Duas vacinas da vida: recém-nascidos e poesia. Por José Ribamar Bessa Freire

No Taqui Pra Ti

“De sua formosura deixai-me que diga: é tão belo como um sim numa sala negativa”.
(João Cabral. Morte e Vida Severina. 1955)

Quase 300 mil mortes por covid no país desgovernado. Diz aí, Felipe Neto, como nominar o capitão que compra armas e não vacinas? Estamos sufocando e o exterminador do presente ainda debocha da nossa agonia. O noticiário amargura o nosso cotidiano. É um martírio assistir a contagem diária dos brasileiros mortos por asfixia em filas de hospitais lotados, sem medicamentos para intubá-los, enquanto o gado obtuso muge, desmascarado e cloroquinado. Milhares de famílias mergulhadas na dor. Impotentes e deprimidos, pranteamos os severinos do asfalto, os entes queridos que “vêm seguindo seu próprio enterro”.

Como resistir? Busco angustiado um fiapo de esperança, um fiozinho de alegria para enfrentar o desânimo e lutar contra a besta-fera. Eis que duas notícias surgem como “uma porta abrindo-se em mais saídas”. Uma é o nascimento de uma criança, a outra a edição de um livro, sinais de que a vida está pulsando. Quando ambos se juntam, nos dão munição para combater o desalento e a melancolia provocadas pela barbárie. O berço ocupado por um bebê e a poesia cantada constituem sempre lugares de refúgio. E de resistência.

O berço é o do Yupanki Bepkaety nascido nesta quarta (17) na Santa Casa de Belém do Pará, filho de Aline Ngrenhtabare Kayapó, no exato momento em que o pai, Edson Kayapó, paria mais um livro de literatura indígena. São dois belos motivos para lutar por um Brasil sem milicianos, igualmente de todos e não acima de tudo e nem abaixo de ninguém.

Presepadas do curumim

O primeiro nome do recém-nascido emana da família da avó materna proveniente do mundo andino peruano, de origem aimará e quéchua: Yupanki como Tupac, o décimo Inca. O segundo foi dado pelo avô, que é cacique Kayapó.

O ninho no qual dorme placidamente nos mostra Yupanki “belo como a coisa nova na prateleira até então vazia ou como o caderno novo, quando a gente principia”, replicando aqui imagens poéticas de Morte e Vida Severina, quando os vizinhos, no meio da miséria, celebram o nascimento do menino, que é “belo porque tem do novo o frescor e a alegria”.

Embora nem desconfie, Yupanki Bepkaety “corrompe com sangue novo a anemia” e “infecciona a miséria com vida nova e sadia”. O livro de seu pai, que está saindo do forno, também representa o novo contagiando o velho. Duas vacinas de vida. Essas, nenhum genocida nos impede de tomar.

 “Um estranho Espadarte na aldeia” da Editora Primata, com 72 páginas, foi ilustrado por Maurício Negro e prefaciado por este locutor que vos fala.  Seu autor, Edson Kayapó, 49 anos, filho da floresta e dos rios, nasceu no Amapá, na margem esquerda do rio Amazonas. Retirado da aldeia por missionários para viver num internato em Altamira, de lá saiu para cursar História na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Especializou-se em Historiografia da Amazônia na Universidade Federal do Amapá, fez o mestrado em História Social e o doutorado em Educação na PUC/SP. Ele tem tutano.

Coordenador por seis anos da Licenciatura Intercultura Indígena no Instituto Federal da Bahia, onde exerce a docência, Edson Kayapó é também professor credenciado e orientador de pesquisas de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Ensino e Relações Étnico-Raciais da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Escritor premiado pela UNESCO e pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), escreveu outros livros, entre os quais o autobiográfico “Projetos e presepadas de um curumim na Amazônia”. É coautor, junto com Aline, de “Nós – Uma antologia de literatura indígena”.  

Entre a aldeia e a academia 

Conhecido pela defesa dos povos originários, Edson Kayapó nos surpreende, quando faz incursões pela literatura a partir do seu trabalho acadêmico. Na dissertação de mestrado defendida em 2008, ele mergulhou na documentação sobre o presídio de Clevelândia do Norte (1924-1926), localizado na cidade de Oiapoque, fronteira com a Guiana Francesa, para onde o presidente Arthur Bernardes deportou centenas de sindicalistas, anarquistas, militares rebelados de baixa patente do movimento tenentista, menores abandonados, assassinos e suspeitos de “conspiração”. A área atualmente é uma base militar da 1ª Companhia de Fuzileiros de Selva do Exército brasileiro.

Um dos deportados é o personagem central de sua narrativa no terreno ficcional.  Trata-se do operário de uma fábrica de tecidos do Rio de Janeiro – um anarquista italiano, que liderou greves reivindicando a jornada de 8 horas de trabalho. Por isso, foi preso e deportado para o presídio de Clevelândia, de onde consegue fugir pela floresta até chegar na aldeia Karipuna às margens do rio Curipi. Lá recebe o apelido de Espadarte, por ser parecido com o peixe do mesmo nome.

A trama recria a história de contato dos indígenas dessa região com outros povos, suas relações de conflitos, formas de solidariedade e afetividades. Os acontecimentos históricos são articulados com as tradições orais dos povos do Oiapoque, em especial dos Karipuna e aborda questões de migrações, diferenças socioculturais e linguísticas, abertura para a alteridade e construção das redes de sociabilidade dos Karipuna, Palikur, Galibi Marworno e Galibi Kali’na.

Durante a permanência de Espadarte, a aldeia recebe visita dos índios do Acre, com suas roupas coloridas de algodão. O italiano prova a ayahuasca, que faz a floresta balançar como a folha do açaizeiro, complementado pelo rapé, que equilibra o balanço das mirações.

Cantos de cura

Deliciado com a culinária indígena, que inicialmente lhe pareceu estranha, o operário italiano saboreia a perema cozida no tucupi, a gurijuba assada na brasa, o açai com farinha d’água, o pirão escaldado da dona Loloca cozinhado em panela de barro, o café com beiju de tapioca, variadas frutas amazônicas e os sucos de taperebá e bacuri.

Dessa forma, o autor aproxima os leitores do universo cultural-cosmológico indígena e sua marcante geografia fluvial. Ali, somos levados à vida cotidiana e ritual da comunidade, sempre permeadas pelo invisível. Delicadamente, ouvimos os cantos de cura do pajé, acompanhados ao som de clarinetes e maracás, sentimos a presença dos karuanãs, imaginamos o sabor do caxixi. Sob a névoa de fumaça, naquele espaço sagrado do turé, somos plateia atenta, sentada nos bancos zoomorfos, dançamos, cantamos, vemos o céu iluminado por pequeninas estrelas. Algo inimaginável para quem vive nas paisagens cinzentas das cidades.

Entre cenas do cotidiano no vai e vem da aldeia, são reveladas memórias íntimas de Espadarte, algumas dolorosas, outras esperançosas. Curado pela medicina indígena, o contato com os índios contribui para desfazer os seus preconceitos e, eventualmente, os do próprio leitor.  

Os Karipuna, por sua vez, sabem que os conhecimentos não indígenas lhes servem para reforçar suas estratégias de luta, particularmente na defesa da floresta e de seus territórios. A narrativa do livro se desenvolve sem alternância de tempo, contudo o discurso ali presente encontra ressonância nas diversas vozes dos atuais movimentos indígenas e suas reivindicações por terra, cultura, saúde, educação.

Troca de olhares

Um estranho Espadarte na aldeia” nos permite olhar o mundo Karipuna ora com o olhar do estrangeiro, ora com a perspectiva das crianças, que se divertem com a gatinha Kuxika e o cachorro Tucupi, grande caçador de paca, tatu, cotia também. Em última análise, é uma história de intercâmbios culturais entre indígenas e não indígenas. Esse diálogo nos conduz a reflexões sobre a multiplicidade de culturas, línguas, modos de sentir e pensar, de se relacionar com aquilo que chamamos de natureza.

Desse modo, o livro permite uma troca de olhares, que pode ser de grande valia aos professores na implementação da Lei 11.645 de março de 2008, um espaço para introduzir a temática indígena em sala de aula.  Edson Kayapó, que já plantou muitas árvores e escreveu vários livros, renova nossas esperanças com o Espadarte, mas também com o nascimento de Yupanki.  

A raiz Yupay do nome escolhido tem o sentido de contar, narrar, segundo o Diccionario Quechua Cuzco-Collao, de Antonio Cusihuamán G. (pg. 163).  O nome Yupanki seria algo assim como ‘aquele que narra’.  Este narrador é um antídoto a tantas fakes news que atentam contra a humanidade. Que a nova leva de netaranas que está chegando nos redima de tantos demônios: Rita Charrua concebida em território Yanomami, Nathalia Potiguara, 7 meses, neta da escritora Eliane Potiguara e do cantor Taiguara e Júlia, a Bolachinha Molhada, que nesse momento está nascendo em Manaus, filha da Giza e do Pão Molhado.

Será sempre um eterno começo. Continuons le combat, ce n’est qu’un début.

P.S. – Sobre o atentado contra Edson Kayapó em 2013 ver: http://taquiprati.com.br/cronica/1051-os-tupinamba-os-jaguncos-e-os-amarildos-da-bahia

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