Associação dos Advogados de Trabalhadores Rurais, na CPT/BA
Dois territórios quilombolas cortados ao meio por uma ferrovia. Mais de 200 famílias que nunca foram consultadas sobre a implementação da obra, ou informadas sobre os impactos ambientais, sociais e culturais do empreendimento. Esta é a realidade vivida pelas comunidades quilombolas de Bebedouro e Araçá-Volta, em Bom Jesus da Lapa – um dos 32 municípios baianos que estão na rota que pretende ligar o futuro Porto Sul, em Ilhéus (BA), à cidade de Figueirópolis (TO), através da Ferrovia de Integração Oeste Leste (Fiol).
“Eu estava trabalhando e chegou um pessoal colocando uns piquetes na comunidade de Capão de Areia. Quando me aproximei me falaram que seriam colocados marcos de concreto, que era pra passar uma ferrovia … A gente nem sabia do que se tratava, ninguém sabia!”, afirma Domingos Batista, morador do território quilombola de Araçá-Volta.
Este cenário é denunciado pela campanha #FiolForaDosTrilhos, que tem como objetivo denunciar as irregularidades presentes na construção da FIOL no Médio São Francisco. Receba informações sobre os próximos passos da campanha e apoie a luta das comunidades quilombolas de Araçá/Cariaçá, Patos, Pedras, Retiro, Coxo, Bebedouro, Capão de Areia, Lagoa do Peixe, Nova Batalhinha e Rio das Rã na defesa de seus territórios.
VIOLAÇÕES – Essa história se inicia ainda em 2010, quando o IBAMA concedeu a Licença Prévia para o início da construção do trecho da Fiol dentro dos territórios das comunidades sem a adoção dos procedimentos adequados para a realização da consulta, cenário que viola a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que concede aos povos indígenas e comunidades tradicionais o direito de serem consultados, de forma livre e informada, antes de serem tomadas decisões que possam afetá-los.
“O licenciamento está cheio de vícios, não segue a legislação. As obras da FIOL entraram sem autorização, fazendo picadas em roças e nas nossas matas, tudo sem comunicação”, relata Lucas Marcolino, Presidente da associação do território de Araçá-Volta.
Em 2014, a Fundação Cultural Palmares e a A VALEC Engenharia, Construções e Ferrovias S/A, empresa pública responsável pela obra, assinaram um termo de compromisso estabelecendo prazos para cumprimento de atividades essenciais que deveriam ter sido apresentadas antes da concessão, como a elaboração participativa do Plano Básico Ambiental Quilombola (PBAQ). O acordo não foi cumprido, o que resultou na aplicação de uma multa de R$ R$ 912.500,00 e mesmo com a licença ambiental vencida entre os anos de 2015 a 2017 os trabalhos seguiram sem a apreciação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA).
Em dezembro de 2017, após a VALEC buscar autorização judicial para adentrar nos territórios e seguir com as obras, mesmo com licenciamento vencido, uma decisão da Justiça Federal determinou a paralisação das atividades no trecho do território do quilombo Araçá Volta, que fica na margem direita do rio São Francisco, cuja ponte para passagem da ferrovia já se encontra praticamente concluída. Nesta decisão, tomada em audiência judicial com a presença dos quilombolas, assistidos pela AATR, o magistrado determinou que somente com a efetiva consulta prévia às comunidades, a VALEC poderia dar seguimento às obras.
Em 2018, o IBAMA renovou a Licença de Instalação mesmo sem o cumprimento do que foi acordado no Termo de Compromisso assinado entre VALEC e Fundação Cultural Palmares (FCP). Em 02 julho de 2019, dezenas de caçambas e máquinas ingressaram nos territórios quilombolas sem autorização, levando as famílias a construírem um bloqueio na estrada. Denúncias foram encaminhadas para a FCP, que informou ao IBAMA que a VALEC não havia cumprido os termos previstos no acordo, e o órgão ambiental decidiu suspender a autorização de qualquer trabalho da ferrovia nos trechos quilombolas enquanto os termos da condicionante ambiental não fossem atendidos.
Em 30 de setembro de 2019, foi assegurado em nova audiência judicial na Justiça Federal que as comunidades têm o direito de indicar consultorias de sua confiança para elaboração do Plano Básico Ambiental Quilombola (PBAQ), tendo em vista as reiteradas violações de direitos e não cumprimento de acordos estabelecidos. A VALEC, porém, tem sinalizado que não vai cumprir a determinação judicial, tendo informado às lideranças das comunidades que vai contrataria a empresa para elaboração dos estudos técnicos de acordo com a sua conveniência. Enquanto isso, as obras nas proximidades dos territórios quilombolas já estão avançadas, mas as famílias seguem sem informações e sem reparação pelos prejuízos já causados.
Os territórios quilombolas afetados, em sua maioria, encontram-se em estágio avançado no processo de demarcação de titulação. Porém, desde o início das obras, em 2010, esses procedimentos ficaram paralisados no INCRA, o que gera ainda maior insegurança diante de investidas frequentes de grileiros de terras. Parte significativa destes territórios são terras públicas da União, que são os terrenos marginais do rio São Francisco, o que torna menos complexo o processo de demarcação e titulação.
E O VELHO CHICO? – “Rios, lagoas e fauna não tiveram a oportunidade de serem ouvidos, uma vez que as comunidades não tiveram voz”, diz Lucas, que também explica que mesmo com as evidentes violações da VALEC e descumprimento de acordos, a suspensão da licença para a construção da ferrovia por parte do IBAMA só ocorreu após muita pressão e mobilização das comunidades.
Com o aterramento de um braço do Rio São Francisco, o abastecimento de água foi prejudicado e em resposta às reações da comunidade, foi construído um poço artesiano que, por sua vez, não funciona por falta de energia. A falta de transparência e de diálogo com a comunidade produz um clima de incerteza em relação ao futuro. “Nossa preocupação é como se dará a passagem dos trilhos. Na saída da ponte temos o canal do riacho que abastece mais de 12 lagoas às margens do Rio São Francisco”, afirma Marcolino.
Moradores/as relatam que a construção da ponte sobre o Rio São Francisco afetou a agricultura e a pesca. Como resultado, muitos pescadores/as abandonaram as atividades, perdendo assim sua principal forma de sustento. Os/as quilombolas também sinalizam que o processo de reflorestamento iniciado pela FIOL, após o desmatamento, foi abandonado.
PROGRESSO PARA QUEM? – Os aproximados 1.527 quilômetros de ferrovia, com um investimento previsto de R$ 8,9 bilhões, são destinados ao escoamento de grãos e minérios, fortalecendo grandes empresas do agronegócio da fronteira agrícola do MATOPIBA, que historicamente tem se apropriado de territórios de comunidades tradicionais do cerrado por meio da grilagem de terras e do uso de empresas de segurança particular em práticas de violência física, moral e simbólica.
Nos últimos 20 anos a Comissão Pastoral da Terra registrou 2.338 conflitos por terra no Matopiba. Outro número que chama a atenção são os 670.653 hectares desmatados em áreas de preservação permanente, reserva legal e nascentes (Map Biomas 2019). A degradação do meio ambiente e a perda do acesso a terra têm sido fatores de aumento da pobreza das populações locais.
Apontado como um dos principais pontos de escoamento de commodities do MATOPIBA, o Porto Sul, destino da FIOL, iniciou em julho de 2020 sua construção pela Bahia Mineração (Bamin), empresa controlada pelo Eurasian Resources Group (ERG), do Cazaquistão. Importante destacar que a chegada da Bamim no sudoeste baiano também tem sido apontada como estopim para eclosão de conflitos em torno do acesso à terra, à água e a remoção de comunidades dos seus territórios.