Mais de cem pessoas que participaram de carreatas em cidades brasileiras foram autuadas pela Polícia Militar por infrações como buzinaço e falta de cinto
Por Lara Ely, Agência Pública
Mais de uma centena de motoristas foram multados depois de terem participado de carreatas contra o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), realizadas nos últimos dois meses em diversas capitais brasileiras. Segundo apuração da Agência Pública, as multas foram de valores de R$ 88,38 a até R$ 5.869,40.
Apenas em Porto Alegre (RS), a reportagem encontrou mais de 46 autuações. Motoristas se dizem surpresos após receber em casa multas por motivos como “passageiro sem cinto de segurança”, “buzina por tempo prolongado”, “utilizar o pisca alerta” e “obstrução do trânsito”. Em comparação, segundo dados do Detran-RS, os protestos de apoio ao presidente não registraram nenhuma ocorrência.
Além disso, relatos de motoristas apontam mais de 20 multas em carreatas contra Bolsonaro em Florianópolis. A reportagem encontrou também casos de manifestantes multados em São Paulo e Brasília.
Após a carreata, a surpresa: multas chegam por correspondência
Depois de ter participado da manifestação no largo da Epatur, na capital gaúcha, no dia 23 de janeiro, uma servidora pública, que preferiu não se identificar, recebeu em casa uma multa no valor de R$ 195,23 por transitar sem cinto, fato que garante não ter ocorrido.
“Foi totalmente descabida a autuação, fiquei incomodada. Se ainda tivesse feito algo errado, tudo bem, mas eu estava de cinto o tempo todo. Participar do protesto é um direito civil. Como a população vai ficar à vontade para protestar se a retaliação vem assim, como uma forma de silenciamento?”, afirma a servidora, que vai recorrer judicialmente.
No mesmo dia e local, a sindicalista Elisia Mara Rodrigues aparece em uma foto que circulou na imprensa e redes sociais usando cinto de segurança no banco do carona. Ela estava com a família na carreata do dia 23, sentada ao lado do marido, que foi autuado. Elisia estranhou a multa ser aplicada pela Brigada Militar (BM, nome dado à Política Militar no Rio Grande do Sul), já que agentes da Empresa Pública de Trânsito e Circulação (EPTC), órgão que fiscaliza o trânsito em Porto Alegre, estavam no local.
Outro multado foi o funcionário do Sindicato dos Servidores da Justiça do Rio Grande do Sul (Sindjus-RS) Fabiano Marranghello Zalazar, que diz estar com a buzina estragada no dia da manifestação. Ele foi notificado também por uso prolongado do equipamento. “Quando aperto, não sai barulho nenhum, ela some completamente. Já fui ao mecânico para consertar porque está travada mesmo. Tem até um laudo constatando que não funciona. Essa multa que levei, na avenida João Pessoa, não faz o menor sentido”, diz Zalazar.
Presidente do movimento Mães e Pais pela Democracia, Aline Kerber foi uma das organizadoras da manifestação, junto a demais entidades sindicais e organizações políticas de esquerda. Ela garante ter informado os órgãos competentes através de formulário eletrônico sobre o trajeto e horário das carreatas nos dias 23/1, 31/1 e 6/2 em Porto Alegre. “Pedimos autorização para EPTC e tivemos acompanhamento in loco, com agentes presentes e coordenação da Brigada Militar”, afirma ela, que criou um grupo virtual reunindo mais de 20 multados em Porto Alegre.
A presidente da entidade estima que a primeira carreata (no dia 23 de janeiro) contou com mais de 2 mil carros, mas a logística e a organização do trânsito fizeram com que o fluxo dos veículos ficasse lento. “A Brigada travou a saída, e, enquanto alguns veículos conseguiam andar, buzinando e agitando suas bandeiras nas janelas, outros ficaram parados na sinaleira. De repente, fomos desviados para um trajeto diferente do planejado, e a carreata transformou-se em congestionamento na volta da quadra, ficando impossível continuar. Os carros começaram a dispersar nos primeiros 15 minutos. Fizemos um evento pacífico e o entendimento da polícia foi outro, nos repreendendo com censura”, diz a presidente.
Representando o grupo de pessoas que se sentiram lesadas pelas multas, Aline registrou o caso em um ofício enviado para o Comando-Geral da Brigada Militar, acionando a Corregedoria da corporação. A mensagem emitida em 17 de fevereiro foi endereçada ao comandante-geral coronel Rodrigo Mohr e pedia esclarecimentos, anulação das penalidades, além da apuração da conduta dos policiais envolvidos. Dos motoristas que se pronunciaram sobre as autuações, dez foram identificados no dossiê entregue à BM, sendo sete por buzina e três por não uso do cinto. A BM registrou o recebimento, mas até o fechamento desta matéria ainda não havia se manifestado sobre o ofício.
Pelo site da Transparência RS, a reportagem consultou o número de autuações para os artigos 6491-0 (uso prolongado da buzina) e 167 (ausência de cinto de segurança) nas datas das carreatas pró e contra Bolsonaro em Porto Alegre. No entorno do largo da Epatur, na Cidade Baixa, onde ocorreu a carreata no dia 23 de janeiro, foram registradas 15 autuações por buzina e 31 por ausência de cinto entre passageiro e motorista. Na avenida Goethe, onde ocorrem manifestações em favor da abertura do comércio (pró-Bolsonaro), não foram registradas multas nos dias 15 de março e 21 de junho de 2020. Em locais próximos, a pesquisa apontou três multas nessas datas.
Proprietária de loja de roupas e acessórios na zona norte de Porto Alegre, a empresária Lúcia Helena Neumann Borges relata que esteve em manifestações de apoio ao presidente Jair Bolsonaro em três ocasiões, entre março e abril do ano passado. No Parque Moinhos de Vento, em Porto Alegre, tradicional reduto bolsonarista, ela diz ter participado de caminhadas, com máscaras e bandeiras levando dizeres como “Fora STF”. A mobilização pedia a reabertura do comércio.
“Tinha o pessoal da Guarda Municipal e fiscalização dos azuizinhos [agentes de trânsito], mas não lembro de ninguém ter sido multado na ocasião. Multas, só para quem abriu a loja durante a bandeira preta [determinação do Sistema Estadual de Distanciamento Controlado que restringe as atividades do comércio no Rio Grande do Sul devido à pandemia]”, afirma a empresária.
Em Santa Catarina, participação em carreata leva a suspensão da carteira e multa gravíssima
Eles não foram os únicos a serem punidos pelo artigo 253-A do Código Brasileiro de Trânsito. Além da multa gravíssima e sete pontos na carteira, o professor universitário Luiz Carlos Pinheiro Machado Filho teve o direito de dirigir suspenso por 12 meses. “Com a Polícia Militar à frente da carreata, exigindo uma velocidade mínima, não tivemos controle do fluxo. A carreata esteve sempre em movimento, não impedindo em nenhum momento a fluidez do trânsito. Se houve bloqueio, foi com a liderança da própria polícia. Havia agentes tirando fotos, sem abordar”, declara o professor.
Em Florianópolis, manifestações contra o presidente também acarretaram multas – estas em valores ainda mais salgados. Na capital catarinense, foram autuados pelo menos vinte manifestantes pelos mesmos motivos que em Porto Alegre. Uma das envolvidas no caso é a ex-senadora Ideli Salvatti (PT-SC), que estava acompanhada do marido na manifestação. O casal teve o veículo autuado por obstrução de trânsito, uma multa no valor de R$ 5.869,40.
Segundo Leandro Moraes Vidal, integrante da direção estadual da Central Intersindical de Florianópolis, mais de 20 pessoas levaram essa multa gravíssima. “Não fizemos a notificação da carreata. Mas foi muito grande a adesão e isso gerou bastante tumulto. No dia do evento, fomos abordados pela Polícia Militar e eles se colocaram à disposição para organizar o trânsito. Tudo ocorreu normal. Tinha alguns policiais filmando. Dias após, começaram a surgir multas”, relata o líder sindical.
A Polícia Militar de Santa Catarina e a Guarda Municipal de Florianópolis informaram à Pública que não detêm informações sobre multas expedidas, sendo que elas são enviadas para o Detran-SC. O Detran não retornou à solicitação nem atendeu os telefonemas.
Representado por um escritório de advocacia de Curitiba, o grupo de catarinenses organiza um dossiê para entrar com uma liminar suspensiva das multas. “Coincidências ou não, muitos dirigentes sindicais e dirigentes de partidos foram multados”, relata Vidal. A maior parte das multas, segundo ele, foi referente à manifestação do dia 23 de janeiro. O dossiê aponta algumas inconsistências, como horário e local das autuações e a emissão de infrações pela Guarda Municipal, não identificada visualmente pelos autuados.
Buzina em protesto: um caso controverso
Além do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, motoristas que participaram de carreatas em São Paulo e no Distrito Federal contra o presidente Bolsonaro foram multados. Na capital paulista, a manifestação aconteceu longe de hospitais, mesmo assim, resultou em manifestantes autuados por diversos motivos, conforme mostrou a reportagem do jornal Brasil de Fato. Em Brasília, mais da metade dos veículos presentes na Praça dos Três Poderes foram autuados — dos 100 carros, 55 receberam multas da Polícia Militar, como mostrou o Jornal Metrópoles.
A reportagem acionou a Secretaria de Transporte de São Paulo e o Departamento Estadual de Trânsito de São Paulo (Detran-SP), que responderam que o assunto não era de sua competência. A Polícia Militar, por sua vez, não respondeu à solicitação.
Por meio da assessoria de imprensa, o Detran-DF informou que, nos dias de manifestação popular, o controle de trânsito na Esplanada dos Ministérios fica a cargo da Polícia Militar. A Polícia Militar, por sua vez, disse que o assunto era competência do Detran.
Segundo o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), o uso da buzina de forma exagerada e sem motivo configura infração leve de trânsito, podendo gerar penalidade de multa para o condutor.
No entanto, num contexto de manifestação, o advogado e coordenador da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RS Roque Soares Reckziegel defende que é um direito da população e repreendê-lo pode ser considerado excesso de autoridade. “Parece ter havido excesso por parte das autoridades. Em final de campeonato de futebol, esse buzinaço ocorre de forma muito mais intensa e não há multa. Parece envolver uma questão ideológica”, afirma Reckziegel.
Advogada especialista em direito de trânsito Rochane Ponzi discorda. Para ela, autuar manifestantes que possam estar irregulares faz parte do papel da polícia. “Não dá para dizer que se trata de uma perseguição política. Alguns agentes fazem isso para tirar malfeitores de circulação. Às vezes, as pessoas se insuflam e desacatam orientações do órgão. Ter uma autorização para uma manifestação de trânsito não é um salvo-conduto para transgredir a lei”, afirma. Ainda assim, ela orienta que as pessoas que se sentiram lesadas a partir da notificação devem exercer seu direito de defesa.
Diretor-presidente da EPTC, Paulo Ramires explica que em uma carreata o papel do ente público é garantir a segurança de todos que circulam no local e fazer cumprir a legislação. Segundo ele, também é papel da Brigada Militar reduzir impactos, fazer fluir o trânsito e fiscalizar os condutores.
Questionado sobre a manifestação do dia 23 e sobre por que as infrações não foram aplicadas também nas carreatas pró-Bolsonaro, ele afirma que não compete aos gestores da entidade a responsabilidade sobre a aplicação das multas. “É do agente que está no local a competência de fazer as infrações. Eles são autônomos para executar esse trabalho. Nós não temos gerência direta sobre isso, nem sobre os policiais militares. Apenas procuramos em conversa prévia identificar o problema e programar como iremos agir”, esclarece Ramires.
O diretor menciona a procissão dos motoqueiros – essa de cunho religioso – em que as autoridades lavraram mais de 900 autos de infração em 2018 por motivos como o uso prolongado da buzina. A manifestação ocorre tradicionalmente no dia 12 de outubro, em decorrência do dia de Nossa Senhora Aparecida, padroeira dos motoqueiros.
Abuso de autoridade x autonomia do agente
Presidente e fundador do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, o advogado Jair Krischke diz que a sociedade brasileira está apática e uma situação como essa tende a reforçar a falta de embate. “Se a gente deixar isso sem reação, amanhã ou depois irão multar até o panelaço. A multa caberia no caso de ter sido em áreas próximas a hospitais e casas de repouso. É realmente uma forma de constranger, querer coibir e silenciar quem é contra o governo”, afirma.
Subcomandante do 9º Batalhão da Polícia Militar, área onde ocorreu a maior parte dos protestos da capital gaúcha, o major Tales Américo Osório nega a existência de qualquer tipo de orientação para repressão política ou ideológica nas carreatas. “Isso é inconstitucional, é uma atitude improvável e ilegal. Não temos essa faculdade para determinar aos nossos efetivos”, afirma. Segundo ele, não houve favorecimento ou repressão em nenhum dos atos [nem a favor nem contra o presidente], “uma vez que a BM não tem posicionamento político e apoia todo tipo protesto, causa ou manifestação para garantir a ordem”.
Osório diz que os brigadianos têm total autonomia de decidir sobre a aplicação da multa. Se o policial viu que houve infração, ele preenche o auto e confecciona a multa. A tarefa de acompanhar os protestos, segundo ele, tem por propósito promover a segurança dos cidadãos: “As pessoas podem exercer seu direito de livre manifestação. Não importa o viés ideológico, em todas as manifestações a Brigada Militar deve estar presente para garantir a segurança. Mas o Código Brasileiro de Trânsito é bem claro, ele não é flexível. Seja num protesto ou em qualquer lugar, alguém sem cinto proporciona alto risco à sua própria vida.”
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Imagem: Carmen Vieira e Sidnei de Souza mostram as multas que suas famílias receberam após participarem de carreatas contra Bolsonaro em Santa Catarina – Associação Mães e Pais pela Democracia