Bruno Covas minimiza combate à fome em plano de governo

Tucano cita palavra apenas uma vez e ignora Plano Municipal de Segurança Alimentar, enquanto Boulos dedica um capítulo de seu programa ao tema; no segundo turno, De Olho Nos Ruralistas reúne propostas relativas à alimentação nas capitais

Por Mariana Franco Ramos, em De Olho nos Ruralistas

No maior e mais rico município do país, os dois candidatos que continuam na disputa pela prefeitura encaram a questão da segurança alimentar e nutricional de formas distintas. Enquanto o atual prefeito, Bruno Covas (PSDB), praticamente ignora o tema, o candidato do PSOL, Guilherme Boulos, dedica um capítulo inteiro de seu plano de governo a ele. De Olho Nos Ruralistas analisa, nesta semana, as propostas dos prefeituráveis nas capitais onde há segundo turno, a começar por São Paulo.

Covas ignora o Plano Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (Plamsan), lançado em 2016, no último ano da gestão petista de Fernando Haddad. Boulos toma o plano como base.

Conforme a última Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), divulgada em setembro pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de 10,3 milhões de brasileiros apresentavam insegurança alimentar grave entre 2017 e 2018, sendo 2,6 milhões (25,2%) na área rural. Não entram na conta pessoas em situação de rua, o que aumentaria os índices. O Censo de 2019 apontou que 24.344 cidadãos moravam nas ruas da capital paulista, um crescimento de 53% em relação a 2015.

A crise sanitária tornou o assunto, que já era fundamental, ainda mais urgente. Em julho, o relatório “O estado da segurança alimentar e nutrição no mundo”, lançado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), mostrou que a fome pode atingir até 828 milhões de pessoas em 2020, das quais mais de 132 milhões em virtude das consequências econômicas da Covid-19. “Não há dúvida de que o coronavírus deve expor mais pessoas à insegurança alimentar e acelerar as projeções de aumento no número de afetados pela fome”, alertaram os pesquisadores.

“É uma questão estratégica quando se pensa no que estamos vivendo hoje, com a pandemia”, afirma Vera Helena Lessa Villela, do Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional de São Paulo (Comusan). “Muitas pessoas perderam sua fonte de renda e dificilmente têm acesso a uma alimentação que promova sua saúde”. Segundo ela, se medidas previstas no Plano de Segurança Alimentar e Nutricional fossem implementadas, “a gente evitaria agravar muitas dessas questões”.

Vera conta que a sociedade civil tem procurado intervir para que os gestores públicos assumam tais compromissos. “A alimentação é primeiro um direito, previsto na Constituição Federal, e cabe ao poder público prover as condições para que as pessoas tenham acesso a ela, de forma digna”. Nem todos, porém, seguem as recomendações.

PLANO DE PREFEITO É MAIS OMISSO QUE O DE DORIA, AUTOR DA ‘RAÇÃO HUMANA’

No documento de 46 páginas que apresentou ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Bruno Covas cita apenas uma ação de combate à fome, ao afirmar que atingiu, durante a pandemia, a marca de 1,8 milhão de cestas básicas distribuídas. “Ficou clara nesse processo a grande razão de ser e agir do governo: o cuidado e a proteção dos cidadãos”, escreve. A frase compõe um texto mais genérico e introdutório, sobre realizações dos primeiros anos de gestão. Sem mencionar o Plano Municipal de Segurança Alimentar.

O tucano lembrou da ação, batizada de Rede Cozinha Cidadã, em seu programa no horário eleitoral, ao contar que cem restaurantes foram contratados para produzir refeições, destinadas à população de rua. Ele visitou um dos participantes durante a campanha. No plano que consta no TSE, contudo, não há menção às palavras “comida” ou “alimentação”.

Covas cita como “bom exemplo” a criação do Cartão Merenda. Segundo ele, mais de 770 mil alunos recebem o benefício, em virtude da suspensão das aulas. A rede pública municipal possui 960 mil matriculados. A lei 13.987/2020 garante a distribuição de alimentos às famílias dos estudantes, com recursos do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Ele não diz se está — e como está — garantindo o uso de 30% da verba do PNAE para comprar produtos da agricultura familiar, como prevê a legislação.

O candidato à reeleição chegou à prefeitura por ser vice do hoje governador João Doria (PSDB), outro a não falar em “fome” em seu programa de governo, há quatro anos. Na época, ambos prometiam implementar unidades do restaurante popular Bom Prato nos distritos com maiores índices de vulnerabilidade social, oferecendo alimentação de qualidade a preço simbólico.

Também propuseram, no capítulo sobre atividade rural, incentivar projetos e organizações que promovam o consumo responsável e o combate ao desperdício; e ainda desburocratizar as parcerias, projetos e concessões para o desenvolvimento sustentável da agricultura familiar.

Em 2017, já eleito, Doria anunciou seu programa na área, o “Alimento Para Todos”, que não constava no plano de governo e incluía um produto batizado de farinata, a ser distribuído para a população mais pobre da cidade. A mistura foi logo apelidada de “ração humana”, por constituir-se do processamento de alimentos próximos do vencimento ou fora do padrão de comercialização em supermercados.

O ex-prefeito voltou atrás após o Conselho Regional de Nutricionistas (CRN-3) se manifestar contra a proposta. O entendimento era de que ela feria os princípios do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), negava as políticas públicas de combate à fome e à desnutrição e contrariava o Guia Alimentar para a População Brasileira.

Na avaliação de Vera Villela, a ausência de propostas para combater a fome no plano de Covas mostra que o tema não é prioridade do atual prefeito. “Na entrada do Dória, a gente fez várias audiências públicas e conseguiu incluir a meta 37, sobre segurança alimentar e nutricional (no programa de governo)”, lembra.

“Foi uma conquista da sociedade civil, que teve participação efetiva, mas quando o Covas entrou eles refizeram o programa”, prossegue. A justificativa do governo, segundo ela, era a de que a questão seria abordada no tópico relativo à desnutrição na primeira infância, dentro da área da saúde e assistência, o que, diz, é insuficiente. O observatório procurou a assessoria de imprensa da campanha tucana, mas não recebeu retorno até a publicação desta reportagem.

BOULOS SEGUE PLANO MUNICIPAL DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL

Guilherme Boulos (PSOL), por sua vez, cita a palavra fome em duas oportunidades. Primeiro, ao dizer que, na periferia, as pessoas morrem mais, por várias razões. “Uma delas, porque não têm escolha além a de se expor em ônibus e metrôs lotados para ir trabalhar”, afirma. “Na prática, a periferia vive o dilema entre o vírus ou a fome”. Depois, ele critica o fato de a prefeitura ter apostado no “cômodo #FiqueEmCasa”, sem oferecer alternativa de geração de emprego e renda. “Só hashtag não salva vidas, não dá um teto para morar e nem coloca comida na mesa de ninguém”.

Em vários trechos de seu programa, de 62 páginas, Boulos fala sobre segurança alimentar. Logo na introdução, destaca que estamos enfrentando uma emergência social, sanitária, ambiental e climática de escala global, relacionada ao modo predatório de produção e consumo vigentes: “A superação dessa situação passa por soluções que repensem como vivemos e para onde estamos indo enquanto sociedade, como garantir o acesso da população à alimentação saudável (com hortas urbanas, melhor merenda nas escolas e cinturão agroecológico na zona rural de São Paulo) e a potencialização dos espaços públicos e comunitários”.

O capítulo 20 do plano do PSOL é inteiramente dedicado ao tema. Segundo Boulos, a pandemia evidenciou o quanto é desigual o acesso à comida, bem como o quanto a promoção de alimentação adequada está associada a condições socioeconômicas. “Considerando que o direito à alimentação está garantido na Constituição, cabendo ao Estado prover condições para sua execução, fica clara a situação de injustiça social vivida por grande parte das pessoas na cidade mais rica da América Latina”, comenta.

O candidato defende a articulação de diversas áreas da gestão pública municipal para enfrentar o problema. “Os cientistas demonstram que vivemos uma sindemia que combina obesidade, desnutrição e mudanças climáticas”, reforça. “As corporações capturam os governos de caráter hiperliberal para impor seus interesses e manter um sistema agroalimentar insustentável e desigual”.

Boulos destaca especificamente o programa municipal de alimentação de São Paulo, apresentado como um dos maiores e mais universais de todo o mundo. De acordo com ele, contudo, a taxa de terceirização da alimentação nas escolas públicas municipais, que chegaria a 51%, põe em risco políticas públicas já constituídas, como o PNAE, uma vez que não se pode utilizar essa verba na rede terceirizada.

Há menções ao tema ainda nos capítulos sobre economia solidária, sobre ambiente e no destinado a trabalho e renda, quando o candidato do PSOL cita a produção agrícola orgânica para merenda escolar e outras políticas públicas de segurança alimentar. Na área de soberania alimentar, ele propõe incentivar a criação e manutenção de hortas comunitárias e fortalecer e proteger os movimentos sociais que produzem alimentos sem agrotóxicos. Na educação ele reforça a importância de dar prioridade aos alimentos provenientes da agricultura familiar, de assentados e pequenos produtores.

Segundo Vera Villela, a campanha de Boulos incorporou grande parte do que está previsto no Plano Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional. “São políticas que vêm sendo discutidas e que são estratégicas”, afirma. As propostas vão na linha das que o Comusan listou em uma carta entregue a treze pré-candidatos, em dezembro de 2019, durante a “Conferência São Paulo Sua”. A conselheira defende exatamente isso, que os gestores “se apropriem” daquilo que é debatido e construído com a sociedade civil.

Dentre as ações incorporadas pelo candidato do PSOL, ela destaca o resgate da economia solidária, “de o alimento não ser visto só como mercadoria” e a criação de uma política municipal de abastecimento, que atue desde o escoamento da produção, até na facilitação do acesso da população a alimentos frescos.

PSOLISTA FOI O ÚNICO A ASSINAR COMPROMISSO COM A AGROECOLOGIA

O psolista foi o único candidato a prefeito da capital paulista que se comprometeu com a campanha “Agroecologia nas Eleições“, lançada pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), como forma de subsidiar políticas públicas para o setor nos municípios brasileiros.

O documento contém 36 propostas, organizadas em 13 campos temáticos. Ele foi preparado para ser adaptado à realidade de cada município. São iniciativas que promovem a segurança alimentar e nutricional e geram renda nos territórios.

A ANA identificou ainda cerca de 700 ideias inovadoras, como hortas comunitárias, projetos que incentivam a comercialização de alimentos saudáveis e ações de assistência técnica, extensão rural, fomento e crédito. As propostas foram agrupadas em um mapa interativo, que pode ser acessado pelos gestores municipais.

|| Colaborou  Roberto Lameirinhas. ||

Imagem principal (Divulgação/Facebook): Boulos e Covas decidem segundo turno em São Paulo no domingo

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