Cheia no Acre: “Nem os antigos viram uma enchente como essa”, diz indígena

Isak Rui, do povo Huni Kui, relata casos de desabrigados e aponta falta de apoio oficial: “alimentação não chega”

Brasil de Fato

Os rios do Acre passam por uma cheia histórica, e que deixaram, desde a segunda quinzena de fevereiro, mais de 130 mil pessoas desabrigadas em 10 dos 22 municípios do estado, que está desde o dia 16 sob “estado de calamidade” decretado pelo governo local. As enchentes afetam gravemente indígenas e ribeirinhos, que vem perdendo toda a sua produção.

No total, 10 aldeias da etnia Huni Kui do baixo Rio Envira, e seis da parte alta do rio – na região central do Acre –, mais sete aldeias da etnia Shanenawa foram atingidas, contabilizando 487 famílias que perderam suas casas ou tiveram de abandoná-las para buscar abrigo.

Para além dos prejuízos nas moradias, os indígenas perderam suas plantações, o que deixa muitas famílias em situação de vulnerabilidade social.

A reportagem do Brasil de Fato conversou com Isak Rui, liderança da aldeia São Francisco, no município de Feijó. Rui pertence ao povo Huni Kui, o mais numeroso povo indígena do Acre, com aproximadamente 22 mil pessoas. Ele também integra o Conselho de Cultura e a Coordenação de Juventude Indígena dos Huni Kui. Confira seu relato:

Brasil de Fato: Como está a questão das aldeias e como estão os teus parentes?

Isak Rui: Essa enchente do Rio Envira , no município de Feijó, é a maior já registrada na história do município. Nem os mais antigos viram isso. Aldeia Novo Paraíso, Paroá, Xina Bena, Nova Aliança, Belo Monte, São Francisco e Pupunha, Nova Vida. Essas aldeias foram todas afetadas, principalmente nas produções de banana, macaxeira, milho, amendoim.

Todas essas plantações a água cobriu e perdeu tudo. Tem aldeias que foram afetadas pelas enchentes que atingiram as casas e desabrigaram mais de 50 famílias nas comunidades. As famílias já estão há quase 10 dias fora de suas casas. Muitas famílias perderam os imóveis que tinham e são pessoas de renda baixa, que sobrevivem da produção.

Tiveram que ir para outras localidades, para a casa de parentes. A aldeia Pariuaté está lotada de pessoas e crianças também que estão sofrendo com essa questão da alimentação, porque não está chegando a alimentação.

O poder público ainda não se manifestou em relação a levar alimentação. Eu cheguei a passar por lá, fiz algumas filmagens e cheguei a me deparar com situações de nos deixar muito tristes, em virtude de ver as famílias fora de suas casas, vendo as suas casas destruídas e não ter como fazer nada, porque é a abrangência da natureza.

Mas a gente tem que ficar atento a essa luta e abraçar essas causas. Hoje eu me deparei com uma situação positiva, por parte do Depasa (Departamento Estadual de Pavimentação e Saneamento), que estava levando água para as comunidades e isso fortaleceu um pouco, porque a água que eles estão bebendo é água da chuva e não está chegando uma água de qualidade para eles.

Imagina você passar 10 dias sem beber uma água limpa. Isso pode gerar doenças, diarreia, para as próprias crianças. A situação hoje é essa. É assim que as famílias estão vivendo. Tem família em batelão (barco de madeira) com as coisas que conseguiram salvar.

Outras não tiveram como salvar as coisas, porque não tinham barco e não tinham casa em outro lugar, tem família que acabou perdendo tudo. Mas hoje, o rio já baixou mais um pouco para tranquilizar as pessoas e se Deus quiser amanhã vai baixar um pouco mais.

Tu tratastes a questão das cheias como um fenômeno da natureza. Como a tua etnia vê o que está acontecendo?

Isso nunca tinha acontecido e agora está acontecendo. Não só no Acre, mas no mundo inteiro essa questão das mudanças climáticas. Isso acaba ocorrendo devido à destruição da natureza. O povo indígena vê que se a gente começa a destruir a natureza, um dia, futuramente, ela vai cobrar.

O indígena sempre preservou a natureza, sempre buscou seus conhecimentos. Essas mudanças climáticas acabam trazendo novas doenças e novas coisas que vêm afetando os rios. O rio vai ficando cada vez mais alto. Ou o rio secando mais depressa. Igarapés que nunca secavam, secando.

Fica dessa maneira pela destruição dos próprios homens. Os mais antigos veem nesse sentido.

Tudo isso que está acontecendo hoje é fruto do que foi feito muito tempo atrás. Quem acaba pagando são as futuras gerações.

Se a gente não tiver o cuidado, não tiver a ideologia de que é preciso cuidar e preservar a natureza e que isso vai servir para futuras gerações, a gente vai acabar se perdendo no mundo.

Como está sendo para vocês ter que deixar o território em decorrência das enchentes?

Está sendo de muita tristeza para as famílias. A situação de ver aquilo que se constrói durante a sua vida sendo destruído em poucos segundos, em poucos minutos, vai criando traumas.

A gente busca alternativas para saber como melhorar, mas nunca sabe quais serão essas alternativas. A gente nunca sabe como vai ser a cada ano.

Isso porque as famílias se perguntam: – Como será que vai ser o ano que vem? Será que vai ser a mesma coisa?

Esse é o medo das famílias. Então, muitos vão querer mudar para uma outra localidade, mas outros não, porque ali foi onde o pai derramou sangue, foi ali onde o pai o trouxe para essa realidade.

Então, isso vem trazendo um trauma dessa força que vem da natureza. A gente nunca vai saber se vai acontecer a mesma coisa ano que vem.

Como foi no dia em que a água invadiu a tua aldeia?

A minha aldeia fica em terra firme, ela foi pouco atingida pelas cheias, mas o meu sogro mora em uma aldeia que foi mais atingida. Eu fui lá e me deparei com o desespero dele, porque enchia, mas nunca chegava na casa dele. Chegava em um determinado ponto e voltava e quando ele viu as coisas, ele ficou muito assustado, porque ele não sabia como fazer, porque não estava acontecendo só na casa dele.

Onde ele ia deixar as coisas dele? E muitos não tinham outra casa, não tinham barco grande para poder levar as suas coisas. Então, eles tentaram, tentaram até o ponto em que não conseguiram salvar mais nada.

Além disso, tem os animais que não são adaptados à água e vão morrendo. Tem família que está cuidando dos seus cachorros, dos seus animais em barcos para que eles possam sobreviver. Isso foi uma dor muito forte para eles também.

A construção de toda uma vida acabou se perdendo e não sabemos como vai ser essa resistência. Como vai ser para poder se levantar, porque como eu disse antes: muitas famílias não têm um ganho. O que elas têm são as produções e as produções se perderam.

Então, tem que plantar tudo de novo. Tem que buscar novas alternativas para poder replantar. O primeiro cacho que der não vai ser para vender, vai ser para comer.

Esse ano vai ser mais um ano de luta mesmo. Vai acabar tendo uma crise muito grande, porque essa enchente não afetou só as populações indígenas. Ela afetou os não indígenas que moram na beira do rio.

O que você espera que as autoridades façam?

A gente pede muito ao grande espírito que ilumine a cada família, a cada ser humano que está passando por essa dificuldade. Estamos enfrentando uma crise de pandemia de Covid-19, e no próprio município está um surto de dengue e agora veio a enchente.

O povo indígena está passando por uma prova difícil e logo após a vazante vai ter uma outra situação diferente, que é o retorno para as suas casas e tentar erguer aquilo que ainda tem.

Eu e alguns amigos estamos fazendo um levantamento de uma arrecadação para ajudar as famílias e comprar 90 cestas básicas.

Há famílias que dependem da produção para poder comprar alguma coisa para as crianças se alimentarem. Então, estamos nessa divulgação da arrecadação para chegar ao maior número de famílias possível. Aproveito também o espaço dessa entrevista para pedir aos irmãos que sentirem no coração a vontade de ajudar, a se juntar nessa corrente do bem para que a gente consiga atender ao maior número de famílias.

Porque não é só o povo Huni Kui, tem também os Shanenawa, Ashaninka e Madja. Até agora não vi movimentação do poder público, nem de prefeito, nem de vereadores, nem de governador, nem do presidente em relação à questão dos indígenas, nem dos ribeirinhos. O que está chegando nas comunidades são algumas ações de solidariedade, que algumas entidades estão fazendo.

Hoje, dentro da minha comunidade, tem um centro chamado Isaka Inu Bake, que é um centro de espiritualidade, organizado com a medicina sagrada, com nixipae, sanaga, rapé e kambo. Então, sempre recebemos pessoas que vêm na comunidade e que estão nos ajudando com essas doações.

O que dizem o Governo do Acre e o Governo Federal:

A Assessoria de Imprensa do Governo do Acre informou ao Brasil de Fato, por telefone, que a assistência às populações citadas nesta reportagem é de responsabilidade do governo federal.

Procurada, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), vinculada ao Ministério da Saúde, enviou a seguinte nota:

O Ministério da Saúde, por meio da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), informa que as equipes multidisciplinares de saúde indígena estão intensificando os atendimentos médicos, com foco na busca ativa de casos de doenças relacionadas ao alagamento como casos de diarréia, vômito, dengue, malária e doenças respiratórias.

Além disso, os profissionais tem mantido a rotina de vacinação dos indígenas contra a Covid-19. As equipes da SESAI vem realizando a entrega de alimentos doados pela população, profissionais do Dsei e em parceria com outros órgãos parceiros, como a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), o Conselho Distrital de Saúde Indígena, a comissão pro-indio, Marinha do Brasil e Expedicionários da Saúde, apoiando as populações indígenas atingidas pelas enchentes, referente a distribuição de água potável o Dsei tem realizado o fornecimento e distribuição.

Os indígenas que, por algum motivo, estavam no município de Feijó, Taraucá e Igarapé preto que fica no município de Rodrigues Alves e que por motivos particulares e não puderam retornar a suas aldeias também estão sendo atendidos pelas equipes da SESAI. Todas as equipes de Saúde Indígena continuarão empenhadas em colaborar para minimizar os impactos das enchentes nos povos indígenas.


Edição: Rogério Jordão

Indígenas perderam toda a produção de alimentos nas enchentes: “tem que plantar tudo de novo” – Isak Rui, do povo Huni Kui

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