Os herdeiros que desertaram do capitalismo

Novo sinal de um sistema em crise. Nos EUA, jovens milionários associam fortunas familiares com exploração de classe e raça. E sacam as heranças dos mercados financeiros, onde multiplicaram desigualdades, para dedicá-las às lutas sociais

Por Zoë Beery, no The New York Times | Outras Palavras

Há algum tempo, Sam Jacobs vem tendo muitas conversas com os advogados de sua família. Ele está tentando obter maior acesso ao seu fundo fiduciário de US$ 30 milhões. Com 25 anos, ele atingiu a idade em que muitos herdeiros podem gastar seu dinheiro em negócios sem pés nem cabeça, ou numa coleção de carros esportivos. Ele não quer fazer isso, mas pelos padrões de gestão de patrimônio, seu plano é igualmente péssimo: ele quer dar tudo.

“Quero construir um mundo no qual seja impossível existir uma pessoa como eu, um jovem que controla dezenas de milhões de dólares”, disse ele.

Socialista desde a faculdade, Jacobs enxerga a “riqueza extrema e plutocrática” de sua família como um fracasso moral e econômico. Ele quer colocar sua herança em jogo para acabar com o capitalismo. Assim, pretende usar seu dinheiro para desfazer sistemas que acumulem dinheiro para aqueles que estão no topo e que têm desempenhado um grande papel no aumento da desigualdade econômica e racial.

Os millennials serão alvo da maior mudança geracional de ativos na história norte-americana — a Grande Transferência de Riqueza, como é chamada no meio financeiro. Só na próxima década, espera-se que dezenas de trilhões de dólares circulem entre as gerações.

E esse dinheiro, como toda riqueza nos Estados Unidos, está extremamente concentrado nas camadas superiores. Jacobs, cujo avô foi fundador da Qualcomm, espera receber até US$ 100 milhões ao longo de sua vida.

No entanto, a maioria de seus contemporâneos millennials, receberá uma herança negativa: dívidas, perspectivas de emprego escassas e a desilusão com a rede de segurança social. Os mais jovens dessa geração tinham 15 anos em 2011, quando o Ocuppy Wall Street traçou uma linha entre aqueles-que-têm-muito e todos os outros; os mais velhos, com sorte, já estavam trabalhando numa economia pós-recessão antes mesmo da  recessão atual. Classe e desigualdade tornaram-se assuntos corriqueiros em suas conversas políticas na maior parte de suas vidas adultas.

Naquela época, o abismo cada vez maior entre ricos e pobres trouxe de volta a política de esquerda para o debate político norte=americano. O presidente eleito Joseph R. Biden Jr. perdeu para o senador Bernie Sanders, o candidato socialista, por 20 pontos entre os eleitores da geração de millennials nas primárias presidenciais democratas deste ano. E nos últimos seis anos, esta geração transformou os Socialistas Democratas dos Estados Unidos, de uma organização marginal, com membros na média dos 60 anos, para uma força nacional com seções em todos os estados e quase 100 mil membros — a maioria, com menos de 35 anos.

Jacobs, como um jovem proprietário de fundo fiduciário e, ao mesmo tempo, anticapitalista, encontra-se numa posição rara entre os esquerdistas que lutam contra a desigualdade econômica. Mas ele não está sozinho na tentativa de descobrir, diz, “o que significa estar com os 99%, quando você é o 1%”.

Desafiando o Sistema

“Sempre me ensinaram que o mundo era assim mesmo, que minha família tinha riqueza e outras não, e que, por causa disso, precisava doar parte dela, mas não necessariamente questionar por que ela estava lá”, diz Rachel Gelman, com 30 anos, de Oakland, Califórnia, que descreve sua política como “anticapitalista, anti-imperialista e abolicionista”.

Sua família sempre contribuiu generosamente com as causas liberais e com grupos da sociedade civil. A Srta. Gelman apoia grupos dedicados a acabar com a desigualdade, incluindo o Movimento pelas Vidas Negras, a Rede de Organização do Dia Nacional do Trabalhador e a Resistência Crítica, um importante grupo pela abolição das prisões.

“Meu dinheiro é quase todo composto por ações, o que significa que ele vem de explorar a classe trabalhadora, e é impossível desconectar isso do legado econômico do genocídio e escravidão indígenas”, explica Gelman. “Depois que percebi isso, não conseguia me imaginar fazendo nada com minha riqueza além de redistribuí-la para essas comunidades.”

De acordo com a empresa de consultoria Accenture, até 2030, a Geração Silenciosa e os baby boomers vão presentear seus herdeiros com até US$ 30 trilhões; e, até 2060, com cerca de US$ 75 trilhões. Essas fortunas começaram a se acumular décadas atrás — em alguns casos, séculos. Mas a concentração da riqueza tornou-se estratosférica a partir da década de 1970, quando o neoliberalismo se tornou a filosofia econômica norteadora do setor financeiro e as empresas começaram a buscar obsessivamente retornos mais altos para os acionistas.

“A riqueza que os millennials estão herdando vem de uma enorme redistribuição que ocorreu contra as massas trabalhadoras, criando uma reduzida minoria super-rica, às custas de um sonho norte-americano fugaz que hoje está fora do alcance da maioria das pessoas”, diz Richard D. Wolff, marxista e professor emérito de economia da Universidade de Massachusetts Amherst, que já publicou doze livros sobre luta de classes e desigualdade.

Ele explica que desde o início de sua carreira de professor, em 1967, vem argumentando profissionalmente contra os fundamentos com os quais o capitalismo se vende, mas que seus alunos atuais “estão muito mais abertos a ouvir essa mensagem do que seus pais jamais estiveram”.

Herdeiros cuja riqueza vem de uma fonte específica, às vezes, usam essa história para orientar suas doações. Pierce Delahunt, um “socialista, anarquista, marxista, comunista ou todos os anteriores” de 32 anos, tem um fundo fiduciário que foi financiado pelo império de complexos de lojas de seu ex-padrasto (x Srx. Delahunt usa pronomes de gênero neutro).

“Quando penso nesses centros comerciais, penso em opressão interseccional”, diz Delahunt. Há a terra indígena original em que cada loja foi construída, além dos baixos salários pagos aos trabalhadores do varejo e dos serviços de alimentação, que são desproporcionalmente pessoas não-brancas, além das emissões de carbono da fabricação e transporte das mercadorias. Com isso em mente, Delahunt distribui US$ 10 mil por mês, divididos entre 50 pequenas organizações, a maioria das quais tem uma missão anticapitalista e, de alguma forma, enfrenta as externalidades das lojas.

Se dinheiro é poder, então a verdadeira redistribuição de riqueza também significa redistribuir a autoridade. Margi Dashevsky, que tem 33 anos e mora no Alasca, recebe orientação de uma equipe de consultoria composta por três mulheres ativistas de movimentos indígenas e negros, para decidir sobre suas doações de caridade. “O acaso de eu ter nascido nesta riqueza não significa que eu sou onisciente sobre como ela deve ser usada”, ela explica. “Na verdade, tenho até muitos pontos cegos.”

Ela também doa para fundos de justiça social como o Third Wave Fund, onde a concessão de doações é orientada pelas comunidades que recebem o financiamento, em vez de isso ser decidido por um conselho de indivíduos ricos. O pior tipo de organização sem fins lucrativos, diz Dashevsky, “vem de uma posição de presumir incompetência dos outros, colocando uma série de obstáculos aos ativistas e perdendo seu tempo com coisas como relatórios de impacto. Eu quero virar isso do avesso, dando um passo atrás, confiando e ouvindo.”

É claro que um ato individual de redistribuição de riqueza não muda, por si só, um sistema. Mas esses herdeiros se veem como parte de uma mudança maior e se dedicam a financiar seu impulso.

A Revolução começa na sala de jantar

Qualquer pessoa de esquerda tentando se livrar de uma herança vai, em algum memento, encontrar a organização Resouce Generation. Todos os herdeiros desta matéria fizeram isso. Fundada em 1998, ela é uma máquina de politização para pessoas ricas de 18 a 35 anos.

Sem fins lucrativos, oferece uma programação que incentiva os membros a enxergarem o capitalismo não como um equalizador que, baseado no mercado, promove ascensão; mas como um sistema prejudicial desde sua base — como a Resource Generation coloca: “terra roubada, trabalho roubado e vidas roubadas”. Entram jovens marcados pela tensão entre seus valores progressistas e sua riqueza; saem ativistas determinados com um plano para a redistribuição.

Maria Myotte, a diretora de comunicações da organização, disse que o número de membros aumenta cada vez que o país faz um ajuste de contas: Ocuppy Wall Street, a eleição presidencial de 2016 e os choques irmãos da pandemia e do levante contra o racismo — todos atraíra novatos. Existem atualmente cerca de 1.000 membros pagantes em divisões locais nos Estados Unidos. De acordo com a pesquisa interna mais recente, a rede mais ampla da Resource Generation, que inclui alguns não membros, espera controlar US $ 22 bilhões, coletivamente, em suas vidas.

Herdeiros que desejam redistribuir sua riqueza dizem que, a princípio, eles abordavam a tarefa com ardor dos revolucionários, culpando os membros da família por serem tão acomodados em seus privilégios. “Houve muitas conversas raivosas na mesa de jantar, quando eu era um pirralho impaciente e arrogante”, disse Sam Vinal, 34, de Los Angeles. Mas muitos descobriram que podem ser mais persuasivos quando tratam essas conversas como uma campanha política amigável.

Quando a mãe de Vinal quis começar uma fundação familiar, um arranjo normalmente focado em um tema de caridade, ele viu a oportunidade de criar um caminho para mudanças mais abrangentes. Conversou com lideranças de vários movimentos sociais para convencer sua mãe a mudar a missão. “Aquele foi um momento importante para minha mãe, ouvir direto da linha de frente”, diz ele.

Desde sua criação, em 2017, a fundação apoia organizações radicais, sob a orientação de um grupo de ativistas. Vinal passa grande parte de seu tempo organizando outros jovens com fundações familiares para levá-los nessa direção.

“Tento entender de onde vêm as pessoas, as bolhas de raça e classe em que ficamos presos, para poder ajudá-los a ter mais imaginação sobre onde podemos ir além do capitalismo”, disse ele.

Ajudando a construir a Economia Solidária

abismo da riqueza racial significa que os herdeiros que desejam redistribuir sua riqueza são predominantemente brancos. Pessoas de cor que são membros da Resource Generation, por exemplo, tendem a ter acesso a menos riqueza geral ou só herdarão muito mais tarde, na vida. Os mais ricos são os adotados trans-raciais ou aqueles que têm pais brancos. Isso torna a abordagem da redistribuição um pouco mais complexa.

“A narrativa de doar tudo parece moldada por herdeiros brancos”, diz Elizabeth Baldwin, uma socialista democrática de 34 anos, de Cambridge, Massachusetts, que foi adotada na Índia por uma família branca quando era bebê. Os herdeiros em sua posição, disse ela, devem decidir se redistribuem para suas próprias comunidades ou outras, e o que significa abrir mão do privilégio econômico quando eles não têm o tipo de rede de segurança que vem com o fato ser branco. Ela planeja ficar com o suficiente de sua herança para comprar um apartamento e constituir uma família, desfrutando do tipo de existência agradável de classe média que é negada a tantas pessoas de cor nos Estados Unidos.

Como a riqueza de sua família adotiva se originou às custas de terras e escravidão, ela doa para grupos anti-racistas e, em breve, começará a fazer empréstimos a juros baixos para empresas de proprietários negros. “O dinheiro com que vivo foi feito da exploração de pessoas que se parecem comigo, então vejo minhas doações como uma reparação”, ela afirma.

Baldwin tem relacionamentos de longa data com a Grassroots International e a Thousand Currents, redes filantrópicas que trabalham em muitos países pós-coloniais, incluindo a Índia, cujo empobrecimento ela vê como um sintoma do capitalismo ocidental. Ela admite que às vezes é “estranho” fazer reparações a seu próprio povo. “Mas ninguém mais na minha família fala sobre da onde veio esse dinheiro, e eu sinto que tenho que fazer isso”, disse ela.

Há outro obstáculo: como o mercado de ações é um motor do capitalismo norte-americano e é o responsável, em muitos casos, pela enorme riqueza individual dos herdeiros, poucos querem ter algo a ver com isso.

“Eu só enriqueço porque outras pessoas não o faem, e não quero continuar ganhando mais dinheiro com investimentos em coisas como Coca-Cola e Exxon-Mobil”, comenta Baldwin. “Eu prefiro colocar meu dinheiro numa comunidade sem recursos econômicos e, assim, atormentar o sistema.”

Ela está fazendo isso investindo no que ela e seus colegas chamam de “economia solidária”.

Resumindo, isso significa usar seu dinheiro para apoiar infraestruturas econômicas mais equitativas. O que envolve investir ou doar para cooperativas de crédito, empresas de propriedade de trabalhadores, fundos comunitários e organizações sem fins lucrativos, cujo objetivo seja o de maximizar a qualidade de vida por meio de tomadas de decisão democráticas, em vez de maximizar os lucros por meio da competição. Emma Thomas, uma socialista democrática de 29 anos que também está tirando seu dinheiro do mercado de ações, descreveu o que ela está investindo agora como “uma economia que envolve trocas e atendimento às necessidades, que é cooperativa e sustentável, e que não exige um crescimento desenfreado”.

Neste verão, ela fez parte de uma equipe que organizou cerca de 250 pessoas para apoiar o Black Land and Power Project (Projeto da Terra e do Poder Negros), transferindo o dinheiro de carteiras de ativos para 10 terrenos administrados por negros nos Estados Unidos (devido à história de racismo econômico do país, muitos projetos da economia solidária incluem um elemento de justiça racial).

Para Thomas, a perspectiva de contribuir para uma economia solidária é uma expressão tangível de seus valores, em comparação com a abstração de acumular retornos de portfólio. “Chega um momento em que esses números na tela são imaginários”, ela diz. “Mas o que não é imaginário é ter abrigo, comida e uma comunidade. Esses são retornos verdadeiros.”

Tradução de Simone Paz Hernández

Dali: Capitalismo

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

6 + doze =