“O povo é carvão para queimar”: o projeto genocida da “gestão” da pandemia no Brasil

A população vai acordar para a dimensão da tragédia? A população está ligada nos paredões do Big Brother, está nas ruas comemorando mais um campeonato do Flamengo. Com um governo que jamais promoveu uma campanha nacional de esclarecimento e, pelo contrário, sempre apostou na desinformação e no caos, é possível pensar que a população acorde? A pilha de cadáveres vai crescendo mas o Brasil é grande demais, são 212 milhões de habitantes, o que significam 250 mil mortos diante disso? As pessoas morrem porque foi a vontade de Deus, porque já iam morrer mesmo, porque todo mundo vai morrer um dia. Uma análise sobre a crise pandémica no Brasil e a forma como ela (não) tem sido combatida pelo governo federal. 

Sylvia Debossan Moretzsohn*, em 7 Margens

“A população precisa acordar para a dimensão da nossa tragédia”, disse o neurocientista Miguel Nicolelis em entrevista publicada pelo jornal O Globo em 26 de fevereiro. Professor catedrático na Universidade de Duke, nos EUA, ele esteve até recentemente à frente do Comitê Científico do Consórcio Nordeste para a Covid-19 e, como outros cientistas, vem há meses alertando para o risco de colapso no sistema de saúde do Brasil.

Diferentemente do que ocorreu no início da pandemia – e não saem da memória as imagens das valas abertas às pressas em Manaus, em maio do ano passado –, a situação é mais grave agora, porque o colapso pode ser simultâneo, como na metáfora do jogo de dominó em que uma peça vai sucessivamente derrubando as demais. Nicolelis aponta uma sequência de eventos – as eleições municipais em novembro de 2020, as festas de fim de ano, o carnaval, ainda que sem os tradicionais desfiles e bailes oficiais – como “efeitos sincronizadores” que provocaram o caos atual, diante da falta de coordenação para conter a pandemia. “Agora”, diz ele, “tudo está explodindo ao mesmo tempo”. Os hospitais em várias capitais já ultrapassaram o limite de atendimento, há filas de espera para uma vaga nas UTI (Unidades de Tratamento Intensivo).

Como foi possível chegar a esse ponto?

Foi porque, parafraseando o que dizia o antropólogo Darcy Ribeiro a respeito da crise da educação no Brasil, a atual tragédia sanitária não é uma crise, é um projeto. Uma reportagem do El País Brasil em 21 de janeiro mostrou exatamente isso, a partir de um estudo do Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário (Cepedisa) da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e da Conectas Direitos Humanos, que pode ser consultado aqui.

O estudo apresenta, em ordem cronológica, a série de normas federais relativas à pandemia, as ações de obstrução às iniciativas dos governos estaduais e municipais e o que classifica como “propaganda contra a saúde pública”, que inclui o discurso negacionista e debochado do Presidente da República, a insistência na defesa de medicação preventiva comprovadamente ineficaz e a disseminação de informações falsas a respeito da doença. É um levantamento que expõe “o embate entre a estratégia de propagação do vírus conduzida de forma sistemática pelo governo federal e as tentativas de resistência dos demais poderes, dos entes federativos, de instituições independentes e da sociedade”.

Exemplo disso foi o veto presidencial, no início de julho do ano passado, a dispositivos da lei que determina medidas de proteção para comunidades indígenas durante a pandemia, entre os quais “o acesso com urgência a seis serviços gratuitos e periódicos (água potável, materiais de higiene e limpeza, leitos hospitalares e de UTIs, ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea, materiais informativos sobre a covid-19, e internet nas aldeias); a obrigação da União de distribuir alimentos durante a pandemia, na forma de cestas básicas, sementes e ferramentas agrícolas; a extensão a quilombolas, pescadores artesanais e demais povos tradicionais das medidas previstas no plano emergencial”. O veto acabou derrubado pelo Congresso Nacional um mês e meio depois.

Usar a tragédia para destruir direitos

Foi também o Congresso que se empenhou em aprovar o auxílio emergencial de R$ 600 – correspondente a pouco mais da metade do salário mínimo e equivalente, ao câmbio atual, a cerca de 90 euros –, que Bolsonaro rejeitava mas acabou capitalizando, o que lhe permitiu manter a popularidade apesar do progressivo aumento do número de mortes. Atualmente, o governo está condicionando a renovação desse auxílio, agora reduzido a menos da metade do valor, à aprovação de uma Proposta de Emenda Constitucional que, se não for alterada, degradará ainda mais a saúde e a educação públicas, pois elimina a obrigação ao investimento mínimo estabelecido pela Constituição para esses dois setores. A tragédia sanitária é, assim, usada para aprofundar o programa de destruição de direitos iniciado já no governo Temer, que assumiu em seguida à derrubada de Dilma Rousseff, em 2016.

Ao mesmo tempo em que minimizava a gravidade da pandemia – “gripezinha”, no dizer do presidente –, o governo tentava ocultar os números de doentes e mortos por covid-19, retardando a divulgação dos dados para evitar que fossem noticiados no principal telejornal do país, e passava a anunciar o número de “recuperados”, para investir numa agenda positiva. A imprensa denunciou a manobra e seis dos principais jornais e sites de jornalismo formaram um consórcio para buscar os números da pandemia junto aos governos estaduais.

Desde o início, para evitar tomar medidas que prejudicassem a economia, Bolsonaro investiu firmemente na defesa da cloroquina, tornando-se ele próprio o principal garoto-propaganda do medicamento, que continua a defender, apesar de todos os estudos sérios demonstrarem não só sua ineficácia como o risco de efeitos colaterais graves.

O presidente demitiu sucessivamente dois ministros da Saúde, por contestarem essa orientação, e convocou o general Eduardo Pazuello – mais um entre os vários militares em postos-chave no governo – para assumir a pasta. Foi sob seu comando que, em janeiro deste ano, durante a tragédia de Manaus – onde uma variante do vírus provocou o recrudescimento do índice de infecções e a falta de oxigênio nos hospitais levou a inúmeras mortes por asfixia –, o ministério lançou o aplicativo TrateCOV, que permitiria acelerar o diagnóstico e indicar o tal “tratamento precoce”, e que invariavelmente receitava o “kit Covid” – uma combinação de remédios que incluía a cloroquina – mesmo para quem relatasse uma simples diarreia ou perda de apetite.

O aplicativo não durou nem uma semana e teve de ser retirado do ar, mas o “kit Covid” continua a ser adotado, tanto por médicos quanto por pessoas influenciadas por essa propaganda, convencidas de que estão se protegendo e de que, na dúvida, é melhor fazer alguma coisa do que nada. No dia 23 de fevereiro, oito dos principais jornais do país publicaram um informe publicitário de meia página de um grupo chamado “Médicos pela Vida”, que insistem no tal “tratamento precoce”, usando informações falsas para defender sua tese. É de se indagar por que esses jornais aceitaram abrir espaço para uma publicidade enganosa, se já publicaram tantas notícias em contrário.

Rejeição de todas as possibilidades

Mas a estratégia da aposta no “tratamento precoce” é clara: se para a doença há remédio, se esse remédio pode inclusive prevenir a doença, não há motivo para não se levar uma vida normal. O próprio presidente, ao promover e participar de aglomerações, frequentemente sem máscara, estimula esse comportamento. É preciso “enfrentar o vírus de peito aberto”, “feito homem, pô!”, o Brasil não pode ser “um país de maricas”: o tom é sempre o de um discurso afirmativo, que transmite autoconfiança, baseado na virilidade do macho que não teme o perigo. E depois, como a maioria dos mais jovens não manifesta sintomas, é fácil convencê-los de que não há risco.

Bolsonaro martelou a ideia de que “você não vai desenvolver a doença, então não tem problema”, e esse elogio do individualismo, essa ausência absoluta de preocupação com o outro – porque obviamente uma pessoa assintomática pode transmitir o vírus a quem não terá a mesma resistência – se traduz até hoje em praias, bares e hospitais lotados. Entre os mais pobres, que já vivem aglomerados em moradias exíguas e precárias e se expõem diariamente ao risco de contágio viajando enlatados nos transportes públicos, muitos, sobretudo os mais jovens, não veem motivos para abrir mão de se divertir, nos bailes e festas que costumavam frequentar antes da pandemia.

Então, no mundo todo, começa a surgir a famosa luz no fim do túnel, com a produção de vacinas eficazes em tempo recorde. Mesmo Trump, que no começo também desdenhava da gravidade da situação, sugeria tratamentos esdrúxulos e levantava suspeitas sobre o “vírus chinês”, mudou de atitude diante do desenvolvimento dos imunizantes. Bolsonaro, não. Rejeitou sistematicamente todas as possibilidades de acordo com laboratórios farmacêuticos e levantou suspeitas sobre os terríveis efeitos colaterais que as vacinas poderiam provocar: sabe lá o que estão enfiando aí no seu corpo? Já pensou se você vira jacaré? Nada como mexer com os medos arcaicos do povo ignorante. “Vacina, aqui, não!”, repetiam as pessoas, batendo no braço e olhando fixamente para a câmera, no vídeo que as redes bolsonaristas divulgaram, junto com outro que rejeitava o uso da máscara “em nome da liberdade”.

O Brasil conta com um sistema de saúde pública universal que, apesar de precarizado, é o que tem garantido o atendimento da população durante a pandemia, e tem tradição de vacinação em massa, com dois centros de excelência na produção de imunizantes, a Fiocruz (um órgão federal) e o Instituto Butantan (do estado de São Paulo).

De acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o país tem 162,8 milhões de habitantes com mais de 18 anos. A capacidade de vacinação do sistema, segundo o sanitarista Gonçalo Vecina Neto, ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), é de 60 milhões de pessoas por mês.

Não fosse a atuação deletéria do governo federal, o Brasil poderia ter assegurado antecipadamente um estoque de vacinas que permitisse iniciar a imunização da população já em fins do ano passado, e a compra de insumos possibilitaria ampliar rapidamente a produção local, hoje ainda restrita ao esforço do Instituto Butantan, que garantiu 10 dos 12 milhões de doses disponíveis até o momento. No período de um mês – desde o dia 17 de janeiro, quando começou a vacinação no país –, apenas 6,5 milhões de pessoas receberam a primeira dose. Em várias cidades, como o Rio de Janeiro, o calendário divulgado no fim do mês passado teve de ser interrompido, por falta de vacinas.

Acordar para a dimensão da tragédia?

No início da pandemia – que sempre minimizou como “uma pequena crise”, “uma fantasia” que não era “tudo isso que a grande mídia propala pelo mundo todo” –, Bolsonaro gravou um vídeo em que comparava a situação da covid-19 com a da gripe H1N1. Dizia que menos de 800 pessoas morreram por aquela doença no país no ano anterior e que “a previsão é não chegar a essa quantidade de óbitos no tocante ao coronavírus”.

Agora já são mais de 250 mil mortos. A média diária tem oscilado entre os mil e 1.300 e, a 25 de fevereiro, chegou ao recorde de 1.582.

O que fez Bolsonaro nesse dia? Em sua habitual “live” das quintas-feiras, citou “uma universidade alemã” – naturalmente, não disse qual – que teria produzido um estudo sobre os “efeitos colaterais” do uso de máscaras.

A população vai acordar para a dimensão da tragédia? A população está ligada nos paredões do Big Brother, está nas ruas comemorando mais um campeonato do Flamengo. Com um governo que jamais promoveu uma campanha nacional de esclarecimento e, pelo contrário, sempre apostou na desinformação e no caos, é possível pensar que a população acorde? A pilha de cadáveres vai crescendo mas o Brasil é grande demais, são 212 milhões de habitantes, o que significam 250 mil mortos diante disso? As pessoas morrem porque foi a vontade de Deus, porque já iam morrer mesmo, porque todo mundo vai morrer um dia.

Como afirmou Nicolelis em sua entrevista, “o Brasil é o maior laboratório a céu aberto para ver o que acontece com o vírus correndo solto”. Necessitaria decretar uma quarentena nacional urgentemente, por pelo menos três semanas, para tentar conter o caos. Governadores e prefeitos começaram a investir nessa medida, mas Bolsonaro os confrontou com a ameaça de que, nesse caso, eles teriam de se responsabilizar pelo pagamento do futuro auxílio emergencial. Continua a promover aglomerações e a jogar o povo contra a adoção do confinamento, em nome do direito de trabalhar.

Darcy Ribeiro dizia que a elite brasileira, descendente do senhor de engenho que enxergava o escravo como “carvão que se queima para a produção”, se comportava de acordo com essa herança. Via o povo como “carvão para queimar”.

Foi esta elite que apoiou para a presidência do país um deputado que exaltou um torturador ao votar pelo impeachment de Dilma e não se cansa de repetir que seu ofício é matar.

Não admira que, nesta pandemia, o carvão não pare de queimar.

*Sylvia Debossan Moretzsohn é professora aposentada da Universidade Federal Fluminense, investigadora visitante na Universidade do Minho. 

Ilustração: Duke

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Isabel Carmi Trajber.

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