, consideramos que a maioria  dos  objetivos  da  Carta  de  Tarapoto  foram  alcançados,  e  estamos  planejando  o desenvolvimento da próxima etapa deste processo, que começou há 18 anos em Santarém, às margens do rio Amazonas, no Brasil. A jornada que continuamos rumo ao X FOSPA tem muitas  razões  para  que  o  encontro  se  multiplique  nos  territórios  da  Amazônia, denunciando os conflitos e, especialmente, promovendo alternativas.

Finalmente, desta chaga de vida, para expressar os sentimentos de solidariedade deste IX Encontro Internacional a todas as manifestações libertárias dos povos do Peru, Colômbia, Brasil  e  Venezuela,  que  neste  momento  estão  enfrentando  agressões  à  vida  e  à  livre autodeterminação.

PELA VIDA, DEFENDEMOS A AMAZÔNIA!

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