Prefeito indígena barrado por TRE já sofreu atentado e teve pai assassinado. Por Rubens Valente

No Uol

A trajetória do indígena que foi eleito prefeito no município de Pesqueira (PE) Marcos Luidson de Araújo, 42, o Cacique Marquinhos – impedido de tomar posse nesta sexta-feira (1) por decisão do TRE (Tribunal Regional Eleitoral) de Pernambuco – e de sua família se confunde com a história dos últimos 30 anos de sua etnia Xukuru.

Seu pai, o cacique Francisco de Assis Araújo, o Xicão Xukuru, foi assassinado em 21 de maio de 1998 quando liderava o movimento pela demarcação da terra indígena, depois de anos de tentativas de apagamento da etnia na região. Hoje demarcado com 26 mil hectares, onde vivem mais de 12 mil indígenas, o território estava ocupado na época por não indígenas, que pouco a pouco foram retirados, inclusive por retomadas feitas pelos xukurus.

A luta vinha de longe, desde os anos 80, e foi marcada por assassinatos. Além de Xicão, em 1995 o procurador da Funai (Fundação Nacional do Índio) na região Geraldo Rolim da Mota Filho foi morto a tiros – um fazendeiro chegou a ser acusado mas acabou absolvido. Mesmo fim violento tiveram outros xukurus empenhados na demarcação, como José Everaldo Rodrigues Bispo, filho do pajé Zequinha, e o cacique Francisco Santana, o Chico Quelé.

Ex-procuradora-geral da República disse que cacique liderou luta “pela identidade indígena”

Em fevereiro de 2003, foi a vez de Marquinhos, aos 25 anos de idade, ser alvo de um ataque a tiros, no qual morreram dois de seus acompanhantes, os indígenas Jozenilson José dos Santos e José Ademilson Barbosa da Silva. Eles estavam desarmados.

A procuradora da República Raquel Dodge, que em 2017 se tornaria procuradora-geral da República, atuava na PFDC (Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão) na PGR (Procuradoria Geral da República) em Brasília quando integrou a comitiva de autoridades enviada às pressas da capital federal para acompanhar a investigação sobre o atentado contra o cacique e o duplo assassinato. Ela já conhecia Marquinhos desde os anos 90, quando ele, adolescente, e sua mãe e viúva de Xicão, Zenilda, vinham a Brasília cobrar investigações sobre o assassinato de Xicão e o andamento da demarcação do território.

“Conheço pessoalmente a comunidade indígena, seus líderes e muitos membros desde os anos 90, quando atuava em defesa das comunidades indígenas e pela demarcação de suas terras como membro da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF. É uma história de conflito pela terra, pela identidade indígena (que chegou a ser declarada extinta pela Funai), por direitos indígenas, que já causou muito sofrimento e muita dor.”

Nascido na região de Pesqueira, Xicão chegou a morar em São Paulo. Mas no final dos anos 70 decidiu retornar a Pesqueira para retomar o movimento pela demarcação do território xukuru, o que ganhou força a partir do capítulo sobre os direitos indígenas da Constituição de 1988.

Depois do assassinato do seu pai, Marquinhos foi assumindo o papel de liderança, até ser escolhido cacique no início dos anos 2000. “Ele não virou cacique só porque era filho de Xicão. Marcos provou que era um líder e foi eleito pelos outros indígenas. Não foi uma liderança herdada nem dada, ela foi conquistada. Ele confiou na promessa da Constituição de 1988 de que os índios poderiam reassumir a sua própria identidade e ter acesso ao seu próprio território. Era um líder muito carismático, eu vi esse amadurecimento.”

Cacique se opôs à exploração de turismo religioso dentro da terra indígena

Foi em razão do atentado de 2003 a abertura do processo judicial que levaria, 17 anos depois, à proibição da posse de Marquinhos como prefeito de Pesqueira. No mesmo dia e na sequência dos tiros que mataram os acompanhantes de Marquinhos, a parte dos xukurus que apoiava o cacique depredou veículos e incendiou pelo menos um imóvel na vizinha Vila de Cimbres, em retaliação ao crime.

Indígenas ligados aos autores do atentado foram expulsos da comunidade. A comunidade estava dividida. Uma parte menor queria legalizar o turismo religioso dentro do território indígena (fiéis creem numa aparição de Nossa Senhora em Cimbres na década de 30). Marquinhos era contrário à exploração comercial do território porque representaria a invasão das terras por estranhos.

Mesmo sem uma prova material nos autos, como fotografias, vídeos, uma ordem ou uma comprovação de que o cacique esteve na Vila de Cimbres no momento dos distúrbios, e tomando como reais os depoimentos dos próprios adversários do cacique – conforme demonstram o inquérito e o processo de 1,3 mil páginas, aos quais a coluna teve acesso -, Marquinhos foi acusado como autor de incêndios ao lado de 34 indígenas.

“São testemunhos do tipo ‘ouvi dizer que o cacique estava lá’, ‘só pode ter sido o cacique’. Isso mostra a fragilidade da acusação”, disse o advogado do cacique, Marcelo Patu.

Cacique Marquinhos disse à coluna que o atentado e as acusações contra ele “foram incentivados por terceiros com interesses econômicos na terra indígena”.

“No momento dos acontecimentos [incêndios], eu não estava no local. Eu fugi, consegui escapar. A partir dali começa uma revolta popular, revolta da comunidade, inclusive porque não sabiam onde eu me encontrava. A informação é que eu me encontrava sequestrado. Aí as pessoas foram identificando as pessoas que tinham relação com o acontecido [atentado].”

Marquinhos disse que, para escapar do local do atentado, ocorrido na zona rural de Pesqueira, ele correu para o mato e feriu a cabeça ao passar por uma cerca de arame farpado. Ao tempo dos distúrbios em Cimbres, segundo afirmam sua defesa e várias testemunhas, o cacique estava, na sequência, recebendo o primeiro socorro na casa de um conhecido, sendo atendido no hospital de Pesqueira e se abrigando na casa de sua mãe, a cerca de 18 km do local dos incêndios, pois se temia um novo ataque contra ele. Testemunhas também disseram que ele havia tomado remédios e estava sedado, grogue, sem condições de liderar um ataque em Cimbres.

Inscrição da candidatura foi aceita pela Justiça Eleitoral, que rejeitou impugnação

Mas a Justiça Federal em Pernambuco entendeu que ele era culpado pelos incêndios, na mesma linha da denúncia do Ministério Público Federal em Pernambuco e do inquérito da polícia. Ele foi condenado a 10 anos de reclusão, pena depois revista e reduzida, pelo TRF (Tribunal Regional Federa), para quatro anos em regime aberto. O cacique prestou serviços comunitários, como a distribuição de cestas básicas. Em 2015, doze anos depois dos incêndios, a então presidente Dilma Rousseff assinou um decreto que, ao ser interpretado na Justiça Federal por provocação da defesa, representou um indulto ao cacique.

Cinco anos depois, em 2020, filiado ao partido Republicanos e numa coligação com PT, PTB e PL, Marquinhos decidiu lançar sua primeira candidatura à Prefeitura de Pesqueira. Não houve problema algum no registro da chapa. “Quando me candidatei, fui à Justiça Eleitoral, a todas as instâncias competentes, e nada constou que teria problema na minha candidatura. Todas as certidões tiramos na Justiça Eleitoral, não havia nada que me impedisse de concorrer nas eleições”, disse o cacique.

Uma semana depois da inscrição, em 29 de setembro, a coligação adversária de Marquinhos, liderada pela então prefeita Maria José Castro Tenório (DEM), pediu na Justiça Eleitoral que fosse barrada a candidatura do cacique. Argumentou que, “embora o crime de incêndio não esteja no rol dos crimes contra o patrimônio privado no Código Penal Brasileiro, seria este o bem jurídico tutelado, de forma a incorrer o impugnado [cacique] em inelegibilidade prevista na Lei Complementar n. 64/90”.

Os advogados da candidata disseram que o prazo de inelegibilidade do cacique teve início com o indulto presidencial, em dezembro de 2015, “e apenas se encerrará em 24 de dezembro de 2023”. O grupo político de Maria José está no poder em Pesqueira há mais de 30 anos. Seu marido, o ex-deputado estadual João Eudes (PP), foi prefeito do município por duas vezes.

O juiz eleitoral de Pesqueira, Marcos Antônio Tenório, analisou a impugnação e, em 17 de outubro, autorizou o registro da candidatura do cacique. O juiz escreveu que a impugnação “carece de fundamento legal objetivo e foge a uma interpretação linear, objetiva e restritiva da norma”. O magistrado explicou ainda que o crime de incêndio, considerado crime contra a incolumidade pública, “não está incluso no rol taxativo de inelegibilidade”.

“Ora, infere-se que a vontade legislativa excluiu das causas de inelegibilidades os crimes dispostos nesse título, de forma a, numa interpretação restritiva da norma, não causarem qualquer inelegibilidade”, escreveu o magistrado. A coligação de Maria José recorreu ao TRE (Tribunal Regional Eleitoral) de Pernambuco. O Ministério Público Eleitoral passou a concordar com a interpretação dos adversários políticos do cacique e opinou pela impugnação.

Parecer técnico de dois professores de direito diz que candidatura foi legal

Em 15 de novembro, enquanto tramitava no TRE o recurso dos adversários, Marquinhos foi eleito com 51,6% dos votos válidos, ou 17,6 mil sufrágios. Maria José obteve 45,4% dos votos. No TRE, a votação foi bem apertada, quatro votos a três contra o cacique. O placar estava três a três quando um dos desembargadores chegou a avisar que iria pedir vista do processo a fim de estudá-lo melhor. Mas na mesma sessão decidiu votar contra a posição de Marquinhos.

A defesa do candidato ingressou no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) com um recurso especial. A APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) pediu para atuar como amicus curiae, mas o TSE não aceitou, citando jurisprudência.

Em parecer levado aos autos pela defesa do cacique, o professor de direito constitucional, mestre e doutor pela UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) Daniel Sarmento e o professor e doutor em direito público pela UERJ Ademar Borges afirmaram que “não é possível enquadrar o delito” pelo qual cacique foi condenado “como crime contra o patrimônio privado, o que afasta a aplicação da causa da inelegibilidade” prevista na legislação.

“É orientação jurisprudencial pacífica no STJ e STF que não cabe à Justiça Federal julgar crimes envolvendo indígenas relativos a bens jurídico-penais como o patrimônio privado. Fosse o delito em questão um crime contra o patrimônio privado, a condenação do Consulente [cacique] seria nula, por incompetência jurisdicional absoluta. Não é razoável supor que diversas instâncias jurisdicionais tenham cometido tamanho equívoco, ignorando jurisprudência tão conhecida e consolidada, o que corrobora o entendimento de que o crime em discussão não corresponde a delito contra o ‘patrimônio privado'”, escreveram os professores.

A finalidade da Lei da Ficha Limpa, apontaram os especialistas, foi “garantir a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato”. “Essa finalidade justifica a aplicação da inelegibilidade sobre crimes como estelionato e roubo, mas não guarda relação com o crime de incêndio.”

Mas ainda que essa interpretação seja refutada, dizem os advogados, “a aplicação da regra, no caso concreto, se afigura inconstitucional”.

“Afinal, o incêndio em questão correspondeu à reação de um grupo de indígenas diante do assassinato de dois jovens da sua tribo e da tentativa de homicídio do seu cacique – o Consulente [Marquinhos] -, como reconheceu a decisão condenatória do TRF da 5ª Região. Uma reação de pessoas agindo de acordo com valores presentes em sua cultura tradicional. Nesse cenário, não há como considerar o fato específico como crime contra o patrimônio, capaz de gerar a inelegibilidade. A aplicação da inelegibilidade em tal contexto fático se afiguraria claramente inconstitucional, por ofender de modo desproporcional os direitos políticos do Consulente (jus honorum), a democracia e o direito à igualdade política dos povos indígenas.

Prefeito eleito vê continuidade do “processo de perseguição” aos xukurus

O processo agora está suspenso no TSE. Depois que o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Kassio Marques deu uma decisão, em outro processo, que coloca em xeque prazos para inelegibilidade com base na Lei da Ficha Limpa, o presidente do TSE, Luís Barroso, decidiu que o processo sobre o cacique, ao lado de outros casos, devem ficar suspensos até que o plenário do STF decida a respeito do tema tratado na decisão de Marques.

Depois das decisões do TSE e do STF, últimos recursos para tentar reverter a decisão do TRE pernambucano, tomou posse como prefeito interino de Pesqueira, na última sexta-feira (1), o vereador eleito presidente da Câmara Sebastião Leite, o Bal do Mimoso (Republicanos), do grupo político do cacique. No dia 1º, em uma manifestação de apoio ao prefeito eleito mas não empossado, Bal chamou Marquinhos para ficar ao seu lado no ato da posse.

Para Marquinhos, o impedimento de sua posse “ainda é reflexo de toda a trajetória que passamos dentro de um processo de perseguição contra a nação xukuru”.

“Eles vêem um cacique chegando a um patamar como esse, de comandar o município, evidentemente que não iriam permitir e estão fazendo de tudo para que não ocorra vontade do povo de Pesqueira. A eleição se deu de forma democrática, muito pacífica, 51,6% me escolheram. Hoje minha maior preocupação é que Pesqueira sofre nesse aspecto. Hoje está um caos no sentido de que as pessoas não sabem o rumo que o município vai ter dai para diante. Algo muito atípico, que nunca ocorreu dentro do nosso município”, disse Marquinhos.

Em nota, a secretária-executiva da APIB, Sonia Guajajara, disse que “a eleição de 2020 representa um avanço civilizatório para a nossa democracia” e que os povos indígenas conseguiram “o feito histórico de eleger o maior número de indígenas em uma disputa eleitoral”.

“A vitória do Cacique Marcos representa este avanço e nós, da APIB, vamos somar forças na defesa dele, na Justiça Eleitoral, pela legitimidade da candidatura de Marcos, que é uma liderança reconhecida no Brasil e no mundo todo pela defesa dos direitos humanos”, disse Sonia na nota.

Em fevereiro de 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) condenou o Brasil por violações sofridas pelo povo xukuru ao longo de décadas. A sentença responsabilizou o Estado brasileiro por violações dos direitos à garantia judicial, à proteção judicial e à propriedade coletiva da terra. Forçado pela decisão, dois anos depois, em fevereiro passado, o governo federal teve que depositar US$ 1 milhão na conta da associação dos xukurus como parte do cumprimento da sentença da Corte.

O cacique Marcos, líder dos Xukuru e filho do cacique Xicão, que foi assassinado em 1998. Imagem: Acervo Alespe

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