A democracia substantiva, emancipadora, radicalmente participativa e ecossocial deve estar no nosso horizonte mais largo, para não cairmos na cilada dos pequenos pactos desmobilizadores e castradores
Com tal conceito – democracia encurralada – tento qualificar a gravidade política da atual situação brasileira, à beira do fascismo e da barbárie. Para definir deste modo o quadro atual, faço um resumo de minha hipótese central de analista do processo democrático que vivemos desde que a ditadura militar deu lugar a uma solução política civil, limitada, mas minimamente democrática, condensada na Constituição de 1988. Claro, não consigo separar a análise do que eu mesmo fui ativo participante, particularmente com movimentos sociais, coalizões, campanhas de cidadania, direção do Ibase, no comitê de organização do Fórum Social Mundial, além de breve passagem pelo PT, ainda nos anos iniciais.
A democracia entre nós, nascida nos anos 80 do século XX e até hoje, nunca foi uma democracia substantiva, de alta intensidade, apesar de algumas conquistas fundamentais em direitos e políticas públicas, hoje sendo desconstruídas. Foi mais uma promessa e um possibilidade histórica, imposta prelas resistências e demandas da cidadania, mas sem uma real derrota das forças que sustentaram a ditadura ou que com ela foram coniventes. Não vou entrar em caracterizações pois foge do meu objetivo no momento. Só destaco a instituição e constituição de uma democracia com um câncer político no seu seio que nunca foi extirpado, pelo contrário, convivemos com ele e agora pode nos matar: a “conciliação política”. Os pais do “centrão” de hoje foram os remanescentes civis da ditadura, com papel central e decisivo em todos os governos democráticos desde então. Mas foi a nossa constituição que incorporou o pacto conciliador como algo estruturante de sua definição. Pior, nestes anos todos, não fomos capazes ou evitamos enfrentar a conciliação política, tarefa que se não for assumida pela cidadania nunca será realizada. Dos partidos que temos, mesmo de esquerda, a história mostra que não dá para esperar, pois daí nada virá.
Ainda em 2004, no segundo ano do governo de Lula, comecei a esboçar a tese do encurralamento da política, com impacto na democracia. Inspirado nos conceitos e reflexões de Gramsci, procurei fazer uma análise de situações e relações de forças políticas de então, baseando-me no mal-estar de muitos movimentos sociais brasileiros. Condensei minhas análises num artigo – Cidadania encurralada -, publicado na revista Democracia Viva, do próprio Ibase. Na verdade, reconheci então que havia representantes do enorme tecido social de movimentos sociais brasileiros no Governo Lula, mas com clara divisão institucional e de recursos do poder político governamental. De um lado, a dura agenda econômica de interesses das classes dominantes entregue diretamente a seus representantes diretos. De outro, a agenda vista como mais branda e necessitando de menos recursos, de direitos sociais e ambientais, sem afetar radicalmente as tais bases do desenvolvimento capitalista brasileiro, foi entregue a representantes mais identificados com o próprio PT e aliados. A “Carta ao Povo Brasileiro” – de aceitação dos princípios fundamentais do neoliberalismo – foi cumprida a rigor pelo PT, justificando-se em nome da governabilidade. Foi uma aceitação estratégica da conciliação política. Houve, sem dúvidas, algumas conquistas sociais, mas não mudanças que permitissem sonhar com a revitalização da democracia. O “novo desenvolvimentismo” não passou de uma monumental reprimarização da economia, com mais colonialismo interno e mais destruição ecossocial. E mais poder ao agronegócio e mineradoras. Sem desconhecer as concessões e benesses ao “centrão” parlamentar. Emblemático de tudo isto foi apostar no petróleo do pré-sal como tábua de salvação nacional. Além de sujar as mãos, lambuzamos com petróleo os nossos sonhos. Que sina!
Bem, voltemos aos dias atuais. Longos dias e anos, por sinal! Tínhamos uma democracia que se equilibrava convivendo com o “fascismo social” (concordando com os conceitos e as análises de Boaventura Souza Santos), das desigualdades sociais extremas, das polícias e milícias seletivas em sua violência e assassinatos, do racismo, das grandes periferias em territórios de cidades excludentes, de povos rurais invisibilizados e oprimidos pelo agronegócio que “é tec… e pop”. Mas, de repente, a grande serpente do fascismo se assumiu como tal e decidiu controlar explicitamente a arena política e até a sociedade civil, nossa cultura, nossos sonhos e desejos, subjugando a institucionalidade política de democracia, nos limites da ruptura autoritária. Acho que não preciso dar detalhes sobre o tamanho e a fortaleza do estreito curral em que nossa democracia se debate para não morrer de vez. Seremos capazes de ruptura?
O aparecimento da pandemia e sua incrível disseminação, o medo rondando, a dor e as perdas de vidas aos milhares, mais o desgoverno em termos políticos e sanitários no seu enfrentamento são sinais de verdadeira tragédia humana, social e política. Isto vem acontecendo num quadro de uma longa crise econômica, política e ambiental, provocada pelo esforço de implantação de uma agenda neoliberal radical e autoritária. Esta combinação compõe o substrato do desastre em que estamos mergulhados como sociedade, em meio a muitos sofrimentos, descasos, ódios e desprezos atingindo de forma aberta a própria dignidade da maioria da população. Afinal, chegamos à incrível marca de mais gente relegada à sobreviver de sobras, no desemprego, na informalidade, no desalento, na miséria e pobreza, esperando por solidariedade para viver, do que gente com salário e renda regular. Isto na população em idade ativa. E temos no centro do poder alguém eleito com a agenda do autoritarismo, do ódio racial, do patriarcalismo, da violência, do colonialismo interno, do subserviência ao império. Mais, a volta da tutela militar pela ocupação dos cargos estratégicos no executivo. O presidente atual conta ainda com o explícito apoio das Polícias Militares e dos milicianos de todo o país. E liberou o porte de armas para armar seus seguidores. Tudo feito com o aberta cumplicidade dos “donos”, que não estão dispostos a abrir mão de suas riquezas, privilégios e poder, com subserviência dos estratos mais bem situados na hierarquia social e ativismo nas redes sociais por apoiadores fanáticos que assumem abertamente valores e atitudes fascistas. Para completar, o Congresso de nossos representantes eleitos está totalmente comprado e cúmplice no assalto ao botim. O velho “centrão” em grande estilo, sem vergonha de seu patrimonialismo e falta de republicanismo, ocupando o seu lugar privilegiado no “toma cá, dá lá” com dinheiro público.
A barbárie deixou de ser uma possibilidade, pois já se instalou e só avança. A velha pergunta volta: o que fazer? Ainda podemos evitar o fascismo? A experiência histórica mostra que sempre existem possibilidades de reverter situações tão adversas. Claro, com muito esforço e dolorosas perdas pelo caminho. Mas, é possível reverter e transformar! Este deve ser o horizonte estratégico que nosso engajamento como cidadania ativa pode construir desde aqui e agora. Mas fica sempre a pergunta: por onde e como começar? Esta pergunta nos deve abrir os olhos e tentar ver os lugares, territórios, grupos e comunidades, as teimosas resistências aqui e acolá, em trincheiras um tanto invisíveis, experiências de gestão solidária diante de desafios comuns, de convivência, de compartilhamento, de dores, sem dúvida, mas também daquela esperança que pode ser diferente e melhor, apesar da tempestade atual. Quais são e onde estão os “sinais”? Nos debates em que participo on-line e nas postagens da web que seleciono e acompanho – nesta condição de isolamento físico que a pandemia nos impõe -, a busca de “sinais de cidadania viva” é a estratégia que adoto. Desde já, destaco que este olhar tem se revelado promissor.
Assim como está a conjuntura, não vejo nenhum sinal possível de saída na institucionalidade política da democracia encurralada. Os partidos de esquerda estão também encurralados, sem estratégia para além de um imediatismo visando preservar seus pequenos lugares e espaços. De toda forma, não se trata de voltar ao que era, porque já não era bom e não se reinventava. Penso que a nossa institucionalidade democrática, baseada na Constituição de 1988, daquele “pacto conciliador”, foi tão desfigurada neste processo de encurralamento, acelerado nos anos pós impeachment de Dilma, que a solução estratégica passa por uma nova Assembleia Constituinte. Bota tarefa gigante nisto e bem longe no horizonte!
Mas existem outros promissores sinais. Destaco aqui alguns, começando pelas resistências e a resiliência que vem demonstrando as periferias urbanas e rurais, com redes de solidariedade poderosos em efetividade e em simbolismo, na distribuição de alimentos e material de limpeza, no cuidado dos que necessitam cuidados, no esforço de não deixar ninguém no desespero, no enfrentamento e denúncia das violências policiais, na ajuda para as crianças sem escola. É emblemático o exemplo de distribuição de alimentos orgânicos de comunidades de “sem terra” para comunidades urbanas de favelados. Algo também acontece de novo em termos de cidadania com pontes entre centros universitários, organizações sociais e redes de favelas, como o projeto Enlace – uma aliança entre organizações – está demonstrando. Tive a oportunidade de assistir meses atrás uma live de apresentação dos avanços do projeto.
Chamo atenção, em particular, ao lugar que o “cuidado” vem tomando nas reflexões sobre esta pandemia e como poderá ser o amanhã. Por estar refletindo e escrevendo já há alguns anos sobre “novos paradigmas”, como alternativa a este capitalismo social e ecologicamente excludente e destruidor, a categoria do “cuidado” adquiriu uma dimensão nova e fundamental. Já escrevi sobre a centralidade do “cuidado” como pilar de uma economia ecossocial. A discussão nestes tempos de pandemia se instalou mais no cotidiano de muita gente por perceber a importância do trabalho do cuidado, essencial na saúde, feito por profissionais dedicados, nem sempre reconhecidos e valorizados devidamente. Discute-se mais e com simpatia a universalização do cuidado da saúde como direito e como política contida na proposta pelo SUS, no caso brasileiro, mas ainda não plenamente realizada. Pior, o SUS é uma das conquistas hoje mais ameaçadas pela sanha dos “encurraladores” e fascistas assumidos. O SUS é uma das mais importantes promessas democratizadoras da Constituição de 1988. Porque e como salvar o SUS já é um debate promissor, implantado no nosso cotidiano.
Mas, muitas reflexões também surgem a partir da centralidade do cuidado na vida familiar, nas tarefas que se impõe como uma dupla jornada de trabalho para as mulheres, obrigando nós homens, em plena pandemia, a finalmente reconhecer o quanto o patriarcalismo está enraizado em nossos corações, mentes e práticas, no como vem se reproduzindo tal domínio, apesar de muitos amores e carinhos. Ter que compartilhar os trabalhos de cozinhar, varrer a casa, lavar a louça e a roupa, cuidar de crianças, de idosos e doentes, descobrindo que isto exige tempo e dedicação, está sendo um duro e libertador aprendizado para homens. Quanto é ainda não se sabe, mas a reflexão a respeito se instalou para não sair mais, penso eu. Estamos diante de uma espécie de “revolução cidadã” na própria família, isto levando em conta que também a violência doméstica contra mulheres aumentou ou, ao menos, se tornou mais visível e pública apesar do isolamento físico. Por esta a ministra Damares não esperava, muito menos os bolsonaristas raivosos do “Deus, pátria e família”.
Mas ainda sobre o cuidado, em diferentes lugares e situações passamos a ver de um novo modo os chamados trabalhos essenciais, como o trabalho dos/as garis, invisíveis e até desrespeitados, apesar de estarem todo dia na rua coletando nosso lixo. Que seria de nossas cidades e da saúde coletiva sem tal cuidado? Bem, tem muitos outros serviços que começam ser vistos e valorizados pelo cuidado que prestam ao serem feitos. E a gente começa a ter demonstrada a centralidade do cuidado para a vida. Não vou listar tudo aqui. Mas lembrar que ao mudar a direção para onde e como a gente olha e, sobretudo, como sente tudo isto vai descobrir o estrutural patriarcalismo de cima abaixo da sociedade e a serviço do capitalismo. Mas na mesma direção, a gente vai descobrindo o racismo que contamina nosso olhar e práticas de forma “normal” no cotidiano. Ele é “racismo estrutural”, como os intelectuais negros nos jogam na cara, exatamente por isto: domina, exclui, discrimina, como se normal fosse. E o cuidado que necessitamos e está tão presente no cotidiano é ainda visto trabalho sem valor e profundamente imbricado pelo racismo, aliado do machismo como forma de dominação e exclusão social, desde a família e avançando na sociedade inteira.
Destaco aqui um outro sinal de mudança no foco de análise e reflexão que ganhou relevância de um novo modo neste quadro de barbárie sanitária, econômica e política em que estamos encurralados. Falo da nossa relação com a natureza, nosso bem comum maior. Ou seja, a integridade dos territórios em que levamos a vida e do finito Planeta Terra compartido por toda a humanidade e todos os seres vivos. O tema está na agenda pública desde, pelo menos de forma ampla, fora dos círculos especializados, desde a grande Conferência Rio-92. A mudança climática passou a se destacar como questão, puxada especialmente por grandes organizações e movimentos ambientalistas, além de contar com a implantação dos eventos anuais de Conferência das Partes (COP) ou Conferências da ONU sobre Clima, com os bem fundados relatórios do IPCC-Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas.
O sinal novo e fundamental é um enfoque mais abrangente que vem sendo divulgado devido às análises sobre a origem da pandemia do Covid-19. Ela é expressão de uma agressão estrutural à integridade dos sistemas ecológicos que garantem a própria vida, provocada pela mercantilização e exploração sem limites dos recursos naturais. O corona vírus chegou até nós por ataque sistemático que está sendo feito a grandes florestas originais ainda existentes, onde tais vírus e muitos outros tem o seu ecossistema original, sem ser ameaça. O extrativismo ao destruir sem limites e sobretudo a expansão do agronegócio, com suas lavouras e suas indústrias intensivas de criação de animais, estão na origem da passagem do corona vírus a seres humanos. Como já escrevi a respeito, nós temos esta bomba fortemente instalada no Brasil, pois já somos um dos maiores agronegócios do mundo. Mas trazer tal reflexão ao prato de comida é a novidade. Quanta gente pode mudar de consciência e de vontade política se pensar que ao se alimentar com o que o agronegócio nos oferece podemos estar descuidando da integridade da natureza e de nossa saúde coletiva. Por aí entra a ideia do cuidado no centro de uma nova economia. Por sinal, é só imaginar como seria nossa vida se o cuidado fosse o centro e a razão de ser da economia de sentido humano, não a acumulação de riquezas a todo e qualquer custo por donos de capitais, com exploração e dominação de amplas maiorias e destruição da base mesmo da vida, o Planeta.
São sinais como estes que precisamos. São pequenos, mas estratégicos. Sei que estou forçando um olhar para fora da institucionalidade política do “grande curral democrático. Podemos mais cidadania e sociedade nisto para vislumbrar saídas! Ou o curral fascista nos empurrará para o brete da barbárie! O que “os sinais” de algo que se move, as sementes brotando e florescendo na sociedade pelas mãos da cidadania silenciosa, tem a ver com democracia e economia como as que temos no Brasil? Isto é uma proposta para nós intelectuais e ativistas priorizar e pesquisar, com olhar estratégico. Por exemplo, a resistência dos povos indígenas, dos quilombolas, das comunidades ribeiras e coletoras da floresta, dos assentamentos de sem terra, de movimentos como a Articulação do Semi-Árido, dos movimentos de agroecologia, dos movimentos contra o racismo, os movimentos feministas, das ações de cidadania que se multiplicam nos sofridos territórios de favelados e periferias em geral, os movimentos de atingidos por barragens e pelo extrativismos e muitos, enfim todo um caldo político-cultural e popular como inspiração a priorizar se buscamos saídas. Cabe ou não um novo olhar sobre movimentos ambientais? Cabe ou não a elaboração mais consistente combinando ativismo social e ativismo ecológico? Cabe ou não trazer ao centro e ver como enfrentar o racismo e o patriarcalismo?
Concluo aqui com um apelo: olhemos mais para o chão da sociedade civil, para as resistências e insurgências que vão se desenhando, para o que estamos todas e todos aprendendo com esta situação de pandemia combinada com pandemônio, de ecocídio e da necropolítica. Mapeemos a cidadania se manifestando nas pequenas mudanças, onde os tentáculos de um poder que encurrala têm dificuldades de chegar. A democracia substantiva, emancipadora, radicalmente participativa e ecossocial deve estar no nosso horizonte mais largo, para não cairmos na cilada dos pequenos pactos desmobilizadores e castradores. A tarefa de construir uma tal democracia de alta intensidade é árdua, paciente e longa. As sementes do anticapitalismo e a sua mercantilização da vida e do planeta, do antirracismo e do antipatriarcalismo estão plantadas na nossa sociedade e se mostram resilientes neste momento difícil. E o poder transformador do cuidado, chegando até à democracia, deve nos guiar estrategicamente nesta etapa. O encurralamento já está sendo minado de alguma forma em nosso cotidiano silencioso e de isolamento necessário.
*Cândido Grzybowski, sociólogo, presidente do Ibase