‘Ser mulher é uma construção cultural perfeitamente habitável’, diz Laerte Coutinho

Em entrevista a Breno Altman, cartunista falou sobre questões de gênero, as dificuldades de fazer humor durante a pandemia e Bolsonaro

Por Camila Alvarenga, no Opera Mundi

No programa 20Minutos desta sexta-feira (12/03), o jornalista Breno Altman entrevistou a cartunista Laerte Coutinho, que falou sobre a transgeneridade no país, tema que vem conquistando espaço nas discussões sobre gênero e sexualidade. Para a artista, há uma percepção com “limitação” no que se refere aos gêneros, prevalecendo uma “ideia binária” do que é ser homem ou mulher, como se fossem as “únicas duas possibilidades” que existem dentro da sociedade.

“Ser mulher não é uma coisa só. Ser mulher é, também, uma construção cultural perfeitamente habitável. Não tem nada que impeça qualquer pessoa de ser mulher. Mas ser mulher também parte de uma ideia binária, de que ser homem ou mulher são as únicas duas possibilidades, o que eu acho muito limitado. Existem pessoas que fazem questão de não estar nem num ponto, nem no outro”, disse.

Ser uma mulher transgênero foi rever qual era esse ponto de início. Foi em 2009 que ela se assumiu travesti e depois transgênero, aos 58 anos, já com dois filhos e netos. A idade pode parecer um obstáculo a mais para os que veem de fora, mas ela defendeu que não necessariamente a vida teria sido mais fácil se ela tivesse se assumido jovem.

“Se eu tivesse me assumido homossexual quando percebi que era, nos anos 60, teria tido vários problemas. O que teria sido da minha vida? Teria me exposto à AIDS, por exemplo? Teria trabalhado onde trabalhei?”, questionou.

Ter se assumido mais tarde, porém, veio com suas dificuldades. Uma delas, o tratamento pronominal. Apesar de afirmar que há muito tempo já não tem mais problemas com pessoas tratando-a no masculino, seus amigos próximos e parentes às vezes ainda a tratam no masculino.

“Eles podem me chamar do que quiserem. Eu sei quem eu sou e eles também sabem. Meus netos às vezes me chamam de vovô, às vezes me chamam de vovó. Mas se eu vejo que alguém me trata no masculino com maldade, eu reajo”, contou. Apesar da fluidez, Laerte fez questão de ressaltar que a mudança linguística exigida pela comunidade trans é legítima. “O que não é muito razoável é supor que as pessoas consigam lidar com pronomes neutros de maneira ágil”, ponderou.

Falando sobre o movimento trans no Brasil, ela celebrou a quantidade de candidaturas trans das últimas eleições locais, com Érika Hilton, uma mulher negra trans, sendo a candidata a vereadora mais votada em São Paulo, por exemplo. Ou Duda Salabert, a vereadora mais votada em Belo Horizonte.

Essa realidade, em construção há muito tempo, apesar de ser insuficiente e contraditória, é o que permite que hoje ela não tenha mais que esconder quem é, nem dos outros, nem de si mesma.

“Eu me escondia de mim mesma, agora não sei se escondo mais coisas. Faço análise, porque acho que quanto melhor a gente se conhece, melhor a gente lida com nós mesmos. A tendência é a gente deixar o que é difícil de lidar escondido, fingindo que não altera nada em quem somos. E altera. Eu não quero ter mais pontos desconhecidos para mim”.

Humor, pandemia e Bolsonaro

No programa, a cartunista ainda comentou sobre a situação atual do Brasil e a força do humor diante desse cenário. Para ela, há uma certa dificuldade em caricaturar uma pessoa “que é uma caricatura”, sendo mais complicado do que se fosse para fazer de “governantes que se comportassem de forma minimamente civilizada”.

“Você está lidando com pessoas no poder que são ridículas, então é preciso se contrapor a elas de maneira inteligente. Chamar o Bolsonaro daquilo que ele é não funciona, porque então as próprias notícias deveriam já funcionar como ataques poderosos. Fazer a caricatura de uma pessoa que é uma caricatura é difícil, acho até mais difícil do que se fosse para fazer de governantes que se comportassem de forma minimamente civilizada”, afirmou. 

Porém, para ela, mais difícil seria fazer charges sobre a pandemia, por exemplo. A própria cartunista teve coronavírus e precisou ser internada durante dez dias. Ela afirma que hoje ainda enfrenta as sequelas da doença, o cansaço, principalmente, que busca superar com fisioterapia.

“O humor não se realiza quando existe uma comoção. Você não vai chegar para uma pessoa que acabou de perder alguém querido e tentar obter uma risadinha. Tem ocasiões em que é preciso ou fazer as coisas com muito tato, ou ficar quieta. E para ambas é preciso sabedoria”, argumentou.

Ela acredita, entretanto, que existe muito espaço para trabalhar o humor, por ser uma linguagem sofisticada “que chega a lugares do raciocínio humano onde a lógica não entra”. “Mas eu trabalho com o humor numa modalidade editorial, mais política, que permite um jogo maior”, explicou. 

Cartunista política 

Sua carreira como chargista e cartunista política começou em 1970. No entanto, nem todos esses anos permitiram que ela se desse conta de que havia tanta “boçalidade” no Brasil. “Me surpreendi. A direita foi saindo do armário e explicitando com cada vez menos medo palavras de ordem que são chocantes. Antes diziam com vergonha que bom mesmo era no tempo da ditadura. De repente, virou um cartaz”, disse.

“Uma vez li que o fascismo se nutre dos momentos de frustração, mais do que dos momentos de privação e carência. Populações com desemprego e passando fome não são o celeiro preferencial do fascismo. Ele se nutre das frustrações da classe média”, disse.

Nesse sentido, a restituição dos direitos políticos de Luiz Inácio Lula da Silva tem especial importância, segundo ela, ainda que não se saiba se ele realmente vai se apresentar como candidato para as eleições de 2022. 

“O mais importante é que ele esteja livre e atuando no cenário político brasileiro, o que ele já está fazendo. Veja a força da fala dele, que obriga o Bolsonaro a aparecer usando máscara”, comemorou.

Ela, porém, não quis discutir candidaturas nem declarou seu apoio a nenhum político, afirmando que o importante neste momento é ser estratégico, discutindo projetos e não “tentando enfiar candidaturas sofregamente”.

“Mas o caso do Lula é especial porque ele foi uma vítima. Agora, o que vai acontecer daqui para frente, é uma incógnita”, afirmou.

A volta do ex-presidente ao cenário político pode contribuir para gerar uma reação na população, que a cartunista afirma que até esse momento tem sido insuficiente, culpa de uma “passividade forçada”. 

“O excesso de notícias de sofrimento e catástrofe não produz em si mesmo a indiferença. A passividade vem de não encontrar os canais para reagir ao que estamos vendo. Ou porque nos mantemos longe deles ou porque destruímos as formas de participação. A internet virou um canal para ficar elaborando, mas não existe nada que nos estimule a sair dessa passividade, ainda mais na pandemia”, argumentou.

Resistência à ditadura

Comparando a reação à situação política brasileira atual com a reação que se fez à ditadura, Laerte relembrou sua época como militante do Partido Comunista Brasileiro. Ela participou da célula clandestina do PCB, na área de jornalismo. “Tinha até um codinome. Maurício. Mas nunca foi usado”.

Ela entrou no partido em 1973, no auge da repressão militar: “Era mais falta de juízo do que falta de medo, porque noção do perigo veio mesmo em 1975. Antes eu evidentemente via perigo, mas achava que perigo mesmo corriam as pessoas que estavam na luta armada”.

Discutindo sobre o humor naquela época e no período de redemocratização, ela afirmou que chegou a produzir até charges machistas e outros conteúdos que hoje seriam impensáveis.

“Sem justificar, procuro entender por que fazia histórias que hoje não faria. Com o fim da ditadura, veio o fim da censura, então a gente estava desafiando tudo”, disse. Ela ponderou que, como naquela época, já não se estava mais fazendo humor direcionado à luta política, surgiu o humor “que enfiava o dedo no olho de todo o mundo”. Como exemplo, O Planeta Diário, tabloide de humor publicado entre 1984 e 1992 e que daria origem ao grupo Casseta e Planeta.

“Quando você conta uma piada, muitas vezes você parte de um sujeito neutro. Mas quem está lendo lê do seu próprio ponto de vista, e essa plateia costumava ser a dos homens brancos, héteros, cisgênero. Então quando você introduzia qualquer modificação, precisava fazer um adendo: ‘um negro entrou no bar’, ‘uma mulher entrou no bar’. E quando uma mulher entra no bar, a piada passa a girar em torno da sexualidade dela”, explicou. Hoje, Laerte disse entender que começar uma história já não é mais começar uma história qualquer, “é sempre começar de algum ponto”. 

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