Linchamentos no século 21: o gosto pelo gênero

Por Thereza Dantas*

Existe uma dúvida histórica sobre quem inventou o linchamento. Se foi o coronel Charles Lynch ou o capitão William Lynch, contemporâneos na Guerra de Independência dos Estados Unidos (1775 – 1783), mas a “lei de Lynch” deu origem à palavra linchamento. Historicamente, surgiram nos “comitês de vigilância” que perseguiam os negros após o término da Guerra Civil Norte Americana, no século 19. Esse sistema deu origem a Ku Klux Klan, organização terrorista que ainda se mantêm ativa como podemos conferir na notícia de 8 de junho de 2020, sobre a prisão de Harry H. Rogers “acusado de ataque e agressão, tentativa de ferimento proposital e vandalismo criminoso”(3), que ocorreu em meio a protestos na região de Richmond (EUA) pela morte de George Floyd. Homem negro estrangulado por um policial branco, em Minneapolis (EUA), no dia 25 de maio de 2020, e que gerou diversas manifestações e protestos nos EUA.

Grosso modo, o conceito do linchamento é o assassinato de uma ou mais pessoas cometido por um grupo com o objetivo de punir uma pessoa, ou mais pessoas, por um suposto crime. É uma justiça popular que visa intimidar ou controlar, por meio da violência e do medo, um setor específico da população.

“Os estudos de caso mostram claramente que o linchamento envolve mais do que súbita e solidária decisão de matar alguém de forma violenta e coletivamente. Há uma certa ideia de corpo, de pertencimento, envolvida na ocorrência. Evidentemente, isso é mais claro nos inúmeros linchamentos ocorridos em pequenas localidades rurais, onde todos se conhecem. No caso brasileiro, em que predominam linchamentos nas grandes cidades, como São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, a situação de anonimato é patente em muitas das ocorrências, embora não em todas.” (Martins, 1995, p. 302)

No Brasil, o linchamento também tem raízes profundas. Segundo o historiador Ronaldo Vainfas em seu livro “A Heresia dos Índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial”, o caso mais antigo de que se tem notícia é de 1585, período da colonização, contra o indígena Antônio Tamandaré que liderava um movimento messiânico em Salvador, BA. Seus seguidores queimaram o templo, o prenderam, cortaram sua língua e o estrangularam.

No estudo “As condições do estudo sociológico dos linchamentos no Brasil”, seu autor, o cientista social José de Souza Martins, revela que os tipos de crimes que causam maior indignação são as violações ou assassinato de mulheres jovens, solteiras e virgens; mulheres grávidas e crianças, praticados em sua grande maioria, por homens. Em seu outro artigo “Linchamento, o lado sombrio da mente conservadora”, Souza Martins considera o viés social desse tipo de “justiçamento”. Em sua pesquisa, dados apontam que “a prontidão para linchar um negro é, na maioria dos casos, maior do que para linchar um branco que tenha cometido o mesmo delito.” (Martins, 1996, pág. 12). Se  no mundo real o linchamento normalmente, elimina corpos negros, no mundo virtual percebi que a preferência é por “perfis” femininos.

No mundo virtual, o linchamento de gênero

A partir da leitura do artigo acadêmico “Linchamentos Virtuais: Ensaio Sobre o Desentendimento Humano”, da Profa. Eliane Tânia Freitas, professora do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRN, publicado na Revista Antropolítica, um alerta foi deflagrado no meu interesse de leituras.

Em seu texto de 24 páginas, ela explica variados tipos de linchamentos virtuais. As práticas, segundo a Profa. Tânia Freitas, costumam ser englobadas pelo termo shaming (vergonhoso). Para qualificar o alvo das práticas de discurso de ódio, ou linchamento virtual podem receber algum vocábulo adicional, como slut-shaming – tradução livre: envergonhar a vadia, ou humilhar a vagabunda, o fat-shaming – tradução livre: envergonhar gordo ou sacanear o gordo. Outros métodos praticados são o conhecido cyberbullying, o assédio moral no mundo virtual, e o revenge porn, uma forma de vingança, normalmente praticada por homens, que publicam imagens ou vídeos de antigas parceiras nuas ou praticando sexo, nas redes sociais.

Além da classificação dos tipos, a Profa. Tânia Freitas, analisa seis casos envolvendo o linchamento virtual. Todos os exemplos são praticados contra mulheres. O caso que abre o artigo trata da professora e escritora Erika Takimoto e a republicação de um post de 2016, sobre a questão das cotas raciais no espaço educacional. O que à época foi visto com simpatia, no momento da republicação, em maio de 2017, foi considerado “racista e elitista”. A republicação foi recebida de forma muito negativa e chegou a sofrer com “mensagens intimidatórias, inclusive com divulgação de seus dados privados (como seu endereço residencial)”. Na ocasião, a professora Erika Takimoto desativou suas contas no Facebook e no Twitter.

O segundo caso, o de Monica Lewinski, escândalo internacional que envolveu a então estagiária e o presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, é apresentado pela Profa. Eliana Tânia Freitas, como a “paciente zero” do que classifica ser um linchamento virtual; uma “espécie de campanha difamatória que se vale das ferramentas técnicas digitais e do potencial multiplicador sem precedentes da internet”.

Ainda no artigo, mais dois episódios exemplificam o discurso de ódio. O ataque as duas comunicadoras, a apresentadora Maria Júlia Coutinho e a blogueira e professora universitária Lola Aronovich, são as demonstrações de como o discurso de ódio foca em destruir e/ou humilhar, grupos identitários por meio da existência dos atacados.

“O que teria feito a jornalista Maria Julia Coutinho, que apresentava o quadro de previsão do tempo do Jornal Nacional desde abril de 2015, para ser ridicularizada no Facebook em julho daquele ano, por postagens de comentadores que a chamavam de macaca, lhe atribuíam cara de doméstica, dentre inúmeros outros insultos claramente racistas e elitistas?” (Tânia Freitas, 2017, pág. 157)

O sexto episódio é o mais impressionante. O “linchamento do Guarujá”, cidade do litoral de São Paulo, que culminou no espancamento e morte de Fabiane Maria de Jesus, 33 anos, no dia 3 de maio de 2014. O artigo trata de como um retrato falado e divulgado nas redes sociais sobre uma “suposta sequestradora de crianças a quem também se atribuía, nas postagens, a finalidade de exploração das crianças em rituais de magia negra” mobilizou os moradores para uma “tradicional de caça às bruxas – aplicável sobretudo ao gênero feminino”, pode chegar no lugar da extrema violência.

Além da descrição desses exemplos, a Profa Eliana Tânia Freitas continua a sua análise sobre as interações e a uma possível falta de segurança na internet. Em suas considerações finais, cita um aumento das cruzadas morais promovidas “por agentes sociais como governos, empresários, juristas, pesquisadores, dentre outros” (Tânia Freitas, 2017, pág. 160) atentando para a linha tênue entre discursos sobre a moralidade e pedidos de censura nas redes sociais e na internet.

Logo estarão roendo outro osso

A partir da leitura desse artigo, comecei a observar com mais cuidado os variados tipos de linchamentos virtuais focados em mulheres. Percebi também, que mulheres que atuam na área da Comunicação estão se tornando alvo dessas ações .

Como exemplo, inicio com o caso da jornalista Patrícia Campos Mello, colunista da Folha de S.Paulo, com sua atuação reconhecida pelo Comitê para proteção de Jornalistas com o Prêmio Internacional de Liberdade de Imprensa (2019), e ganhadora do Troféu Mulher Imprensa do Jornal Folha de São Paulo.

No jornal onde trabalha, foi escalada para realizar uma reportagem sobre o uso ilegal de disparos de redes sociais na campanha eleitoral de 2018. Sua investigação culminou no ataque da figura maior da República do país, o presidente Jair Messias Bolsonaro, contra Patrícia Campos Mello. A reportagem deflagrou uma Comissão Parlamentar de Inquérito, a CPMI das Fake News, instaurada no início de 2020 na Câmara dos Deputados, em Brasília. Além do atual presidente da República, o deputado paulista Eduardo Bolsonaro, o ex funcionário de uma agência de disparos em massa, Hans River do Rio Nascimento, e Allan dos Santos, apresentador do canal online Terça Livre, levaram ao público, internautas e leitores ataques sobre a qualidade da condução do trabalho investigativo realizado pela jornalista. Uma produção com o sugestivo nome de “O Prostíbulo em Desespero” (7), veiculado no canal do YouTube Terça Livre, do dia 12 de fevereiro desse ano, exemplifica o tipo de reação que a profissional sofreu.

A jornalista, amparado por seu empregador, entrou na Justiça Estadual de São Paulo contra o presidente Jair Bolsonaro, Hans River do Rio Nascimento e Allan dos Santos. Ao todo, quatro ações foram movidas na Justiça, duas ações individuais por danos morais por ofensas de cunho sexual contra Hans River do Rio Nascimento e Jair Messias Bolsonaro, onde a jornalista pede a indenização no valor de R$ 50 mil, e mais dois processos, um contra o apresentador Allan dos Santos e outro, na pessoa jurídica do programa Terça Livre, onde o pedido de indenização é de R$ 100 mil.

Em novembro desse ano, mais duas jornalistas sofreram ataques que posso configurar como violência de Gênero. Compartilho o episódio contra a diretora da agência de checagem de notícias Aos Fatos, a jornalista Tai Nalon, vítima de ataques misóginos.

Primeiro é necessário explicar que a checagem de fatos não é uma novidade no mundo da Comunicação. Essa ação de comprovar fatos e dados existe, na imprensa escrita, desde o século 20. Com a popularização da internet, é cada vez mais urgente e necessária a checagem de informações nas redes sociais, blogs e nos aplicativos multiplataforma de mensagens instantâneas para smartphones, como whatsapp, signal e telegram. Por conta da velocidade e da escala da propagação de uma informação, cresce a quantidade de empresas de checagem de fatos ou verificação de dados, os fact-checking.

Em novembro desse ano, o jornalista Bruno Fávero, da agência de checagem de notícias Aos Fatos, questionou o blogueiro Leandro Ruschel sobre a publicação de desinformação em tweets dele e de outros bolsonaristas, sobre as eleições 2020 dos EUA. O blogueiro Ruschel respondeu e, na sequência, publicou a troca de mensagens nas redes sociais. Segundo a agência de checagem de notícias, logo após a divulgação da cobrança praticada por Bruno Fávero, nas redes sociais do grupo bolsonarista, os perfis dos colaboradores nas redes e os canais de atendimento ao público “passaram a receber ofensas de modo sistemático”(2), A questão foi agravada com a ação do procurador da República, Dr. Ailton Benedito, informando que estava processando o Aos Fatos por uma matéria publicada em maio deste ano, que o citou “como um dos usuários bolsonaristas do Twitter que mais promoveram o uso da cloroquina contra a Covid-19”.

A partir desse momento, diretora e jornalista Tai Nalon foi vítima de um grande número de ações propostas em juízo, acionadas pelo Dr. Ailton Benedito. Por conta dessa tática, conhecida como

SLAPP (Strategic Law Suit Against Public Participation), um manifesto foi assinado por dezenas de jornalistas em favor de Tai Nalon, e divulgado em diversos sites de notícias. No dia 11 de novembro, a Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) (1) também divulgou uma nota de solidariedade ao Aos Fatos e de repúdio às tentativas de intimidação.

Para finalizar esse pequeno artigo, apresento mais um recente ataque reservado a uma profissional da Comunicação Social. No dia 19 de novembro de 2020, um homem negro foi assassinado nas dependências do mercado Carrefour, em Porto Alegre, RS. O assassinato de João Alberto Silveira Freitas causou uma enorme comoção nas redes sociais porque aconteceu no dia anterior ao Dia Nacional da Consciência Negra, comemorado no dia 20 de novembro. Milhares de manifestações foram publicadas nas redes sociais, a hashtag #boicotecarrefour, já tem mais de 3 milhões de publicações, e protestos foram realizados em frente às lojas Carrefour em diversas cidades do Brasil.

Como milhares de pessoas, a ex-editora da Ponte Jornalismo, Maria Teresa Cruz(5), também se manifestou nas suas redes sociais contrária aos procedimentos praticados pela segurança da empresa, que culminaram na morte de João Alberto Silveira Freitas. Como milhares de pessoas, diante da brutalidade com que se eliminou uma vida, ela também se manifestou favorável aos protestos realizados nas lojas Carrefour, em diversas cidades do país.

Mas por que contra ela, uma mulher jornalista, foram endereçadas postagens e tweets de políticos e agentes do “gabinete do ódio”(6), um grupo de servidores públicos ligados ao vereador do Rio de Janeiro Carlos Bolsonaro (PSC), filho do atual presidente da República, com ataques misóginos, ameaças de morte e de judicialização contra a jornalista?

Sabemos que o Brasil tem problemas sociais e econômicos como tantos outros países. Mas, talvez, a novidade nesse momento, seja a forma como estão sendo conduzidas as ações, e as reações, a esses problemas tão graves. Essas “conduções” não acontecem de forma aleatória e sem método. O filósofo francês, Michel Foucault escreveu o importante livro “Vigiar e punir: nascimento da prisão”, onde analisa com respeito à disciplina, a concepção de “corpos dóceis,” e como os corpos, tratados como objetos, se tornam alvo do Poder. Termino esse artigo com um trecho desse livro. Não o apresento como uma resposta, mas como uma reflexão sobre o gosto pelo Gênero no linchamento virtual.

“Mas o corpo também está diretamente mergulhado num campo político; as relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais. Este investimento político do corpo está ligado, segundo relações complexas e recíprocas, à sua utilização econômica; é, numa boa proporção, como força de produção que o corpo é investido por relações de poder e de dominação; mas em compensação sua constituição como força de trabalho só é possível se ele está preso num sistema de sujeição (onde a necessidade é também um instrumento político cuidadosamente organizado, calculado e utilizado); o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso. Essa sujeição não é obtida só pelos instrumentos da violência ou da ideologia; pode muito bem ser direta, física, usar a força contra a força, agir sobre elementos materiais sem no entanto ser violenta; pode ser calculada, organizada, tecnicamente pensada, pode ser sutil, não fazer uso de armas nem do terror, e no entanto continuar a ser de ordem física.” (Foucault, 1987, pag 29)

REFERÊNCIAS

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987.

MARTINS, José de Souza. Linchamento, o lado sombrio da mente conservadora. São Paulo: Revista Tempo Social, USP, 8(2): 11-26, outubro de 1996.

As condições do estudo sociológico dos linchamentos no Brasil. São Paulo: Publicação do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, nº 9, 1995.

TÂNIA FREITAS, Eliane. Linchamentos Virtuais: Ensaio Sobre o Desentendimento Humano na Internet. Niterói: Revista Antropolítica, n. 42, 1. sem., 2017

VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos Índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia, 1995.

SITES

*Thereza Dantas é comunicadora. O texto acima foi produzido no fim do curso “Etnografiada Comunicação: mídia e mundo digital”, ministrado pela Profa. Isabel Travancas, da ECO UFRJ 2020.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

quatro − dois =