Origens do racismo estrutural brasileiro. Por Juremir Machado da Silva

No Correio do Povo

O Brasil é um paradoxo cruel: o processo que levou à abolição da escravatura aumentou o racismo que era evidentemente enorme. Trato disso detalhadamente em “Raízes do conservadorismo brasileiro: a abolição na imprensa e no imaginário social (Civilização Brasileira, 2017).

A festa da abolição ainda estava nas ruas e já o Diário do Maranhão cobrava um programa governamental repressivo contra os novos cidadãos livres do Império. Depois de um elogio ao gabinete organizado por João Alfredo Correia de Oliveira, em substituição ao de Cotegipe, e de um voto de louvor ao projeto de abolição enviado ao parlamento pelo ministro da Agricultura, Rodrigo da Silva, o jornal de São Luís passava ao que realmente lhe interessava: “A criação de leis repressivas contra a vagabundagem e a ociosidade”.

A importação de mão de obra branca da Europa não era vista como uma saída para o norte do Brasil. O aproveitamento do braço negro exigiria um dispositivo disciplinar: “Centenas de indivíduos sem ofício, e que terão horror ao trabalho, entregando-se por isso a toda sorte de vícios, precisam ficar sob um rigoroso regime policial para assim poderem ser mais tarde aproveitados, criando-se colônias, para as quais vigore uma lei, como a que foi adota- da na França, recolhendo a estabelecimentos especiais os vagabundos, sujeitando-os à aprendizagem de um ofício, ou da agronomia, para que mais tarde o país utilize bons e úteis cidadãos. Assim se praticou nos Estados Unidos depois da emancipação”. No caso, o exemplo americano valia.

Os negros ainda acreditavam na vitória obtida e já o Diário do Maranhão retomava os argumentos usados ao longo dos anos na tentativa de manter o controle sobre os verdadeiros produtores da nação. Como poderiam ter horror ao trabalho e nada saber fazer aqueles que tudo faziam? O Jornal do Comércio, da Lavoura e da Indústria inquietava-se com o presente e com o futuro. O clima do Maranhão e os salários oferecidos não atrairiam imigrantes. A conclusão era paradoxal: “Com a própria gente nacional é que devemos contar para o trabalho do campo e ela deve ser, em sua maioria, preferida, porque temos muitos braços sem trabalho e que necessitam dele: assim lucrará a lavoura e se evitará muitas das cenas tristes que terão de dar-se, e que se darão em número muito maior se tais braços não estiveram aplicados, se a vagabundagem não for reprimida com a maior severidade, e se os filhos dos libertos não estiveram em estabelecimentos apropriados, onde possam receber educação profissional e moral que os ponha no futuro a coberto do vício e lhes indique o caminho do trabalho e da honestidade”. A liberdade era vista como mãe do pior.

Os assassinatos de proprietários de escravos eram registrados na imprensa sempre com odes aos generosos senhores mortos. Celia Maria Marinho de Azevedo trata disso em Onda negra, medo branco – o negro no imaginário das elites do século registrou esse tom sempre favorável aos donos dos escravos. Em A Província de São Paulo, atual Estadão, que nasceu escravista e depois virou abolicionista, o tom das notas sobre crimes cometidos por escravos era assim:  “Mais um lamentável assassinato, mais um daqueles casos que registramos com profunda mágoa e sentimento. O sr. Manoel Ignácio de Camargo, conhecido e muito estimado fazendeiro deste município de Campinas, foi vítima de seus próprios escravos sendo barbaramente morto ontem à traição com 12 ferimentos de enxada e foice, cinco dos quais cada um por si determinava a morte”.

As qualidades eram todas da vítima. Não havia espaço para atenuantes que buscassem compreender o ato cometido. As notícias de outros crimes em A Província de São Paulo destacavam que o fazendeiro morto “não era rigoroso no modo de tratar seus escravos”, sendo, ao contrário, visto como “muito honesto e brando para com seus escravos”. (15 de maio de 1887). Ou procuravam mostrar o absurdo de um crime contra uma “mãe de numerosa família”, dona de só oito ou dez escravos, proprietários que “não eram maus senhores”, tendo sido mortos por dois cativos que haviam sido amamentados pela vítima. (11.6.1878) Padrão: bom senhor, generoso, brando e honesto, assassinado por negro ingrato.

Nas comemorações da aprovação da Lei do Ventre Livre, no Senado, o representante americano louvou o modelo brasileiro, que não se caracterizaria “por uma guerra de raças, como nos Estados Unidos”, tendo dado ensejo “à sua fusão e à sua solidariedade, pela expansão de sentimentos nobres e altruísticos de confraternização, de piedade e de filantropia”. Se não houve guerra aberta, foi pela existência de outros métodos de enfrentamento, negociação, dominação e controle social. Celia Maria Marinho de Azevedo inventariou os projetos de transformação do Brasil pela introdução de uma raça “superior”, a branca: “Tavares Bastos acreditava firmemente que, caso a história do Brasil tivesse sido outra, com brancos em vez de negros na produção, o país contaria então com uma riqueza triplicada, pois o trabalho dos primeiros era três vezes mais produtivo do que o dos segundos”. A isso se chamava de ponderação.

Para Bastos, o negro afugentava o branco europeu. Não foram poucos os analistas da situação brasileira que atacaram a suposta inferioridade da raça negra para defender a imigração branca como salvação da lavoura. Pereira Barreto, em artigos publicados em A Província de São Paulo, em 1880, encarnava o cientificismo racista da época: “O que constitui, porém, o grosso da nossa população escrava é o contingente das outras populações caracterizadas todas anatomicamente pela sua menor massa de substância cerebral; e esta condição anatômica de inferioridade é bem própria para abrandar os rancores abolicionistas contra a parte da sociedade que tem por si a vantagem efetiva da superioridade intelectual. 

O crítico literário Sílvio Romero não queria que o Brasil se tornasse um Haiti: “A minha tese, pois, é que a vitória na luta pela vida, entre nós, pertencerá no porvir ao branco; mas que este, para essa mesma vitória, atento às agruras do clima, tem necessidade de aproveitar-se do útil que as outras duas raças lhe podem fornecer, máxime a preta, com que tem mais cruzado. Pela seleção natural, todavia, depois de prestado o auxílio de que necessita, o tipo branco irá tomando a preponderância até mostrar-se puro e belo como no velho mundo. Será quando já estiver de todo aclimatado no continente. Dois fatos contribuirão largamente para tal resultado: de um lado a extinção do tráfico africano e o desaparecimento constante dos índios, e de outro a emigração europeia.” Para outro analista, Domingos José Nogueira Jaguaribe, com tese aprovada com louvor na Academia de Medicina do Rio de Janeiro, também citado por Celia Azevedo, o Brasil deveria escolher uma raça melhor para almejar um futuro material, moral e intelectual melhor.

Nada mais de africanos. Tampouco de chineses. Boa parte das ideias racistas que se enraizaram no imaginário brasileiro saiu da cabeça do médico francês Louis Couty, que lecionou, a partir de 1878, na Escola Politécnica e no Museu do Rio de Janeiro. Segundo ele, o Brasil estava atolado na irracionalidade da escravidão, refém de uma raça atrasada. O progresso só viria com as “populações avançadas da Europa”. O africano era o atraso. O europeu, a modernidade. Couty, conforme Celia Azevedo, cumpriu três missões delicadas e complexas: convencer o governo da necessidade de investir em colonos brancos europeus; persuadir os abolicionistas a não ir rápido demais, aceitando uma emancipação gradual; mostrar aos proprietários de escravos as vantagens do trabalho livre e de uma reforma agrária. Couty considerava o Brasil, paradoxalmente, um paraíso sem preconceitos raciais, um local onde os negros libertos eram tratados imediatamente como iguais dos brancos.

O africano, porém, para Couty, era “quase sempre um grande preguiçoso”, infantil por natureza: “Como as crianças, eles têm os sentidos inferiores e, sobretudo, o paladar e a audição relativamente desenvolvidos. O negro gosta de tabaco […] ele adora as coisas açucaradas, a rapadura; mas o que ele gosta acima de tudo é de cachaça […] Para conseguir cachaça, ele rouba […] e sacrificando tudo a essa paixão, inclusive a própria liberdade, ele trabalhará até no domingo.” O Brasil só se tornaria moderno com a entrada de por volta de 2 milhões de europeus, que deveriam receber incentivos para se radicar no Novo Mundo.

Abolicionistas como Taunay, um dos fundadores da Sociedade Central de Imigração e do jornal da SCI aplaudiam as ideias de Couty. Taunay tomava, porém, o cuidado de explicar a “preguiça” dos brasileiros pela falta de garantias para trabalhar, podendo ser expulsos de suas terras a qualquer momento. Amoroso Lima, articulista do jornal da SCI, defensor da raça ariana, sustentava que só o europeu podia “servir de guia à raça mestiça, tendo sido a africana trazida às plagas americanas por uma tendência irresistível, para ser introduzida, mesmo que por meio do cativeiro, no convívio da civilização”.  A defesa da política de imigração encontrou seus melhores argumentos nos piores conceitos do racismo com roupagem científica. Celia Azevedo resumiu com acerto: “Enquanto os abolicionistas retomavam os argumentos dos emancipacionistas, que desde o início do século pretenderam a incorporação social do negro livre, os imigrantistas consolidavam sua posição quanto à vagabundagem irremediável do ex-escravo e seus descendentes por força de suas supostas origens raciais inferiores.

O elogio do imigrante branco escorou-se na desqualificação do escravo e do ex-escravo negro. Mais do que a qualidade do trabalho livre, cantou-se em prosa e em ensaios cientificistas a superioridade do branco europeu sobre o negro africano. O preconceito ganhou novos argumentos e cresceu como a força das verdades do senso comum. A modernidade tinha origem, raça, cor, competência e futuro. O branco era o porvir. O negro era o passado. O branco era o trabalho. O negro, a preguiça. O branco olhava para a frente. O negro cochilava. Construíra-se o futuro em cima de uma sólida base de areia movediça.

Consta que Luiz Gama considerava ato de legítima defesa o assassinato de qualquer proprietário por um escravo seu. O jornal A Redempção, do branco e carola Antônio Bento, adotou essa ideia. Bento ajudou a organizar fugas de escravos e quilombos para abrigá-los. Ele e seu jornal eram considerados perigosos, inimigos da ordem, da lei e da propriedade. Um texto publicado na capa do jornal A Província do Espírito Santo, em 11 de setembro de 1887, “A lenda criação preto”, apresentava o branco como criação de Deus, e o negro como do diabo. A falsa parábola terminava com um “se non é vero…”

O racismo foi alimentado cotidianamente pelos que, não podendo impedir a abolição, precisavam convencer os proprietários de escravos a aceitá-la, mesmo sem indenização, e a antecipar-se à nova realidade. O imigrante não trouxe o racismo. Usou-se o racismo como justificativa para a sua vinda. A propaganda surtiu feito. Os negros conquistaram a liberdade em aliança com brancos humanistas. Outra parte da branquitude aceitou a abolição para livrar-se de uma raça considerada inferior. Os frutos dessa concepção hedionda ainda espalham veneno pelo país afora.

Imagem: Jean-Baptiste Debret, Um jantar brasileiro (1827)

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