Carrefour tergiversa há décadas porque conta com o silêncio da mídia e da Justiça

Por Mario Cesar Carvalho, no Poder360

O Carrefour tergiversa, enrola e seria maravilhoso se a multinacional francesa estivesse sozinha nessa política da infâmia. Basta colocar um problema diante das empresas que elas recorrem à encenação de que fizeram tudo certo. Dizem que estão colaborando com as autoridades, quando não estão, como fazia a Odebrecht antes de assinar os acordos de colaboração. Que a intenção não era enganar o consumidor, quando entregam um produto que não era o contratado. Que estão cobrando uma taxa que não estava no contrato porque a situação mudou, mas essa condição não estava prevista.

Todos enrolam porque é um ótimo negócio e não tem consequências negativas. Os lucros aumentam, os acionistas ficam contentes, a velha mídia comemora porque terá alguns anunciozinhos a mais até chegar o atestado de óbito. As empresas tergiversam porque a mídia é absolutamente omissa no acompanhamento do mundo dos negócios. Só noticia o que as empresas querem porque há uma corrente muito bem azeitada entre corporações, assessorias de imprensa e mídia. As empresas até mentem porque a Justiça sempre está ao lado de quem consegue pagar advogados que sabem o caminho das pedras para chegar a uma absolvição, nulidade ou prescrição.

O caso do Carrefour só virou escândalo internacional porque a multinacional francesa errou na dose da enrolação e porque há imagens que parecem ter saído de um campo de concentração, não de um supermercado. O vídeo com o assassinato de Beto Freitas, aos 40 anos, choca porque mostra às claras o que o Carrefour poderia fazer nas salas sem câmera. Preto mexendo com funcionária? Porrada.

Dependente de crack apanhada molambenta numa loja do Rio? Estupra com um pedaço de pau. Negro e deficiente físico tomando cerveja dentro da loja (ele tinha dinheiro e iria pagá-la no caixa)? Tortura ele.

Essa política não é uma exclusividade do Brasil. Na França, o Carrefour ameaçou entregar para a polícia refugiado sem documento que não pagou uma conta de 24,67 euros (o equivalente a R$ 100,64). Na época da ocupação nazista da França, isso era chamado de colaboracionismo.

A política da porrada começa com a contratação de uma empresa de policiais, como a Vector de São Paulo. Por que contratar uma empresa de tiras num mercado em que há excelentes opções? Simples: o segurança privado policial consegue evitar uma série de dores de cabeça para o Carrefour ou para quem o contrata. Se esse segurança tiver amigos na polícia, o caso desaparece como uma mágica de David Copperfield.

O caso do estupro de uma mulher no Rio, relatado por uma juíza e um promotor, não aparecem nos registros do Carrefour, segundo a empresa. É óbvio que empresa séria não contrata firma de segurança de policial porque há um conflito de interesses: o policial que cuida de interesses privados já cometeu uma irregularidade porque não poderia ter empresa enquanto estiver na ativa. Por que não contratar logo uma milícia? O princípio da ilegalidade é o mesmo.

O governador João Doria (PSDB) e o presidente Bolsonaro são sócios ocultos nessa política da porrada.

Doria deveria demitir todos os policiais que têm empresas de segurança porque isso é proibido pelo estatuto do servidor. Fiz em 1998 uma grande reportagem para a Folha mostrando como os policiais paulistas enriqueceram com segurança privada, a ponto de o principal deles, o delegado Miguel Gonçalves Pacheco e Oliveira, ter ido morar na Suíça, onde tinha acumulado uma fortuna de US$ 195 milhões, segundo investigação do SwissLeaks. Quando os valores do SwissLeaks apareceram, havia outra surpresa: a única vez que o nome de Miguel havia sido citado era na minha reportagem.

Nenhum desses policiais foi punido. Viraram doadores fiéis das campanhas do PSDB. Alguns desses empresários vivem para cima e para baixo com Doria.

Já Bolsonaro tem sob seu comando a PF, responsável por zelar pelo licenciamento das empresas de segurança. Os milhares de casos de agressão de segurança privada contra consumidores (pobres e pretos, claro) mostram que esse departamento não funciona ou funciona como sócio de empresas criminosas.

É evidente que uma empresa terceirizada não tem liberdade para arrebentar consumidores. Ela segue uma política de quem a contrata. No caso do Carrefour, há indícios de que isso se repita há mais de 20 anos –sempre com a empresa negando. Foi esse o motivo que a entidade Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial usou para expulsar o Carrefour do grupo após a barbárie de Porto Alegre: reincidência. “A gente está diante de um fato extremamente grave, de algo que já foi dito e debatido pelo Carrefour, que é a recorrência dos fatos”, disse o coordenador da entidade, o advogado Raphael Vicente.

A multinacional francesa acredita tanto nas versões do que espalhou sobre seu suposto comportamento correto que chegou a publicar um livro chamado “A Empresa Antirracista”, escrito pelo jornalista e publicitário Mauricio Pestana. Diretor desde 2007 da revista “Raça”, a única publicação de circulação nacional voltada para negros, Pestana também foi secretário de Promoção da Igualdade Racial de Fernando Haddad (PT) em São Paulo, em 2015. É ele que assina um livro tão constrangedor que a própria editora, a Ediourodecidiu tirá-lo do mercado após o assassinato de Beto Freitas. Cínica, a Ediouro soltou uma nota dizendo que fazia isso em solidariedade à família da vítima. A empresa que foi omissa na edição tentou lavar sua imagem com uma nota anódina. Há perguntas mais importantes para a editora responder. Quanto o Carrefour pagou pela edição do livro? Por que a Ediouro publicou o livro? Não há política de checagem dos conteúdos? A Ediouro é editora do tipo pagou-publicou?

Há uma tentativa de boicote ao Carrefour iniciada no dia do assassinato por figuras negras de peso, como o rapper e compositor Mano Brown, dos Racionais MC. Se desse certo seria como uma brisa leve nesse cenário empesteado. Porque não dá para acreditar em algum tipo de Justiça vinda do mercado. Lembra de Brumadinho? Lembra das promessas de que a Vale amargaria uma longa travessia no deserto? Bobagem. Um dia depois da tragédia, as ações da Vale recuaram 24,5% (para R$ 42,38), com a morte de 255 pessoas e o desaparecimento de 15. Na 3ª feira (24.nov.2020), as ações da Vale já estavam em R$ 74,80, um aumento de 33,2% em relação ao fundo do poço da tragédia. As ações do Carrefour caíram 5,43% na 2ª feira (23.nov.2020) e 0,52% na 3ª, mas a perspectiva dos analistas é que volte a valorizar a longo prazo. O mercado é assim mesmo –amoral. Sobretudo quando a mídia e a Justiça se calam.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Amyra El Khalili.

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