Quem tem autoridade para identificar indígenas? Por Manuela Carneiro da Cunha

Na Comissão Arns

Chegou-me há poucos dias o Parecer da Procuradoria Jurídica da FUNAI que teria fundamentado essa Resolução. Como o tal Parecer me cita extensa e elogiosamente, cabe-me declarar que as citações literais de meus textos são fiéis, mas que de nenhuma forma justificam a Resolução da FUNAI.

A questão central está posta: quem tem autoridade para identificar indígenas?

Desde 2004, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1989, é vigente no Brasil. Ela se aplica a povos tribais e a povos indígenas.

E como se reconhecem povos indígenas e tribais? O artigo 2 da Convenção é claro: “A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção”. O critério fundamental para o reconhecimento de um povo indígena é assim a auto-identificação.

Uma vez assente quem são os povos indígenas, como se podem reconhecer os indivíduos indígenas? São evidentemente indivíduos que se consideram membros de um determinado povo e são reconhecidos por esse povo, com seus critérios e instituições. O controle social é dos próprios indígenas. Quem, por conseguinte, é autorizado a colocar em dúvida, infirmar ou confirmar a identidade de um ou uma indígena são as instituições do povo indígena com o qual se identificam.

Esse procedimento já vigora na maior parte das universidades que garantem cotas para indígenas. Por um lado, a veracidade de candidatos a essas cotas é atestada por uma ou mais autoridades de seu povo, e por outro lado, ela é controlada de modo menos formal mas igualmente eficaz pelos demais candidatos do mesmo povo.

O histórico da FUNAI não recomenda as definições que, vez por outra, ela enuncia, e muito menos ainda no atual momento. Outro exemplo é elucidativo: através de medida infralegal, a Instrução Normativa n.9, de abril de 2020, a FUNAI tenta deixar de reconhecer seus deveres referentes a terras indígenas que o Estado ainda não demarcou, como deveria ter feito. Essa omissão diante de um preceito constitucional coloca o Estado em mora de 27 anos, mas não altera a existência de Terras Indígenas tradicionalmente ocupadas, declaradas no art.231 da Constituição. Deixar de considerar parte delas e retirá-las do Sistema de Gestão Fundiária do INCRA, como se decidiu, foi abrir caminho para a legalização de invasões.

A FUNAI está assim empenhada em eliminar direitos, com o velho expediente que consiste em tentar apagar no papel os titulares desses direitos.

Por fim, lembremos o dever de consulta prescrito ao governo no artigo sexto da Convenção da OIT 169 e que sequer foi aventado pela FUNAI: é obrigação dos “governos consultar os povos interessados mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetar diretamente povos indígenas”. Uma medida administrativa como a de poder identificar indígenas dignos de receber serviços públicos certamente requereria consulta.

Professora Manuela Carneiro da Cunha. Foto: EAV Parque Lage

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