Na maior reserva indígena de MS, negacionistas afirmam que vacina é ‘marca do demônio’

Com cartilhas, educadores tentam combater ‘fakes’, que impediram mais de 40% dos moradores das aldeias de Dourados de tomarem a primeira dose da vacina contra o coronavírus

por Marcos Morandi, em Midiamax

Uso de cartilhas. O método é uma das alternativas encontradas por educadores para tentar diminuir os impactos das ‘fake news’  na maior Reserva Indígena Federal de Mato Grosso do Sul, localizada em Dourados. Por conta delas,  41,7% dos moradores da aldeias e retomadas  deixaram de tomar a vacina.

Levantamentos do Dsei (Distrito Sanitário Especial Indígena de Mato Grosso do Sul) revelam que até agora somente 5.630 indígenas foram imunizados, com a primeira dose, o que corresponde a 58,3%. Em relação à segunda dose, a situação não é diferente, com índices ainda mais baixos (7,8%), totalizando apenas 740 pessoas.

No início da pandemia, as cartilhas também foram usadas para orientar os moradores das aldeias a se conscientizarem da importância nos cuidados com a higiene. Entretanto, faltaram argumentos para contrapor as carências básicas, como falta de água potável para matar a sede e também para higienizar as mãos.

Passado mais de um ano da pandemia e dos primeiros casos de coronavírus, nas aldeias quase nada mudou. As dificuldades continuam batendo às portas das casas, que na maioria delas ainda abrigam até 9 pessoas em um único cômodo.

Se por um lado faltam moradias, por outro sobram templos evangélicos e grupos de fanáticos negacionistas.  Levantamento feitos por estudiosos no assunto, revelam que somente nas aldeias de Dourados existem mais de 80 igrejas das mais diversas denominações.

O que chama a atenção e ao mesmo tempo causa espanto é que de onde deveria brilhar a luz, o que predomina é a escuridão. Além das trevas da ignorância, das promessas que evaporam nas urnas, da fome que não acaba nas cestas pingadas e da água encanada que que só existe em mapas de engenharia guardados nas gavetas, alguns “crentes” propagam estórias inacreditáveis e abaladoras.

‘Marca da Besta’, do ‘Anticristo’

Entre os ‘fakes’ que correm nas aldeias de Dourados, como se fossem rastilhos de pólvoras, um já é bastante conhecido na comunidade. Diz a lenda, que quem tomar a vacina vai virar jacaré. “Essa é uma estória que vem sendo contada há algum tempo e que por mais que pareça uma brincadeira de criança, acabou assustando muitos adultos”, diz uma professora da Aldeia Jaguapiru.

Para não ser hostilizada, a educadora ouvida pelo Midiamax, que prefere ter a identidade preservada diz ainda que se a estória do jacaré, apesar de absurda já assusta, o terror espalhado por determinados grupos, formados na maioria por fanáticos que ainda acreditam que a doença não é real, causa pânico ainda maior.

“Muita gente aqui nas aldeias ficou apavorada depois de ouvir que a vacina é a representação do demônio. Esse tipo de mentira acaba influenciando negativamente e para alguns, diante da pressão, acaba virando verdade”, diz a professora.

Em conversa com outros moradores da Aldeia Bororó, que também faz parte da Reserva Federal de Dourados, a reportagem do Midiamax constatou que a fonte dos boatos não está vinculada somente aos grupos evangélicos. “Faço parte de uma denominação evangélica onde o nosso pastor já está imunizado”, diz outra educadora, ressaltando que todos fiéis foram orientados a tomar a vacina.

Na avaliação do pesquisador da UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados), Neimar Machado de Sousa, a baixa adesão dos indígenas à vacinação está relacionada à vários fatores. Segundo ele, o governo não estava suficientemente preparado para uma vacinação em massa em tão pouco tempo.

Além disso, de acordo com o professor, no contexto da falta de campanhas mais objetivas e esclarecedoras, muitos boatos se espalharam nas aldeias e foram absorvidos por um grande número de pessoas. Estas notícias falsas sobre a vacina propagaram-se bastante entre os evangélicos, bastante numerosos nas aldeias, uma delas de que a vacina seria a ‘Marca da Besta’, do ‘Anticristo’.

Cabeças envenenadas

Se a vacina é o remédio que pode combater a doença, a cartilha é a esperança para restaurar a confiança na ciência, que além de rejeitada por fanáticos negacionistas, é disseminada como um mal que assombra culturas ancestrais.

“Estamos fase de finalização desse material e acreditamos que em breve ele estará nas mãos dos moradores da reserva. Essa cartilha demandou, além de pesquisas exaustivas, esforço e amor ao próximo”, relata o professor da UFG.

Além dele, que assina o projeto gráfico e também faz parte da organização e edição, a publicação envolveu Leninha Hilton (texto, ilustração, revisão e organização e edição), e Zenilton Fernandes (texto, organização e edição), Nilva da Silva (revisão), Christiane Aedo (revisão), Teodora de Souza (organização e edição) e Veronice Lovato Rossato (organização e edição).

Nas páginas da cartilha escrita em guarani e com versão em língua portuguesa, os educadores procuram decifrar os enigmas que ainda confundem o imaginário de muitos moradores das aldeias. Por meio de ilustrações e palavras alusivas à realidade indígena, surgem conselhos que, além de iluminar consciências, podem salvar vidas.

Para o rezador da aldeia Jaguapiru e guardião da Gwyra Nhe’engatu Amba, “Lugar onde o pássaro da Boa Palavra tem Assento”, Getúlio Juca, os boatos estão não contramão da espiritualidade indígena. No final do ano ele comandou um ritual religioso com a intenção de afastar a pandemia da reserva indígena.

“Essas notícias falsas brotam de cabeças envenenadas pelo mal e acabam encontrando morada nos corações de muitas pessoas. Temos é que combater esse tipo de coisa que não acrescenta nada para a nossa cultura. Nosso Deus é bom e se preocupa com todos”, conta o rezador. Ele e a esposa, Dona Alda, que também é rezadora, já tomaram as duas doses da vacina.

Reserva Indígena em Dourados, onde cerca de 40% dos moradores recusaram vacina | Foto: Marcos Morandi

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