Rancière vê a crise da Democracia e da Razão

Para filósofo, por trás de atos como o assalto ao Capitólio não há apenas loucura de tolos. Eles são nutridos por uma racionalidade cada vez mais arrogante e por sistema que cultua a paixão por desigualdade, privilégio e opressão do “inferior”

Por Jacques Rancière*, na Verso Books | Tradução: Simone Paz, em Outras Palavras

Ao testemunhar o ataque ao Capitólio, pode nos parecer surpreendente ver os apoiadores de Trump negando implacavelmente os fatos — a ponto de afundar numa violência fanática. Alguns podem enxergá-los como espíritos ingênuos, enganados pelas fake news. Mas como podemos ainda acreditar nesta fábula, se vivemos em um mundo onde há uma superabundância de notícias e comentários que “decifram” as notícias? Na verdade, se as pessoas rejeitam o que é óbvio, não é porque sejam estúpidas, é no intuito de mostrar que são inteligentes. Sinal de uma perversão inscrita na própria estrutura da nossa razão.

É fácil zombar das loucuras de Donald Trump e ficar indignado com a violência de seus fãs. Mas o desencadeamento da mais pura irracionalidade no cerne do processo eleitoral, no país melhor configurado para administrar a alternância num sistema representativo, também levanta questões sobre o mundo que compartilhamos com eles: um mundo que pensávamos ser o mundo do pensamento racional e da democracia pacífica. E a primeira pergunta é, obviamente: como as pessoas podem recusar-se tão obstinadamente a reconhecer os fatos atestados e como essa recusa pode ser tão amplamente compartilhada e apoiada?

Há pessoas que ainda se agarram a uma velha tábua de salvação: aqueles que não querem reconhecer os fatos são vistos como ignorantes, mal informados; ou como ingênuos, enganados por notícias falsas. Este é o clássico idílio de um povo bom, mas simplório; que se deixa levar, mas que só precisa aprender a se informar sobre os fatos e julgá-los com espírito crítico.

O argumento, então, precisa ser invertido: se as pessoas rejeitam o óbvio, não é porque são estúpidas, é para mostrar que são inteligentes. E a inteligência, como se sabe, consiste em desconfiar dos fatos e questionar o propósito da enorme massa de informações que nos atinge todos os dias. Para o qual a resposta seria, muito naturalmente, de que é para enganar as pessoas, porque o que é exposto à vista de todos, geralmente, está ali para encobrir a verdade, que devemos ser capazes de desvendar — escondida sob a falsa aparência dos fatos apresentados.

A força dessa resposta é que ela consegue satisfazer tanto os mais fanáticos quanto os mais céticos, ao mesmo tempo. Uma das características mais marcantes da nova extrema direita é o lugar ocupado pelas teorias conspiratórias e negacionistas. Essas teorias têm aspectos delirantes, como a teoria da grande conspiração pedófila internacional. Mas esse delírio é, em última análise, apenas a forma extrema de um tipo de racionalidade geralmente valorizada em nossas sociedades: aquela que exige que vejamos cada fato particular como consequência de uma ordem global, conectando esse fato com tudo ao seu redor, numa conexão que tanto o explica, como o mostra de uma forma muito diferente do que parecia ser à primeira vista.

Sabemos que este princípio de explicar tudo pela soma das conexões também funciona ao contrário: é sempre possível negar um fato invocando a ausência de um elo na cadeia de condições que o tornariam possível. Como sabemos, é assim que certos intelectuais marxistas radicais negavam a existência das câmaras de gás nazistas, uma vez que é impossível deduzir sua necessidade a partir da lógica geral do sistema capitalista. E novamente, nos dias de hoje, alguns intelectuais renomados enxergam o coronavírus como uma fábula criada por nossos governos para nos controlar melhor.

A lógica subjacente às teorias conspiratórias e negacionistas não é exclusividade de mentes simplórias ou cérebros perturbados. Suas formas extremas comprovam a parcela de irracionalidade e superstição presente no coração de nossas sociedades, com sua forma dominante de racionalidade, e nas formas de pensamento que interpretam como tudo isso funciona. A possibilidade de negar tudo não é o tipo de “relativismo” enfrentado por mentes sérias, que veem a si mesmas como guardiãs da universalidade racional. É uma perversão inscrita na própria estrutura de nossa razão.

Pode-se dizer que para as pessoas negarem tudo não basta contar com as armas intelectuais. Também é preciso querer negar tudo. Isso é claramente verdadeiro. Mas precisamos examinar o conteúdo dessa vontade ou desejo que leva a acreditar ou não acreditar.

É improvável que todos os setenta e cinco milhões de eleitores que votaram em Trump sejam pessoas de mentes fracas, convencidas por seus discursos e pelas informações falsas que eles transmitem. Eles acreditam, mas não no sentido de considerar que tudo o que ele diz é verdade. Eles acreditam é no sentido de que ficam felizes por ouvir o que ouvem: um prazer que pode ser expresso em uma cédula de votação a cada quatro ou cinco anos, mas muito mais simplesmente, no dia a dia, com um simples “like”. E os espalhadores de informações falsas não são pessoas ingênuas que as imaginam verdadeiras, nem cínicos que sabem que são falsas. São simplesmente pessoas que querem que seja assim, que querem ver, pensar, sentir e viver na comunidade do sentimento que essas palavras tecem.

Como deveríamos compreender essa comunidade e esse desejo? É aqui que outra noção preguiçosa espera à espreita, a do populismo. Ao invés de um povo bom e ingênuo, esta configuração evoca um povo frustrado e invejoso, pronto para seguir alguém que saiba como encarnar seus ressentimentos e jogar luz à sua causa.

Ouvimos que Trump é o representante da angústia e da raiva das comunidades brancas desprivilegiadas: aquelas deixadas para trás pela transformação econômica e social; aqueles que perderam seus empregos com a desindustrialização e seus marcadores de identidade com as novas formas de vida e cultura; aqueles que se sentem abandonados por elites políticas e desprezados pelas elites bem formadas.

O fenômeno não é novo: foi assim que o desemprego serviu nos anos 1930 como explicação para o nazismo e é repetidamente usado para explicar qualquer avanço da extrema direita em nossos países. Mas como podemos acreditar seriamente que os setenta e cinco milhões de eleitores de Trump se encaixam nesse perfil de vítimas de crise, desemprego e empobrecimento? É então necessário abandonar a segunda linha vital do confortável pensamento intelectual, a da clássica figura de um povo no papel do ator irracional: um povo frustrado e brutal que é o oposto do povo bom e ingênuo.

Mais profundamente, precisamos questionar essa forma de racionalidade pseudo-acadêmica, que busca transformar as formas políticas de expressão do sujeito/povo em traços pertencentes a este ou aquele estrato social em ascensão ou declínio. Um povo político não é a expressão de um povo sociológico pré-existente. É uma criação específica: é produto de uma série de instituições, procedimentos e formas de ação, mas também de palavras, frases, imagens e representações que não expressam os sentimentos de um povo antes existente, mas que criam um povo particular, ao inventar um regime de afetos para ele.

Os trumpistas não são a expressão de estratos sociais em dificuldades e em busca de um protetor. São, antes de tudo, um povo elaborado a partir de uma instituição específica, onde muitos enxergam, teimosamente, a expressão suprema da democracia: aquela que estabelece uma relação imediata e recíproca entre um indivíduo considerado a personificação do poder de todos e um coletivo de indivíduos que se reconhecem nele. É também um povo construído por uma forma particular de pertencimento, um endereço personalizado possibilitado pelas novas tecnologias de comunicação, onde o líder fala todos os dias a todos, tanto em público como em privado, utilizando as mesmas formas de comunicação que permitem a cada um dizer diariamente o que está na sua mente ou no seu coração.

São, enfim, um povo construído pelo sistema específico de afetos que Donald Trump manteve por meio desse sistema de comunicação: um sistema de afetos que não se destina a nenhuma classe em particular e que não atua na frustração, mas, ao contrário, na satisfação com a própria condição; não em um sentimento de desigualdade a ser reparado, mas em um sentimento de privilégio a ser mantido contra todos aqueles que querem atacá-lo.

Não há nada de misterioso na paixão a que Trump apela: é a paixão pela desigualdade, a paixão que permite que ricos e pobres encontrem uma multidão de inferiores sobre os quais devem manter a todo custo sua superioridade. Na verdade, há sempre uma superioridade da qual você pode participar: superioridade dos homens sobre as mulheres, das mulheres brancas sobre as mulheres de cor, dos trabalhadores sobre os desempregados, dos que trabalham nas ocupações do futuro sobre os outros, daqueles com bons seguros sobre aqueles que dependem dos serviços públicos, de nativos sobre os imigrantes, de locais sobre os estrangeiros e de cidadãos da pátria-mãe da democracia acima do resto da humanidade.

No Capitólio ocupado pelos bandidos trumpistas, a presença dupla tanto da bandeira dos treze estados fundadores, quanto da bandeira do Sul escravocrata, ilustra muito bem essa montagem singular que transforma a igualdade numa prova suprema da desigualdade, e a “busca de felicidade” num afeto odioso. Mas o ethos de uma nação também não pode ser equiparado a essa suposta identificação do poder do povo com uma enorme coleção de superioridades e ódios, ou a um determinado estrato social. Sabemos o papel desempenhado em nosso próprio país pela oposição entre uma “França trabalhadora” e uma “França miserável”, entre aqueles que avançam e aqueles que permanecem dependentes de sistemas arcaicos de proteção social, ou entre os cidadãos do país do Iluminismo e dos direitos humanos e as populações atrasadas e fanáticas que ameaçam a sua integridade. E podemos constatar, diariamente na Internet, entre os comentários dos leitores de jornais, o ódio que algumas pessoas têm de qualquer forma de igualdade possível.

Assim como a negação teimosa não é uma marca de mentes atrasadas, e sim uma variante da racionalidade dominante, a cultura do ódio não é o produto de camadas sociais desprivilegiadas, mas do funcionamento de nossas instituições. É uma forma de “forjar pessoas”, uma forma de criar um povo pertencente à lógica da desigualdade. Quase duzentos anos atrás, Joseph Jacotot, pensador da emancipação intelectual, mostrou como a loucura anti-igualitária era a base de uma sociedade em que todo inferior era capaz de encontrar alguém inferior a ele e desfrutar dessa superioridade. Da minha parte, há apenas um quarto de século, eu sugeria que a identificação da democracia com o consenso produzia, no lugar de um povo de divisão social, agora declarado arcaico, um povo ainda mais arcaico baseado apenas nos afetos do ódio e da exclusão.

Para além do conforto da indignação ou do escárnio, os eventos que marcaram o fim da presidência de Donald Trump deveriam nos levar a olhar um pouco mais de perto para as formas de pensamento que chamamos de racionais e as formas de comunidade que chamamos de democráticas.

*Jacques Rancière é um filósofo francês, professor da European Graduate School de Saas-Fee e professor emérito da Universidade Paris VIII. Seu trabalho se concentra sobretudo nas áreas de estética e política.

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