As lições da nova variante do corona para governos e população

Por Maíra Mathias e Raquel Torres, no Outra Saúde

PRESSÃO INTERNA

Boris Johnson está enfrentando intensa pressão para impor um terceiro lockdown nacional dentro de alguns dias. Segundo o Guardian, casos de infecção pela nova variante do vírus já foram detectados em todo o Reino Unido, e ontem o consultor científico do governo, Patrick Vallance, admitiu à imprensa que a nova cepa está “em toda parte” e os casos iriam aumentar depois da “mistura inevitável” do Natal. 

Por isso, cientistas acreditam que é improvável que a variante seja contida com um lockdown restrito ao sul e ao leste da Inglaterra. Segundo eles, o país caminha para uma situação parecida a do primeiro pico da pandemia, com o congestionamento no sistema público de saúde piorado por conta do inverno. O país confirmou 33.364 casos e 215 mortes ontem.

É incômodo pensar que apenas duas semanas separam o otimismo provocado pela imagem da primeira pessoa se vacinando no mundo ocidental, lá mesmo no Reino Unido, e o debate sobre um novo fechamento total do país. Não deixa de ser mais uma valiosa lição dessa pandemia – ainda mais para quem, como nós no Brasil, passou a apostar todas as fichas na vacina diante da recusa das autoridades e da própria população de levarem o vírus a sério. 

Por lá, ressurge a discussão de perseguir a “estratégia zero covid”. Seria decretar um lockdown nacional, esperar a transmissão baixar bastante e investir tudo em testes, rastreamento de contatos e isolamento, seguindo o modelo chinês e sul-coreano. “Parece caro, mas a alternativa pode ser um colapso catastrófico na confiança do país em controlar o vírus – seguido de desastre econômico, humano e social”, defende Robert West, da University College, no Guardian.

Para piorar, com a iminência do Brexit – ainda em sua versão sem acordo com a União Europeia – cresce o medo de que o Reino Unido sofra algum tipo de desabastecimento. Ontem, o governo pediu para a população não estocar alimentos já que a França, a despeito de um apelo público de Johnson, manteve a proibição de circulação não só de pessoas, como também de cargas entre os países.

SEM BLOQUEIO

Mais de 40 países já impuseram bloqueios aéreos ao Reino Unido. Entre eles, nossos colegas sul-americanos Argentina, Chile, Colômbia e Peru. O Brasil não está nessa lista. Procurado, o governo demonstrou mais uma vez seu alto grau de incapacidade para lidar com a pandemia. Isso porque, em tese, estamos no clube das nações que aceitam viajantes de qualquer nacionalidade que apresentem um teste RT-PCR negativo para o coronavírus, conforme uma portaria editada na semana passada. Mas acontece que essa norma só passa a valer no dia 30 de dezembro. Até lá? Ninguém sabe. 

Depois de afirmar que “acompanha diariamente a situação do coronavírus no Brasil e no mundo”, a Casa Civil se fechou em copas. Procurada, pediu que jornalistas questionassem os vários ministérios que compõem o grupo executivo (GEI) responsável pela tomada desse tipo de decisão se quisessem obter mais detalhes. As pastas, por sua vez, redirecionavam os questionamentos para a Casa Civil.

Enquanto isso, até a sempre diplomática Organização Mundial da Saúde (OMS) está de acordo com os bloqueios desta vez. O diretor de emergências da organização, Michael Ryan, afirmou ontem que essas medidas são “prudentes” pois seguem o princípio da precaução

EFEITO NAS CRIANÇAS

Em uma coletiva de imprensa ontem, cientistas que assessoram o governo britânico disseram que agora têm “alta confiança” de que a nova cepa tem uma vantagem de transmissão sobre outras variantes do vírus que já circulavam no Reino Unido. “Ainda não entendemos os mecanismos biológicos exatos”, disse Peter Horby, professor de doenças infecciosas emergentes da Universidade de Oxford, que preside o grupo de conselheiros. “Portanto, ainda há muita incerteza sobre como está ocorrendo e a extensão da transmissibilidade extra”, avisou.

A novidade do dia foi que os cientistas desconfiam que essa variante tenha uma maior facilidade para atingir crianças. Normalmente, os pequenos têm menos probabilidade do que os adolescentes e adultos de se infectarem ou transmitirem o vírus. “Não estabelecemos qualquer tipo de causalidade, mas podemos ver nos dados”, disse Neil Ferguson, epidemiologista do Imperial College – que, no entanto, também admitiu que mais informações são necessárias para bater o martelo.

E A IMUNIDADE?

Além da capacidade de transmissão, outra questão que precisa ser esgotada é se a variante tem efeito na proteção que as pessoas adquiriram contra o vírus, seja porque já foram infectadas ou porque estão sendo vacinadas contra ele. Embora vários veículos tenham destacado que não há risco – e seja verdade que essa é a opinião da maioria até agora –, encontramos boas reportagens que dão espaço para argumentos mais cautelosos. 

O principal contraponto é dado por Kristian Andersen, virologista do Scripps Research Institute. Ele tem explicado que as vacinas não se tornariam inúteis da noite para o dia, mas menos eficazes caso a variante tenha as adaptações certas. “Não sabemos, mas saberemos em breve”, disse.  As respostas virão dos estudos em andamento no Reino Unido, que envolvem extrair anticorpos do sangue de pessoas que se recuperaram da covid-19 ou foram imunizadas e, em laboratório, testar se eles ainda neutralizam a variante.

Ontem, na mesma coletiva de imprensa dada pelos cientistas que assessoram o governo britânico, a chefe de doenças infecciosas do Imperial College, Wendy Barclay, também falou sobre a possibilidade de reinfecção. “Há uma chance de que os anticorpos produzidos na primeira infecção não funcionem tão bem contra a nova variante”, disse. Mas ela também ressaltou que o sistema imunológico tem outras armas contra o vírus, como as células T. E, no caso das vacinas, que seria improvável que as mutações da variante consigam elidir completamente os anticorpos produzidos, já que eles se alojam em diferentes partes da proteína em forma de coroa e têm abordagens diferentes para combater o vírus.

As vacinas autorizadas até agora no mundo – da Pfizer e da Moderna – foram projetadas para ensinar o sistema imunológico a produzir anticorpos que podem reconhecer e bloquear as proteínas da espícula, justamente o trecho do genoma que têm as mutações mais preocupantes nessa variante B.1.1.7. Mais de meio milhão de pessoas já receberam a vacina da Pfizer no Reino Unido.

ORIGEM

O melhor palpite até agora para explicar por que essa variante do vírus acumulou tantas mutações (que, aliás, dependendo da fonte, são 23 ou 17) está na sua origem. É possível que o vírus tenha permanecido ativo dentro de uma mesma pessoa doente por semanas ou meses – e essa infecção de longa duração teria dado tempo ao patógeno para se adaptar. 

PALINHA

Está marcada para amanhã a divulgação dos aguardados resultados dos testes de fase 3 da CoronaVac, mas ontem à noite o Wall Street Journal deu uma antecipada. Com base em fontes anônimas ligadas ao desenvolvimento da vacina, o jornal disse que sua eficácia ultrapassou 50%, que é o mínimo necessário para a aprovação. Claro que essa é uma informação muito pobre – “acima de 50%” não é exatamente uma boa medida; além disso, ela não foi confirmada pelo Instituto Butantan, que mantém a previsão de divulgação para uma coletiva de imprensa na quinta-feira. 

Assim que os resultados forem apresentados, a Anvisa vai estar pronta para emitir a autorização emergencial. Um entrave para isso era que a agência ainda não havia emitido o certificado de boas práticas à fábrica do imunizante na China, mas isso acaba de ser feito: foram publicados ontem no Diário Oficial os certificados para a fabricação da matéria-prima da CoronaVac e de produtos estéreis usados na sua formulação. Eles vêm após as análises de uma equipe de técnicos da Anvisa que inspecionou as instalações da Sinovac no início de dezembro.

Aliás, o mesmo grupo visitou também a fábrica que vai produzir a matéria-prima para a vacina de Oxford-AstraZeneca, mas esse certificado só deve sair no ano que vem. 

PARA ESTICAR A EFICÁCIA

Ontem foi confirmada uma notícia que já havia sido adiantada pela AstraZeneca: a empresa assinou um acordo para testar uma combinação de sua vacina com a Sputnik V, do Instituto Gamaleya, da Rússia. A ideia é tentar aumentar a eficácia da primeira (que foi estimada em cerca de 70%, mas com erros no estudo e uma confusão sobre o melhor regime de doses) a partir da segunda (cujos dados preliminares apontam 91,4% de eficácia, mas ainda não foram publicados em detalhes). Foram os desenvolvedores da Sputnik V que sugeriram essa parceria, via Twitter, ainda em novembro.

“Os testes não vão exigir, imagino, grandes investimentos e muito tempo pela simples razão de que as duas plataformas tecnológicas nas quais as vacinas AstraZeneca e Sputnik V são criadas são fundamentalmente semelhantes, muito semelhantes”, disse o diretor do Instituto Gamaleya, Alexander Gintsburg, ao anunciar o início da empreitada. Ambos os imunizantes usam adenovírus como vetores. 

Os novos estudos não interferem na aprovação da formulação atual da vacina da AstraZeneca, já que se trata de um produto diferente. A propósito: apesar de o plano brasileiro se fiar predominantemente nesse imunizante, ainda não se sabe quando um pedido de autorização ou registro será feito à Anvisa. 

AGORA, A EUROPA

A EMA (Agência Europeia de Medicamentos, reguladora da União Europeia) autorizou o uso emergencial da vacina da Pfizer/BioNTech. Em vários países, a imunização está programada para começar na próxima semana: na Alemanha, França, Áustria e Itália, isso deve acontecer a partir do dia 27. A distribuição não será uniforme, porém. Alguns países ainda estão tentando instalar os freezers necessários para o armazenamento do produto, outros ainda não fizeram planos para definir os grupos prioritários. 

Enquanto isso, num evento transmitido ao vivo pela TV, o presidente eleito dos EUA, Joe Biden, recebeu sua primeira dose dessa vacina. 

CHEGOU ONDE FALTAVA

Um surto de covid-19 com pelo menos 36 infectados foi identificado na Antártida. Era o único continente que estava livre da doença. O coronavírus chegou a uma base mantida pelo exército chileno, que por sua vez recebeu um navio recentemente, para trabalhos de suporte logístico. 

AQUI SÓ PIORA

Ontem, completamos dez dias de subida ininterrupta na curva letal da pandemia. Nas contas do consórcio de imprensa, a média de mortes em sete dias chegou a 769, variação de 25% em relação à taxa verificada 14 dias atrás. Todas as cinco regiões do país seguem em aceleração: Sul e Centro-Oeste têm as maiores taxas, com 28% cada; Sudeste (25%), Norte (23%) e Nordeste (18%) vêm na sequência. A reportagem do UOL traz gráficos estado por estado.

Em São Paulo, após as mortes crescerem 34% e os casos saltarem 54% nas últimas quatro semanas, o governo chegou a sinalizar ontem que poderia  decretar medidas mais restritivas à circulação, mas ainda não foi desta vez.  

MORTE ESTÚPIDA

Por ordem da ministra Tereza Cristina, uma força-tarefa com servidores ligados a várias superintendências regionais começou a trabalhar presencialmente em Brasília no dia 17 de novembro. Das 21 pessoas do grupo, seis se contaminaram com o coronavírus. E um servidor com 42 anos de casa morreu. Alcides Flores tinha 64 anos e foi deslocado de Porto Velho, onde morava, para o trabalho. A morte gerou revolta por dois motivos: os funcionários afirmam que tudo o que eles fizeram na capital poderia ser feito em regime de home office, já que os processos da pasta estão digitalizados. E também porque, chegando no escritório, não havia nenhum tipo de plano para que o trabalho ocorresse de forma segura e os servidores teriam sido colocados em uma sala, com quatro pessoas por mesa.

O grupo da força-tarefa culpa o ministério pela morte do colega“, conta a repórter Raquel Lopes, da Folha que ouviu os funcionários que por motivos óbvios pediram anonimato. Ela também teve acesso a conversas de WhatsApp. Em uma delas, aparece o seguinte relato: “Durante os dias em que os colegas estavam em Brasília, era nítida a angústia e a falta de informação, tendo em vista que não havia nenhum plano de contingência e socorro. Aliás, num primeiro momento, após o Alcides ser confirmado com covid-19, a orientação, contrariando as normativas de prevenção, era de que os colegas poderiam retornar para a sala higienizada”.

SÓ NO ESTOQUE

O medicamento bussulfano, usado para preparar o organismo de quem vai receber um transplante de medula óssea, pode ficar em falta no próximo ano. O laboratório francês Pierre Fabre é o único que tem o medicamento registrado no Brasil, mas anunciou, no fim de novembro, que vai deixar de distribuí-lo para o país. Com isso, as importações vão ter que ser avaliadas caso a caso pela Anvisa – os estoques no país só devem durar até junho. A possível interrupção é um problema porque pode inviabilizar os tratamentos e até levar à morte, alertam associações médicas e de pacientes.

As versões para explicar o fim da venda ao Brasil são conflitantes. A Pierre Fabre distribui o produto, mas ele é fabricado por outro laboratório; a empresa diz que este laboratório teve suas certificações negadas pela Anvisa. Só que a agência diz que não: “A quebra do fornecimento, na situação atual, não está vinculada a nenhum pedido pendente junto à Anvisa”, afirma a agência. Já o Ministério da Saúde foi procurado pelo  Estadão, mas não se manifestou…

Ilustração: Outra Saúde

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