‘Militarização da segurança pública é porta de entrada dos militares ao poder’, diz Orlando Zaccone, dos Policiais Antifascismo

Fundador do movimento falou sobre seu conceito de “democracia militar” e o papel da polícia no Da Ponte pra cá, série de lives da Ponte: “O policial tem que ser disputado no debate político, não podemos virar as costas para esse trabalhador”

Por Jessica Santos, na Ponte

O quinto episódio da série de lives Da Ponte pra cá, apresentado pelo diretor de redação da Ponte, Fausto Salvadori, trouxe o fundador e atual coordenador do movimento Policiais Antifascismo, Orlando Zaccone, que também é doutor em ciência política pela Universidade Federal Fluminense e membro da Leap (Law Enforcement Against Prohibition), organização internacional que reúne policiais, promotores e juízes na busca de alternativas à guerra às drogas. Entre diversos temas, o autor dos livros Acionistas do Nada (2007) e Indignos de Vida (2014) falou sobre militarização da segurança pública, luta antifascista e democracia militar.

Ao longo de mais de uma hora de entrevista, Zaccone desenhou um panorama sobre a relação das policiais militares e as Forças Armadas. Para ele, a desmilitarização é importante para cortar o cordão umbilical que existe entre as duas, e também para construir a figura do policial enquanto trabalhador que precisa ter direitos fundamentais garantidos.

De acordo com o policial, os militares brasileiros se preparam há anos para o seu retorno ao poder, seguindo a trajetória histórica de intervenção militar em momentos de crise, iniciada durante o Império. No entanto, similar à ação de 1964, Zaccone acredita que, se tomarem o poder agora, os militares não vão querer largá-lo tão cedo.

Relação entre PM e Forças armadas

“Historicamente no Brasil, todos os momentos de crise, desde o Império, eles sofreram intervenções militares”, explicou Zaccone. Ele afirma que as Forças Armadas brasileiras, sobretudo o Exército, que é a mais antiga das armas, têm essa imagem de “poder moderador” que, ao final de um determinado período de intervenção, retornaria o poder aos civis.

Entretanto, em 1964 houve uma quebra de paradigma, segundo o policial. Os militares permaneceram no poder por mais de 20 anos e é no contexto de ditadura que nasce a função de “agente de segurança pública” da Polícia Militar. “Antes de 1968, não havia previsão constitucional da Polícia [Militar] atuando na área de segurança”. A Polícia Militar era um corpo aquartelado “que em momentos de sedição e revolta era chamada às ruas, mas sempre como auxiliar do Exército”.

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Neste contexto, teria nascido o perfil militarizado das forças policiais brasileiras. “Isso, acho, foi um projeto, um projeto vitorioso das Forças Armadas, porque hoje o Exército tem policiais no território nacional todo que, há qualquer momento podem se voltar, inclusive, contra seus próprios governadores”, afirma Zaccone. Para ele, “as polícias militares nos estados servem a dois senhores: recebem salário do governador, mas elas continuam como forças auxiliares e de reserva do Exército”.

Democracia militar

Fora do poder central desde 1985, os militares não passaram as últimas décadas “deitados eternamente em berço esplêndido”. “Eles não estavam, durante todos esses anos, de 1988 para cá, fazendo lanche dentro do quartel. Eles estavam planejando muitas coisas”, disse o coordenador dos Policiais Antifascismo.

Seu projeto de pós-doutorado pretende estudar o que designou como “democracia militar brasileira”, que é “toda movimentação que os militares fizeram a partir da Constituinte de 1988 e que levou esses militares ao poder com a eleição do Bolsonaro”. Pesquisando os arquivos da revista da Escola Superior de Guerra, Zaccone percebeu artigos que lançam olhares para além de estratégias militares, incluindo a educação pública.

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“A escola civil-militar é uma construção que está sendo feita linkando a educação como mobilização no sentido de defesa nacional”, explica. “Eles vêem que a educação é a porta de entrada da mobilização da cidadania pelas Forças Armadas. Ou seja, eles defendem a escola pública para mobilizar a juventude”.

Outra movimentação política do Exército é a redação do artigo 142 da Constituição de 1988. “É um artigo que ninguém questionou, mas ele abre portas ao dizer que cabe as Forças Armadas garantir o funcionamento dos Poderes a partir do momento em que a ordem é violada”. Zaccone indica que, para alguns autores, este seria a configuração de um “estado de exceção constitucional”. “Não são as Forças Armadas que têm que garantir o funcionamento dos Poderes. São os poderes constituídos que têm que garantir a presença e o exercício das Forças Armadas”.

Ainda nesse contexto, Zaccone afirma que o texto constitucional “permitiu que os militares permanecessem nas estruturas de poder dentro de uma ‘formalidade democrática’”, usando como exemplo os relatos do general Villas-Bôas sobre a pressão militar junto ao STF na época do julgamento do primeiro habeas corpus do ex-presidente Lula.

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“A militarização da segurança pública foi, e é ainda, porta de entrada dos militares dentro das estruturas de poder em nosso país pós-ditadura militar, pós constituinte de 1988″, avaliou Zaccone na live. Ele ainda apontou que a esquerda cedeu ao discurso de lei e ordem a fim de chegar ao poder, ou seja, mediante interesse eleitoral.

Quem poderá defender a democracia da uma nova ruptura? Zaccone não indica confiar no Superior Tribunal Federal (STF) para essa tarefa. “Sinceramente, acreditar que vamos ter o STF como garantidor da ordem democrática no nosso país é fechar os olhos [ao fato de] que o STF participou de tudo que nos levou a esse momento que estamos vivendo”. Ele acredita que “os militares não vieram para ficar quatro anos e irem embora. Acho que eles vão continuar no tabuleiro dando as cartas”.

Desmilitatização

Na opinião de Zaccone, a solução para alguns impasses do país passa pela desmilitarização da polícia. “Hoje nós precisamos falar de desmilitarização da segurança pública inclusive para que a gente possa fazer o enfrentamento desse modelo de solução de crises políticas onde o Exército constantemente faz a intervenção”.

Ele ainda acrescenta a necessidade de “debater o controle civil dos militares no Brasil”. “O assunto é muito mais profundo e a esquerda, infelizmente, além de não ter feito esse debate, pós ditadura civil militar, e, em algum momento colocou lenha nessa fogueira”, opina, citando a missão militar brasileira no Haiti como uma espécie de escola para intervenções militares em territórios pobres.

“A forma correta do debate a desmilitarização não é acabar com a Polícia Militar”, Zaccone indicou. “A Polícia Militar pode continuar, só não pode ser a força auxiliar do Exército”. Esta inclusive é uma luta encampada pelo Policiais Antifascistas. Para o movimento é preciso devolver o comando da polícia aos governadores até como forma de “defender o princípio de democracia e o princípio federativo”.  

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Olhando para o contexto internacional, Zaccone apontou que a Polícia Militar brasileira com seu perfil de força auxiliar do Exército é algo inédito, uma daquelas muitas jabuticabas que só dão em terras brasileiras. Ele explicou que, de acordo com o conceito internacional, uma polícia só poderia ser considerada militar se estivesse localizada no Ministério da Defesa. Caso contrário, seria considerada uma força civil.

Um exemplo de polícia militar usado por Zaccone seria a espanhola que, apesar de se chamar Guarda Civíl (Guardia Civil), é um órgão militar por ser subordinada ao ministério da Defesa do país. Do outro lado, os carabineiros do Chile (carabineros de Chile) são considerados policiais civis, apesar de sua estética e treinamento militar. No país a corporação é tutelada pelo ministério do Interior.

Outro motivo defendido pelo entrevistado para a desmilitarização é a possibilidade de “construir o policial como servidor civil com direitos”. Ele relembra que a categoria não tem direito de greve, de filiação partidária, da livre manifestação do pensamento. “A militarização transforma o policial num subcidadão. Quase ninguém fala isso”. 

Policiais: Fascismo x Antifascismo

Para Zaconne, nem todo policial é fascista, mas há “grupos pequenos que fazem barulho” vinculados ao fascismo, enquanto do outro lado existe uma “maioria silenciosa” na polícia. “A grande maioria observa, querendo se posicionar. Muitos deles são a favor da democracia e não são fascistas”. É para disputar esta maioria que o movimento Policiais Antifascismo existe, de acordo com ele.  

“O policial hoje tem que ser disputado no debate político. Não podemos, enquanto esquerda, virar as costas para esse trabalhador, temos que estabelecer diálogo. A ideia de que a classe policial é inimiga do povo fez com que a esquerda não olhasse para a categoria. A direita se aproveitou da situação e construiu um discurso que seduziu os policiais, mas é somente um discurso”.

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À luz do sentimento de traição sentido pela categoria diante da possibilidade de congelamento dos seus salários na PEC Emergencial, Zaccone pontuou que “o Bolsonaro nunca prometeu aos policiais uma condição digna de trabalhador. Ele não garantiu isso para nenhum trabalhador, vai garantir isso para os policiais?”.  

Nada é tranquilo para os policiais antifascistas. Há quem desconfie – ou ache incongruente – a união entre polícia e antifascismo. “A gente apanha dos dois lados. Dentro da polícia, os caras dizem que não podem ser antifascistas e fora da polícia, em grupos radicais antifas, vão dizer que policiais não podem ser antifascistas”. Para Zaccone, o discurso antifa se encontra com o da direita para dizer que estão errados. “Pra nós, é muito bom estar no lugar errado, porque estar no lugar certo é manter as coisas como elas estão”.

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