Enquanto Estado aposta no agronegócio, agricultura familiar sertaneja luta pela existência. Entrevista especial com Klenio Costa

Pesquisador detalha como os modos de vida de pequenos produtores do sertão, apesar de preteridos pelo poder público, resistem e revelam melhor exemplo de relação entre ser humano e ambiente

Por: Patrícia Fachin e João Vitor Santos, em IHU On-Line

No mundo dos negócios se vende a ideia de que ‘o agro é pop’, mas durante a pandemia ficou mais do que claro o papel central da agricultura familiar no combate à fome. Não é à toa que, recentemente, o sociólogo José de Souza Martins, em entrevista à IHU On-Line, chegou a considerar que a  agricultura familiar é a melhor ação brasileira desde a abolição da escravidão. O jovem sociólogo Klenio Costa conhece de perto essa realidade e concorda com Martins. Mas, observa: “reconheço que existem arranjos de agricultura familiar que logram sucesso. Entendendo esse sucesso como a construção de um projeto autônomo de vida e trabalho no campo. Porém, entendo também que a prevalência da grande propriedade determina que uma grande massa de agricultores seja mantida sob o julgo de ‘coronéis’. A exploração política e econômica leva estes agricultores familiares a sobreviver em condições limites.”

Klenio traz essa perspectiva a partir da pesquisa realizada em Sitio Carretão, no município de Petrolina, em Pernambuco. Mergulhado nessa realidade, ele observa como o pequeno produtor familiar sertanejo  representa um bom exemplo da relação entre humano e ambiente, onde mesmo com toda dureza do clima da região se consegue produzir. “As condições nas quais os agricultores sertanejos estão inseridos são muito adversas e para garantir sua manutenção e a reprodução de seu modo de vida, eles sempre estão envolvidos em lutas por maior autonomia de seu projeto de vida”, completa, em entrevista concedida à IHU On-Line.

O pesquisador ainda destaca que essas lutas compreendem a união de saberes locais, passado a gerações, e também certa modernização a partir do associativismo e lutas políticas. “Contando com sua sabedoria, os  agricultores familiares coordenam suas atividades do sítio com o intuito de, ao menos em parte, aproveitar o máximo possível os recursos. Isto significa que as distintas produções do sitio (extrativismo, lavouras e a pecuária) podem ser insumo para uma outra, bem como podem ser comercializadas e consumidas pela família”, explica.

Para Klenio, essas lutas poderiam ser menos duras se contassem com o apoio do Estado que, ao contrário, investe nas lógicas das grandes propriedades. “O Estado brasileiro sempre apoiou e financiou o latifúndio rural, afirmo isso tendo em vista a história de ocupação e desenvolvimento econômico do sertão nordestino”, observa. “Na região tal como em outras partes do Brasil, a agricultura familiar camponesa de forma recorrente tem suas capacidades bloqueadas e isto produz um quadro social e econômico de pobreza rural generalizada”, acrescenta.

Mas, para ele, a própria resistência da agricultura familiar revela que realmente esse pode ser um caminho. “O campesinato, ainda que vivendo em condições de subordinação, constitui um ator social que permanece produzindo de modo autônomo, renovando a atividade laboral por meio do constante aprendizado e da criatividade, bem como reproduzindo e projetando seu projeto de vida e trabalho familiar no tempo e no espaço”.

Klenio Veiga da Costa possui graduação em Comunicação Social pela Faculdade de Filosofia de Campos, graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro e graduação em Sociologia pela Universidade Norte do Paraná. Ainda é mestre em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Atualmente é sociólogo do Centro Alternativo de Formação Popular Rosa Fortini.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é o perfil dos agricultores e da região agrícola que você pesquisou para a elaboração da sua tese de doutorado, intitulada “Permanência e transformação na agricultura familiar: um estudo de caso sobre a resistência dos agricultores familiares no submédio São Francisco” e orientada pelas professoras Drª Eliane Maria Monteiro da Fonte e Drª Maria de Nazareth Baudel Wanderley no PPGS/UFPE?

Klenio Costa – Petrolina-PE, juntamente com Juazeiro-BA são cidades polo do Vale do São Francisco, região central do semiárido brasileiro, e tiveram grande impulso em seu desenvolvimento socioeconômico a partir da atuação de investimentos estatais com obras de infraestrutura para geração de energia elétrica e a promoção das politicas de modernização e industrialização da agricultura, especificamente, por meio de áreas irrigadas.

As áreas nas quais se desenvolve a agricultura de sequeiro [técnica agrícola para cultivar terrenos onde a pluviosidade é diminuta], são aquelas paisagens típicas do semiárido brasileiro, ou seja, marcadas pela predominância do bioma Caatinga. A precipitação pluviométrica é baixa, no máximo 700 mm por ano, e o regime de chuvas é irregular, concentrado em um único período do ano. Além disso, as temperaturas são elevadas, a umidade relativa do ar e baixa (50%), a evaporação anual é alta, o solos são rasos e de baixa fertilidade.

Em tais condições e sem a adoção de medidas de “combate à seca” e ou adoção das tecnologias de “convivência com o semiárido”, a atividade agropecuária acontece em total dependência das chuvas anuais (importante para prover umidade do solo e a dessedentação animal) e é limitada pelo acesso a terras para pastejo do rebanho. Portanto, na ausência de uma real forma de resistência aos longos períodos de estiagem, a atividade agropecuária e os agricultores, sobretudo, os familiares, não possuem condições de se manter sem recorrer aos auxílios emergenciais  ou à caridade.

O Sitio Carretão

A tese “Permanência e transformação na agricultura familiar: um estudo de caso sobre a resistência dos agricultores familiares no submédio São Francisco” teve como protagonistas agricultores familiares que vivem e trabalham no Sitio Carretão em Petrolina-PE. A localidade, distante 98 km do centro de Petrolina, está encravada em uma área distante das margens do São Francisco, assim sendo a paisagem sua paisagem é marcada pela preponderância da Caatinga e a escassez d’água.

Sitio Carretão é uma localidade cujas casas em sua maioria estão dispersas ao longo de uma estrada rural que liga Petrolina e a Dormentes. Na área que compreende o Carretão encontram-se uma escola municipal desativada, a sede da Associação dos Pequenos Produtores Rurais de Carretão, o campo de futebol, um bar e um mercadinho. Deste aglomerado de prédios, seguindo a estrada a 1,5 km está a Igreja Católica. Mais à frente, a 2,5 km e 3 km estão respectivamente o Templo da Congregação Cristã e a casa de farinha comunitária.

Residentes de uma área típica do sequeiro, as pessoas que vivem no  Carretão são herdeiros de uma longa tradição produtiva cuja base é o consórcio de diversas formas de exploração da natureza e a família como a principal fonte de trabalho no campo. Explorando áreas que variam de 40 a 90 ha prevalece na comunidade a criação extensiva de gado, ovinos e caprinos (estes dois últimos eram a maioria). A agricultura também é realizada sendo que a produção era voltada para as lavouras de provimento: milho, feijão e a mandioca. O extrativismo vegetal também é uma prática regular dos agricultores do Carretão, em especial, a coleta do umbu.

No momento em que foi realizado a pesquisa de campo, os agricultores do Carretão vivenciavam uma estiagem prolongada e os efeitos disto na produção agropecuária foi a desativação da casa de farinha, a quebra da produção agrícola e a necessidade de redução do rebanho de gado bovino. Na comunidade, a estiagem de 2010-2013 fez com que a saída de pessoas da comunidade para procurar trabalho fora da comunidade fosse maior. Sendo que o principal destino desta migração eram as áreas irrigadas  em  Petrolina e Juazeiro.

IHU On-Line – Por quais transformações a agricultura do sertão do São Francisco tem passado ao longo dos anos?

Klenio Costa – É importante entender que a colonização e ocupação do sertão no nordeste brasileiro, que se inicia a partir do século XVII, emerge a partir da pecuária e são as condições climáticas que vão condicionar a organização espacial desta ocupação. As estiagens prolongadas e a escassez de água (superficial) determinaram que expansão humana o interior acompanhasse o curso dos rios perenes e os sopés das serras húmidas. Assim, a criação de gado bovino constituiu a grande solução para a ocupação econômica e humana do Sertão. Pois, além de povoar as áreas que permaneceram desocupadas a produção pecuária supria a demanda por animais de força e alimento na zona litorânea – espaço privilegiado para o desenvolvimento da plantation açucareira.

Enquanto medida política e econômica, o processo de ocupação do sertão  privilegiou formação de grandes propriedades fundiárias a partir do  regime de sesmarias. Sendo que a produção pecuária destes currais só foi viável a partir do trabalho de vaqueiros, prepostos nos quais os senhores das terras confiavam os cuidados de sua propriedade e rebanho.

A organização produtiva das fazendas de pecuária, ainda que diferentes configurações fossem possíveis, sendo o mais destacado o consorcio com o algodão, estava fundamentada no trinômio pecuária extensiva, agricultura comercial e agricultura de subsistência. De modo resumido, atividades como a pecuária e a cotonicultura consolidavam a fonte de renda do proprietário da terra, e, por outro lado, as lavouras de subsistência possibilitavam que a mão de obra mobilizada no criatório e nas lavouras comerciais tivessem um espaço de terra para viabilizar de forma autônoma seu sustento. Sendo que o Sertão, em sua trajetória como empreendimento econômico, só prosperou porque sempre esteve presente uma massa pessoas que era essencial como um insumo da produção.

Rupturas num mundo rural e a chegadas das hidroelétricas

Até os anos 1950, o trinômio sertanejo se reproduziu sem conhecer nenhuma ruptura significativa, apesar de ter enfrentado crises circunstanciais. Mas com o processo de modernização agrícola e a política desenvolvimentista, a secular organização produtiva que moldava as feições do mundo rural no Sertão do São Francisco começou a sofrer rupturas. O ponto fundamental destas mudanças é marcado com a  intervenção do Governo Federal na região com o objetivo da implantação dos grandes projetos de geração de energia elétrica e, de modo secundário, viabilizar a modernização da agricultura.

A construção dos complexos hidroelétricos de Itaparica  e  Sobradinho  exerceram um papel determinante na alteração do regime de fluxo do Rio São Francisco. A regularização da vazão e o barramento de uma grande massa de água tornou possível que nas grandes várzeas do rio São Francisco fosse implantado um moderno aparato de irrigação agrícola. Surgem os Perímetros Públicos Irrigados, localmente chamados de projetos.

Até aqui o mundo rural no Vale do São Francisco, no que concerne às formas de produção agropecuárias, poderia ser compreendido a partir de duas grandes zonas socioambientais, “a beira do rio” e o “sequeiro”. No entanto, os canais e as tecnologias de irrigação reestruturam o espaço rural sertanejo e criaram aproximadamente 90 mil ha de áreas irrigadas (dados de 2014). Estes verdejantes oásis em meio a Caatinga abrigam produtores irrigantes em diferentes escalas, cuja produção é exclusivamente orientada por uma visão empresarial e com vistas ao abastecimento, hoje, de frutas frescas para o mercado internacional e nacional.

A partir da tese, considero também como mais um ponto de inflexão na trajetória da agricultura sertaneja no vale do São Francisco a emergência, desde os anos 1990, de políticas públicas e ações coletivas que colocam em evidencia a agricultura de sequeiro. Com os processos de redemocratização e a maior sensibilidade da sociedade com questões relativas as desigualdades sociais no campo emergiu um ambiente político favorável ao reconhecimento e valorização da agricultura familiar  sertaneja, com a disseminação e experimentação de perspectivas alternativas para o desenvolvimento rural, sobretudo, com adoção de medidas que miram a convivência com semiaridez.

IHU On-Line – Na sua dissertação de mestrado, o senhor investigou as estratégias empregadas pelos camponeses do Sertão para viabilizar a sua existência. Que estratégias eles adotaram e como eles têm resistido ou se adaptado às transformações agrícolas e, de que modo, eles se reinventaram apesar da modernização?

Klenio Costa – Sobre as estratégias empregadas pelos camponeses é pertinente destacar que a produção agropecuária é fundamental para que estes agricultores familiares produzam e reproduzam seu modo de vida no sertão. Apesar da produção agropecuária permanecer sob as mesmas bases (binômio agricultura e pecuária) as atividades produtivas em si passam por constantes mudanças e aperfeiçoamentos.

No que toca ao criatório é significativa a passagem do boi para cabras, bodes e ovelhas. Para os agricultores familiares cuja única forma de produção de animais é a ultra extensiva, as fatores como a pouca disponibilidade de terra, consequentemente, de pastagem natural e capins; a pouca disponibilidade de água; e o alto risco de colapso do rebanho em momentos de crise climática tornam a bovinocultura de altíssimo risco. Assim, a substituição de animais de grande porte pelos pequenos representou ganhos substanciais da produção, minimizando os riscos de insucesso da principal fonte de ingresso de dinheiro para os agricultores familiares.

Explico, a criação de ovinos e caprinos é destaque no semiárido pela excepcional capacidade de adaptação destes animais às condições da região. Os agricultores chamam a atenção para capacidade destes rebanhos de tolerante às altas temperaturas, à pouca disponibilidade de água, bem como o baixo consumo de alimentos e de possuir uma boa capacidade de engorda. Em relação ao gado bovino, a alimentação e a quantidade de água necessárias para a manutenção de uma cabeça de gado são suficientes para que o produtor mantenha dez cabeças de ovinos e caprinos.

Além das vantagens em campo, é pertinente destacar que em todo o  nordeste a carne de “bode” possui um apelo comercial alto e o mercado para esse produto, em 2014, estava franca em expansão na região do Sertão do São Francisco.

Organização social

Outra elemento fundamental no processo de transformação e permanência pelo qual passa a agricultura familiar no sertão é a atualização da organização social. A constituição da Associação dos Pequenos Produtores Rurais de Carretão chama a atenção para esse processo.

Segundo os agricultores, o que os motivou a fundar uma associação eram as dificuldades que eles tinham em acessar recursos para a realização de obras em infraestrutura, projetos produtivos e crédito. Acompanhando o  Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural foi percebido que ações individuais surtiam efeitos limitados na defesa de seus interesses e que o associativismo consistia em uma estrutura de oportunidade que possibilitava legitimação, visibilidade e, consequentemente, maior acesso as politicas para a agricultura familiar. Com muito orgulho o senhor  Francisco (Chico Carretão) contou para a pesquisa que o primeiro projeto feito por eles, no ano de 2002, foi a construção de banheiros nas residências dos moradores do sitio e seu entorno. A partir do associativismo os agricultores forneceram doce e polpa de umbu, carne de bode, galinha e ovos para o Programa de Aquisição de Alimentos – PAA, do Ministério do Desenvolvimento Social.

As atualização da organização social tal como é o trabalho da Associação estimulou uma produção agropecuária local que extrapola a simples satisfação da subsistência de cada família ou está amarrada a exploração de atravessadores. Atividades como a comercialização direta para a Conab, ou seja, a formulação e execução de projetos produtivos e de comercialização em conjunto revelou ser um elemento poderoso para a reiteração da agregação social no âmbito local e constitui também um passo significativo na obtenção de renda.

IHU On-Line – Como você caracteriza o “modo de vida camponês” desses agricultores e como esse modo de vida se manifesta na organização do trabalho, na constituição da família e dos valores desses trabalhadores?

Klenio Costa – A noção de campesinato empregada na elaboração do estudo seguiu aquela adotada pelos autores participantes da Coleção História Social do Campesinato no Brasil (Unesp, 2016). De modo sintético, ao tratar do campesinato fala-se de “poli produtores, integrados ao jogo de forças sociais do mundo contemporâneo”. Sendo que essa participação o mercado está organizado “conforme as condição de existência desses trabalhadores e de seu patrimônio material, produtivo e sociocultural, variável segundo sua capacidade produtiva (composição e tamanho da família, ciclo de vida do grupo doméstico)”.

Nestes termos, ao qualificar uma das formas de expressão da agricultura familiar do semiárido brasileiro como camponesa, toma-se como referência empírica os homens e mulheres que constituem a massa de trabalhadores do campo, que não foram totalmente expropriados dos seus meios de produção. Ou seja, são aqueles trabalhadores agrícolas que mantiveram, apesar da subordinação, a posse de uma parcela de terra e o relativo controle sobre o trabalho familiar. São os agricultores que, apesar das transformações suscitadas pela ampliação das relações de mercado, permanecem ocupando as terras menos férteis, sem acesso a fontes d’água ou infraestrutura hidráulica, em geral, as áreas deixadas de lado pela exploração agropecuária comercial.

As condições nas quais os agricultores sertanejos estão inseridos são muito adversas e para garantir sua manutenção e a reprodução de seu modo de vida, eles sempre estão envolvidos em lutas por maior autonomia de seu projeto de vida, por sua sobrevivência, por algum protagonismo social. No caso estudado essa peleja materializa-se em um processo contínuo de construção, aperfeiçoamento, ampliação da base de recursos que tornam possível realizar a agricultura e a pecuária.

Por exemplo, o sistema de produção agrícola é desenhado de maneira que em alguma medida o extrativismo, a agricultura, a criação, as atividades de quintal estão articuladas entre si. Contando com sua sabedoria, os  agricultores familiares coordenam suas atividades do sítio com o intuito de, ao menos em parte, aproveitar o máximo possível os recursos. Isto significa que as distintas produções do sitio (extrativismo, lavouras e a pecuária) pode ser insumo para uma outra (exemplo: a palhada serve de forragem para os animais), bem como podem ser comercializados e consumidos pela família.

IHU On-Line – A partir da sua pesquisa, qual diria que é o papel do campesinato na contemporaneidade?

Klenio Costa – Na chave conceitual empregada na tese, a noção campesinato é utilizada como um meio para distinguir aqueles agricultores sertanejos nas áreas de sequeiro das diversas expressões de agricultura familiar, sobretudo, em relação àqueles agricultores que produzem segundo a lógica empresarial e são os considerados aptos aos investimentos das politicas públicas. Neste sentido, os camponeses são os atores sociais que continuam a representar as contradições no campo.

Por exemplo, no Vale do São Francisco a permanência dos agricultores do Carretão desnuda o fato de que a produção pelo Estado de milhares de hectares irrigados na região não serviu como alternativa para ampliar a oferta regional de alimentos e sanar questões sociais inerentes as frequentes crises climáticas que fulminam as lavouras de subsistência. As áreas irrigadas foram destinadas a agricultura empresarial, desempenhada majoritariamente por pessoas do sudeste do Brasil e do exterior, e que hoje produz frutas frescas segunda os padrões estabelecidos pelos mercados consumidores europeu e norte-americano.

Tendo isto em vista, é pertinente destacar que o campesinato, ainda que vivendo em condições de subordinação, constitui um ator social que permanece produzindo de modo autônomo, renovando a atividade laboral por meio do constante aprendizado e da criatividade, bem como reproduzindo e projetando seu projeto de vida e trabalho familiar no tempo e no espaço.

IHU On-Line – A partir da sua experiência no sertão, ainda faz sentido discutir a reforma agrária no Brasil?

Klenio Costa – A discussão sobre reforma agrária é extremamente pertinente, pois ainda hoje pessoas morrem ou temem pela sua vida por lutar pelo direito de usar um pedaço de terra para produzir e viver.

Para além disto, pensando a partir da experiência com os agricultores camponeses no Sertão do São Francisco é pertinente salientar que as condições que constrangem um desenvolvimento da unidade familiar com maior autonomia é a falta de terra para produzir sem gerar prejuízos econômicos ou ambientais. Além disto, as atuais dimensões das propriedades não comportam que novas explorações agropecuárias e extrativistas aconteçam, portanto os jovens, por falta de perspectiva, abandonam a atividade agropecuária nas terras da família e, na maior parte das vezes, busca o trabalho rural assalariado nas áreas irrigadas.

Em relação ao ciclo de existência da família camponesa, pensando aqui nas diferentes capacidades de trabalho dos membros da família e suas idades, a saída compulsória dos jovens desfalca o grupo familiar. Pois com a saída desta força de trabalho a produção familiar perde a capacidade de gerar excedente, sobrecarrega os trabalhadores que permaneceram e ou ampliam os gastos monetários com a contratação de mão de obra externa o que reduz significativamente a capacidade de acumulação.

Compreendo que mudanças às mudanças proporcionadas por politicas de convivência com a semiaridez melhoram a qualidade de vida dos agricultores, mas ainda sim a questão fundiária persiste como fato limitador do desenvolvimento e da autonomia dos camponeses.

Quanto a forma que a discussão sobre a Reforma Agrária deve assumir, é essencial que o envolvimento de toda sociedade brasileira. Acredito que uma repactuação entre a sociedade e o Estado deve ser estabelecida de modo que o processo de reordenamento fundiário abrigue uma multidão de pessoas que vivem no campo em condições de pobreza por não ter terra para trabalhar e viver.

IHU On-Line – Hoje, o Estado brasileiro apoia e financia o agronegócio. Mas, que apoio tem sido dado à agricultura familiar?

Klenio Costa – O Estado brasileiro sempre apoiou e financiou o latifúndio rural, afirmo isso tendo em vista a história de ocupação e desenvolvimento econômico do sertão nordestino. Na região tal como em outras partes do  Brasil, a agricultura familiar camponesa de forma recorrente tem suas capacidades bloqueadas e isto produz um quadro social e econômico de pobreza rural generalizada.

Um bom material para pesar sobre essa questão foi a ação do Estado para estimular a implantação, nos anos 1970, de um novo perfil agropecuário no  Sertão do São Francisco. A criação dos projetos de irrigação foi decisiva para transformar esta parte do sertão nordestino e uma região com destaque mundial na produção agrícola. O Estado investiu e segue investindo volutuosos recursos para instalar, manter e renovar um grande aparato hidráulico que tornou capaz de sustentar a produção de frutas desde as tropicais até aquelas de clima temperado.

As ações de modernização que garantiram água e terra para produzir produtos “nobres” não foi dirigida para a totalidade dos atores sociais que historicamente constituam a base do mundo rural local. Diferentes estudos sobre as mudanças desencadeadas pela modernização da agricultura na região do São Francisco (como os trabalhos da Drª Josefa Salete Barbosa Cavalcanti) destacam que dos milhares de agricultores camponeses compulsoriamente desmobilizados de suas terras poucos foram os admitidos como colonos irrigantes, obtendo assim crédito, assistência técnica e acesso à água e à terra para retomarem a atividade produtiva. Em seu lugar outros agricultores familiares, vindo de fora da região, assumem os lotes nas áreas irrigadas e prosperam como agricultores integrados ao mercado.

modernização das atividades agropecuárias no sertão do São Francisco revela que faz parte de nossa politica agrícola uma ideologia na qual as agriculturas camponesas não devem e não são capazes de assumir o protagonismo do desenvolvimento rural.

IHU On-Line – A pandemia escancarou a crise climática e a necessidade de a humanidade repensar sua relação com o planeta. Como a agricultura familiar pode contribuir nesse sentido?

Klenio Costa – Sobre as contribuições da agricultura familiar para que a sociedade mais ampla repense sua relação com planeta, é pertinente destacar o surgimento da Articulação do Semiárido – ASA e o “Programa de Formação e Mobilização para a Convivência com o Semiárido: Um Milhão de Cisternas Rurais” – P1MC.

ASA é uma rede de organizações da sociedade civil (sindicatos rurais, associações de agricultores e agricultoras, cooperativas, ONG, etc.) que surge nos anos 1990 como modelo alternativo de desenvolvimento rural  para o semiárido, propondo para isso a noção de convivência com o semiárido.

Os atores envolvidos na constituição dessa associação partem da constatação de que efeitos das medidas tomadas para o combate à seca (na qual a açudagem é o principal expoente) não resultavam na promoção de transformações sociais e econômicas capazes de minimizar a pobreza entre a população rural do Semiárido. Assim, a ASA coloca em debate a proposta de que os rumos do desenvolvimento da região deveriam seguir por um caminho em que preza por mudanças nas próprias atividades tradicionais, voltando-se para aquelas práticas que são marcadamente camponesas e ou ambientalmente adequados ao contexto local.

Programa de Formação e Mobilização para a Convivência com o Semiárido: Um Milhão de Cisternas Rurais (P1MC) criado em 2001 e encampado pelo z em 2003, é uma medida revolucionária para os agricultores camponeses no semiárido, pois ele disponibiliza água de qualidade (acumulada no período de chuvas) para o consumo da família. Ademais, o P1MC é um caminho robusto para por fim ao fenômeno politico que é a seca e a indústria que está por trás dela.

IHU On-Line – Em recente entrevista à IHU On-Line, o sociólogo José de Souza Martins fez o seguinte diagnóstico acerca da agricultura familiar e dos valores sociais brasileiros: “A agricultura familiar é dotada de rico capital social, no mais amplo sentido da palavra, um germe fecundo de transformação social com base num legado antigo: tecnologia tradicional, cultura aberta à absorção de inovações tecnológicas apropriadas a um mais racional uso do solo, do trabalho e dos recursos naturais, cultura comunitária e familiar preservadora da equidade e do bem-estar no que é a célula-mãe dos nossos mais importantes valores sociais. Como o da solidariedade e o da religião de família. Na verdade, o único Brasil que deu certo após o fim da escravidão”. Como o senhor observa essa esse papel da agricultura familiar ao longo da História do Brasil?

Klenio Costa – Concordo com afirmação do professor José de Souza Martins quando ele destaca a potência transformadora da agricultura familiar como categorial social. Entretanto, fiquei pensativo sobre o final de sua afirmação, “único Brasil que deu certo após o fim da escravidão”. Por entender que que no mundo rural brasileiro coexistem múltiplas formas de expressão da agricultura familiar, afinal existem muitas formas de acesso à terra, uso dos recursos naturais, bem como diferentes formas de relação entre estes atores e sociedade ampla, etc., não seria categórico em afirmar que a agricultura familiar deu certo.

Reconheço que existem arranjos de agricultura familiar que logram sucesso. Entendendo esse sucesso como a construção de um projeto autônomo de vida e trabalho no campo. Porém, entendo também que a prevalência da grande propriedade determina que uma grande massa de agricultores seja mantida sob o julgo de “coronéis”. A exploração política e econômica imposta pelos senhores das terras, realizada a partir do  clientelismo e da violência, leva estes agricultores familiares a sobreviver em condições limites que, em geral, inviabiliza a manutenção de projetos familiares no campo.

Para os pequenos produtores sertanejos, a criação de ovelhas e cabras é uma alternativa a criação de gado | Foto: Klenio Costa/ acervo de pesquisa

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