Especialistas apontam que empecilhos a índios são comuns em comunidades distantes de aldeias e que problema precisa ser superado
Por Bianca Bertoli, em NSC
Quando Gisele Vaincã Pott, 33, deu à luz em Blumenau, ela sabia que o nome da filha seria uma homenagem à avó da pequena, já falecida. O desejo, porém, esbarrou na negativa do cartório da cidade. Gisele, que é indígena, queria que a recém-nascida fosse registrada como Larissa Tandô Pott. Mesmo com o relato da origem, o segundo nome não entrou na certidão da menina.
— Assinei o nome que queria dar e quando a moça (atendente) viu o Tandô disse que não poderia colocar. Perguntei o porquê e ela disse: “porque não é um nome”. Contestei: “é um nome, só que de origem indígena” — lembra a mãe.
A coordenadora do Núcleo de Estudos Indígenas da Furb, Georgia Fontoura, explica que como não há no Brasil um livro que liste todos os nomes das 305 etnias mapeadas pela Fundação Nacional do Índio (Funai), há cartórios que, pela falta de proximidade com o tema, acabam bloqueando o direito desses pais.
— A legislação obriga todos os cartórios do país a registrarem nomes indígenas. É uma questão de identidade cultural, isso é bem problemático — lamenta Georgia.
Se há dúvidas fundamentadas, o cartório pode exigir o Registro Administrativo de Nascimento do Indígena (Rani) ou a presença de um representante da Funai. Porém, o que normalmente ocorre é a desistência, com os adultos registrando os nomes dos filhos diferente do que gostariam.
Não é o caminho que Gisele pretende percorrer. Ela fez um boletim de ocorrência e o caso chegou ao Ministério Público Federal.
“Somos todos iguais”
Gisele é da tribo Xokleng, de José Boiteux, no Alto Vale do Itajaí, mas mora em Blumenau há cerca de cinco anos. Veio em busca de trabalho. Filha de índia e alemão, vive com o marido na ocupação do antigo Centro de Saúde do Estado, no Vorstadt.
O espaço, antes tomado por usuários de drogas, hoje serve de abrigo para 10 famílias indígenas. Apesar da ocupação ter três anos, ainda não foi autorizado o fornecimento de água e energia para o grupo. Em meio a essa realidade, Gisele cria os três filhos.
A caçula nasceu no final do ano passado e foi registrada no começo de janeiro. Como a mulher encontrou resistência no segundo nome que daria à bebê, Larissa tem no documento apenas o primeiro nome e os sobrenomes dos pais.
— A minha vizinha, que voltou para aldeia, também tentou registrar o segundo nome indígena e não conseguiu. O nome do meu pai é Helmut. É alemão, não índio. Então quer dizer que alemão pode (ser registrado), índio não? Nós somos todos iguais. Para mim foi preconceito — constata Gisele.
Para o cacique da terra indígena do Vale do Itajaí, Nilton Dilli, uma orientação da Funai aos cartórios pode evitar esse tipo de situação. Para os indígenas, preservar os nomes entre as gerações é uma questão cultural:
— É importante para não perder a nomes que eram referências, para preservar nossa cultura — enfatiza.
Questão histórica
O problema é antigo. A mãe de Gisele, a quem gostaria de homenagear, chamava-se Tandô, mas tinha apenas o primeiro nome, Ester, na certidão de nascimento, o que dificultou ainda mais o argumento de Gisele ao registrar a filha. A indígena e doutoranda em Antropologia da UFSC, Joziléia Daniza Kaingang, destaca que em um passado recente a solução ainda não existia:
— Sou dos anos 80. Na minha época, poucos foram os que conseguiram ter o nome indígena. Os cartórios são muito resistentes, mesmo tendo legislação que os obrigue. São despreparados para trabalhar com pautas indígenas, mas permitem tantos outros nomes diferentes — opina.
A procuradora do Ministério Público Federal, Lucyana Pepe, que lida com questões relacionadas à população indígena, revela que “antigamente era muito comum os Registros Civis se recusarem a registrar nomes de acordo com a cultura indígena, que nem sempre corresponde ao que nós, não indígenas, estamos habituados. Isso decorria, em geral, da ideia assimilacionista que vigorou por séculos no Brasil, de que os índios deveriam ser aos poucos integrados à cultura nacional dominante”.
Mesmo com a constituição e tratados internacionais destacando a importância de respeitar os nomes escolhidos, as recusas em cartórios continuaram. “Eram tantas que, à época, foi criado um grupo de trabalho nacional no Ministério Público Federal sobre o tema, do qual participei. Após, o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público resolveram definitivamente a questão por meio da Resolução Conjunta Nº 3 de 19/04/2012, que deve obrigatoriamente ser observada pelos Registros Civis”, escreveu a procuradora à reportagem.
— Isso é o que me deixou mais chateada, porque se ela falasse: “é um nome desconhecido”, é uma coisa, mas dizer que não é um nome. A minha mãe se chamava assim, só não foi registrada porque naquele tempo era mais difícil —, desabafa Gisele.
Com a resolução, a resistência nos registros diminuiu significativamente, mas não acabou. Cidades que possuem aldeias, como no Alto Vale, tendem a lidar melhor com a questão, pela proximidade com os povos indígenas. Já os registros civis de município mais distantes ainda têm dificuldades, analisa Joziléia.
A cacique Eunice Antunes, da aldeia Guarani do Morro dos Cavalos, em Palhoça, defende que os cartórios precisam ter o mínimo de entendimento sobre esses direitos.
— Acredito que existe uma desinformação muito grande, as pessoas não estão preparadas para atuar, principalmente dentro dessa questão civil, e se não procurar essas informações acabam negando esse direitor e reforçando a discriminação —, avalia.
Não se pode negar um direito
O cartório Braga Varella, onde Gisele registrou Larissa, alegou que o nome não constava em nenhum dos livros de registro da instituição. A escrevente Josiane Dalfovo disse que Gisele tinha tempo (45 dias a partir do nascimento) para trazer um documento que comprovasse a origem indígena, mas que “não quis esperar”.
Josiane garantiu que o procedimento é o mesmo para todos e que se a origem de um nome que não consta nos livros não é comprovada, o cartório não permite a oficialização da escolha.
O delegado André Sant’Anna Amarante, que registrou o boletim de ocorrência feito por Gisele, explicou que, por se tratar de um fato “penalmente atípico, o que significa que não há evento criminoso na ocorrência registrada”, não cabe à Polícia Civil cuidar do caso. “A Lei de Registros Públicos trata do assunto e, de modo geral, atribui à autoridade judicial a competência para resolver essas questões”, detalhou.
A procuradora do MPF, Lucyana, disse ter recebido a denúncia e orientou que fossem encaminhados mais detalhes para que as medidas cabíveis possam ser adotadas “para garantia desse direito, orientação e eventual responsabilização dos responsáveis pela recusa”.
Lucyana salientou que um cartório não pode negar esse direito e que basta uma reclamação do indígena ao Ministério Público.
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Gisele e a filha de quase dois meses(Foto: Patrick Rodrigues)