Para antropóloga, é fundamental que a sociedade compreenda que o Estado não “dá” terras aos indígenas, mas apenas reconhece o direito originário da ocupação desses coletivos, e que as terras continuam sendo da União
Por: João Vitor Santos, em IHU On-Line
Passaram-se mais de 32 anos desde que a Constituição Federal foi promulgada e 27 anos do prazo limite para a demarcação dos territórios indígenas, segundo previsão da Carta Magna. Se por um lado a sanha da atual gestão federal, especialmente manifesta na postura de Bolsonaro, do vice General Mourão e do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em atacar os povos indígenas chegou a níveis obscenos, por outro, os governos anteriores abriram mão de avançar de forma consistente na pauta.
“Não devemos pensar que Bolsonaro, Mourão ou Salles são figuras que subitamente apareceram no cenário do que costumo chamar de ‘guerra fundiária brasileira’, com toda a sede de explorar as terras indígenas até a última gota, enquanto destilam ódio contra essas populações. Eles não surgiram do nada no cenário político, assim como a orientação deles nessa guerra, e a aderência que encontra, regional e localmente, também não é à toa. Realmente não podemos reduzir o problema apenas à perversidade de Bolsonaro, entre outros aspectos isolados”, pontua a antropóloga e doutoranda Luísa Pontes Molina em entrevista por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Com o desmonte dos órgãos de fiscalização, acelerado pelo atual governo, restou aos povos indígenas a proteção de suas terras de forma autônoma, o que traz riscos incalculáveis. “A realidade imposta aos povos indígenas é ter que resistir e garantir a proteção de suas terras de maneira autônoma. A resistência tem sido por meio de ações levadas a cabo pelos próprios indígenas para protegerem seus territórios: autodemarcações, retomadas de terras, vigilância contra invasões. São os indígenas que estão fazendo isso”, ressalta Molina.
“É importante entender que o Estado não ‘dá’ nenhuma terra indígena, ele reconhece a ocupação dos povos; tampouco a terra é propriedade dos indígenas, ela é de usufruto exclusivo desses povos, pois é propriedade da União”, explica a entrevistada. “As autodemarcações das terras indígenas são realizadas pelos próprios povos indígenas que tomam para si a iniciativa de demarcar os perímetros de seus territórios. Os indígenas fazem uma inversão no jogo, fazendo com que o Estado reconheça a terra indígena como figura administrativa”, complementa.
Luísa Pontes Molina é graduada em Ciências Sociais e mestra em Antropologia pela Universidade de Brasília – UnB. Atualmente é doutoranda em Antropologia Social na mesma universidade. É pesquisadora associada ao Projeto Terras indígenas e territórios conceituais: incursões etnográficas e controvérsias públicas – UnB/CNPq.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual sua leitura sobre a atual situação de terras indígenas no Brasil?
Luísa Molina – Como não poderia deixar de ser, a situação atual, em meio à pandemia de Covid-19 e sob o governo Bolsonaro, está ligada a um histórico mais longo da política indigenista no país e às próprias limitações “estruturais”, por assim dizer, da capacidade do Estado brasileiro de lidar com os problemas que afligem essas áreas e suas comunidades. Muitos desses problemas, aliás, em grande medida tiveram ou ainda têm substancial contribuição de órgãos e agentes do próprio Estado.
Enquanto a gestão Bolsonaro intensificou a ofensiva contra as terras e as vidas indígenas, a pandemia escancarou as condições às quais essas comunidades estão submetidas. Ao mesmo tempo que desmontava os órgãos de fiscalização ambiental e colocava na Fundação Nacional do Índio – Funai, no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – Mapa, no Ministério da Justiça e na própria Procuradoria Geral da República – PGR figuras alinhadas com interesses contrários aos dos indígenas — no que poderíamos considerar uma “ofensiva administrativa” —, Bolsonaro reforçou as investidas contra essas comunidades com o seu próprio discurso, por exemplo.
Não podemos menosprezar os efeitos locais de todo o complexo de imagens do fim da proteção a terras indígenas, unidades de conservação etc., e o fim do reconhecimento dos direitos indígenas, como o presidente vem esboçando desde a campanha. “Agora é Bolsonaro“, a gente ouve por aí (como eu ouvi em campo, no sudoeste do Pará), uma máxima que diz algo como “acabou esse negócio de terra indígena”. Isso sem falar no que o vice (Mourão) e os ministros dele falam e fazem… insistindo em um discurso assimilacionista, tal qual o de 50 anos atrás, sugerindo que os indígenas devem se integrar à sociedade (isto é, deixar de ser indígenas).
Como antes, esse discurso tem ligação estreita com uma cobiça territorial. Ricardo Salles (ministro do Meio Ambiente) não deixou dúvidas quanto a isso, ao incitar garimpeiros do Alto Tapajós a seguirem explorando as terras indígenas da região, em agosto de 2020. E Mourão logo fez coro, em sucessivos pronunciamentos. Mas não devemos pensar que Bolsonaro, Mourão ou Salles são figuras que subitamente apareceram no cenário do que costumo chamar de “guerra fundiária brasileira”, com toda a sede de explorar as terras indígenas até a última gota, enquanto destilam ódio contra essas populações. Eles não surgiram do nada no cenário político, assim como a orientação deles nessa guerra, e a aderência que encontra, regional e localmente, também não é à toa. Se pensarmos que este ainda é o país do latifúndio (dominado por brancos, como mostraram os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE no ano passado), e se levarmos em conta o peso da bancada ruralista no Congresso, por exemplo (algo que também tem um histórico importante de se analisar), já dá para ter alguma ideia de que realmente não podemos reduzir o problema apenas à perversidade de Bolsonaro, entre outros aspectos isolados.
Eu disse que Bolsonaro intensificou e a pandemia escancarou as condições de vulnerabilidade impostas às terras e aos povos indígenas no Brasil. Eu me refiro, primeiro, às diversas formas de violência que sofrem, tanto em termos de invasões territoriais como de assassinatos, entre outros (e recomendo a quem estiver lendo esta entrevista, conferir os relatórios anuais de violência contra os povos indígenas que o Conselho Indigenista Missionário – Cimi produz).
Mas também é preciso levar em conta a sanha colonizadora de determinados segmentos missionários; as dificuldades no atendimento à saúde (embora tenhamos um subsistema exemplar, em termos do seu desenho); as limitações do poder público de combater o crime organizado que também vitima as terras indígenas; as obras que são tocadas adiante, a despeito da obrigação do Estado brasileiro de consultar as comunidades afetadas… Temos visto todos esses elementos (e ainda outros) contribuindo, atualmente, para essa vulnerabilização atroz das terras indígenas.
Isso sem falar no dever constitucional de demarcá-las, que, conforme prometeu em campanha, Bolsonaro ignorou solenemente. E seus antecessores também não fizeram grandes avanços nesse sentido, é importante lembrar. Desde o primeiro mandato de Dilma, o número de homologações de terras indígenas (que é apenas a última de diversas etapas do processo de regularização fundiária dessas áreas) foi decrescendo a olhos vistos. E, como sabemos, terras ainda não formalmente reconhecidas pelo Estado são ainda mais suscetíveis às investidas não indígenas. Se mesmo em terras identificadas ou homologadas, as placas da Funai indicando a interdição são alvejadas com tiros de revólver etc., imagine a realidade daquelas que não são.
IHU On-Line – A mineração e o garimpo são as principais ameaças a terras indígenas atualmente? Por quê? E que ameaças são essas? Quais os efeitos do garimpo sobre a vida desses povos?
Luísa Molina – Se considerarmos que, em determinados contextos, as ameaças ocorrem de maneira consorciada, como, por exemplo, exploração de madeira e garimpo, exploração madeireira e grilagem etc., cada uma dessas ameaças precisa ser entendida no leque dos diversos aspectos que elas mobilizam. Em primeiro lugar é preciso entender que, quando falamos de garimpo, não se trata de uma atividade artesanal, mas de uma atividade mecanizada e com poder de destruição proporcional. Tudo que se falou em 2020 sobre o aumento do desmatamento em terras indígenas com a corrida do ouro ou o surto da garimpagem ilustra o poder de destruição destes garimpos altamente mecanizados. Passam por aí os saltos vertiginosos de desmatamento de uma terra indígena de um ano para o outro – ou de um mês para o outro, dependendo do contexto – e isso chama atenção para o fato de que o garimpo mecanizado de perfil empresarial se aproxima muito mais de uma mineração de menor porte do que de um garimpo artesanal.
Os danos dessas atividades são diversos. O próprio desmatamento causa uma série de outros problemas em cadeia – questões de saúde, aquecimento, impactos nas casas dos indígenas. Há outros problemas de saúde graves, por exemplo, os ligados ao mercúrio e nesse contexto há pesquisas importantes, tanto na região do rio Tapajós com os Munduruku, bem como entre os Yanomami, com estudos feitos pela Fiocruz. Sabemos que a atividade garimpeira com o mercúrio promove danos à saúde e isso está ligado à separação do ouro: o esforço de revolver o solo faz com que o mercúrio entre na cadeia alimentar de peixes, que são ingeridos por outros peixes, que são consumidos por indígenas. Os danos no nível social estão ligados às questões de segurança das comunidades, que têm suas lideranças ameaçadas, muita pressão sobre os territórios, aliciamento de pessoas para esta atividade etc. Dentre os diversos problemas suscitados pelas investidas garimpeiras estão, por exemplo, as ameaças a essas comunidades e o rompimento de laços importantes. Tudo isso é proveniente da corrida às terras indígenas e à cobiça das riquezas desses territórios.
Já a mineração de grande escala nos leva a tratar de uma série de outros problemas. Estes dizem respeito ao impacto direto nas bases da vida dos povos indígenas, porque afetam as práticas tradicionais de caça e de pesca, o cultivo, a limitação de acesso a determinadas áreas do território, quando não da própria expulsão dos indígenas de seu território. Sem falar que as instalações do que se chama “empreendimento” provocam corrida às localidades mais próximas, aumento de população e todos os problemas sociais que decorrem disso. É difícil resumir, em poucas palavras, e por isso é sempre mais produtivo pintar um panorama dos problemas provenientes destas atividades.
IHU On-Line – Muitos defendem que a regularização de garimpos ilegais frearia os ataques sobre comunidades indígenas. Você concorda? Por quê?
Luísa Molina – Não concordo. Trata-se de um argumento totalmente falacioso por parte daqueles que querem explorar as terras indígenas. Sabemos que o Estado só começou a ter alguma noção da dimensão das atividades ilícitas recentemente, ainda assim de modo muito pontual, como investigações sobre como se faz para “esquentar” o ouro, ou seja, torná-lo “legal” mesmo tendo origem em garimpo ilegal. O Estado não é capaz nem de perceber toda a capilarização do garimpo em terras indígenas, como ele vai resolver? Se isso acontecer vai se transformar em uma corrida às terras indígenas que vai deteriorar completamente as áreas, descumprir totalmente o propósito da Constituição Federal, que prevê a demarcação desses territórios, de modo que se permita que esses indígenas possam viver com seus costumes e tradições. Uma área infestada por garimpos inviabiliza isso.
Essa tentativa de regularizar garimpo em terra indígena não é nem tapar o sol com a peneira, é tentar fazer uma mentira colar. O Estado não tem sequer a capacidade de entender a dimensão e extensão do problema, portanto uma hipótese como esta só vai produzir um problema impossível de ser administrado. Qualquer solução, antes de tudo, passa pelo reconhecimento de que os indígenas têm o direito originário às terras que ocupam, como prevê a Constituição. Este direito está celebrado como “direito à diferença”, ou seja, de continuarem vivendo segundo seus próprios costumes, usos e tradições. Primeiro é necessário entender que o garimpo vai inviabilizar isso, depois entender a dimensão do problema, que é a viabilização e a exploração dentro dessas terras, para, só então, começar a discutir o problema, e não dizer que se é ilegal a solução seria legalizar.
IHU On-Line – Ao mesmo tempo que parece ser complacente com a mineração, o governo proporciona desmontes em órgãos voltados à atenção dos povos indígenas. Como tem sido feita a resistência a essas investidas?
Luísa Molina – O desmonte dos órgãos de fiscalização, como também da Funai, se intensificou com o atual governo, mas, ao menos no que toca à Funai, o problema vem de mais tempo. A realidade imposta aos povos indígenas é ter que resistir e garantir a proteção de suas terras de maneira autônoma. A resistência tem sido por meio de ações levadas a cabo pelos próprios indígenas para protegerem seus territórios: autodemarcações, retomadas de terras, vigilância contra invasões. São os indígenas que estão fazendo isso. O Estado cria um problema, isto é, a incapacidade de proteger estas terras, o que é seu dever, e impele os indígenas a se protegerem por conta própria, mas em uma condição de assimetria terrível.
Há garimpos financiados por grandes empresários, com capacidade de compra de equipamentos entre R$ 500 mil e R$ 1 milhão, aliás, equipamentos que são rapidamente repostos quando ocorrem operações de destruição. Além de tudo isso, todas essas coisas fazem circular por dentro dos garimpos muitas armas, e os indígenas, quando vão fazer suas ações, enfrentam o outro lado que está completamente armado. Precisamos estar atentos a essas assimetrias, porque os indígenas estão colocando a própria vida em risco por não terem o amparo dos órgãos do poder público como deveriam ter. É dever do Estado proteger e demarcar os territórios indígenas. Essas ações autônomas, diante do histórico desmonte dos órgãos de proteção, intensificado no atual contexto, colocam os indígenas diante de um risco muito grande. O que está em jogo é a própria vida das comunidades. É ficar entre a cruz e a espada.
IHU On-Line – Na pandemia, muitas comunidades indígenas denunciaram que o vírus foi levado às comunidades por garimpeiros e madeireiros. Como você tem acompanhado essa questão? Que relatos têm chegado?
Luísa Molina – Tenho acompanhado junto com os Munduruku do Tapajós, por meio de aulas públicas, documentos e reuniões. A presença do garimpo nesses territórios tem contribuído para a circulação do vírus, porque quando as pessoas vão à cidade para fazer uma compra, acabam tendo contato com o vírus. No contexto do Tapajós, a relação entre as ações garimpeiras na disseminação do vírus é direta. Estamos, por exemplo, tratando de duas terras indígenas do Alto Tapajós que foram bombardeadas por invasões garimpeiras em 2020 por conta, justamente, dessa corrida devido ao aumento do preço do ouro. Os Munduruku têm falado que, quando aumenta a pressão do garimpo, aumenta a quantidade de não indígenas circulando no território e, com isso, o vírus circula.
IHU On-Line – Quais são as principais demandas hoje para a proteção de terras indígenas no Brasil?
Luísa Molina – Além de não demarcar as terras indígenas, o que, segundo prevê a Constituição, deveria ter sido feito nos cinco anos subsequentes à promulgação, os processos de regularização fundiária se estendem por décadas. Temos muitas terras com demarcação pendente e processos abertos, o que vulnerabiliza muito a situação desses territórios, pois os não indígenas ignoram que mesmo sem a homologação é, sim, uma terra indígena. Somente homologar os territórios não é a solução, é preciso proteger e fiscalizar, mas a situação das terras não demarcadas é muito pior.
Como vimos nos recentes dados divulgados pelo Cimi, o segundo ponto mais crítico são as invasões, que tiveram um aumento alarmante. Essas invasões contam com atores ligados a vários segmentos de exploração, grilagem, mineração. A proteção contra estas invasões é mais que urgente, mas percebemos que a capacidade de proteção do Estado está muito aquém da necessidade, vide as operações realizadas em 2020. Houve gente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – Ibama sendo exonerada quando foi destruído maquinário de garimpo; teve terra indígena com megaoperação agendada, mas a informação vazou e os garimpeiros esconderam o material antes de a Polícia Federal chegar… e por aí vai. O poder público precisa olhar para as próprias limitações, tanto de sua estrutura quanto da vontade política de cuidar da proteção. Lidar com o crime organizado da madeira, da exploração mineral, da grilagem, enfim, destas diversas frentes, significa olhar para os vários braços que permitem que essas atividades sejam realizadas dentro das terras indígenas.
Para combater a garimpagem ilegal é preciso olhar para quem financia a atividade, os grandes empresários que estão por trás dela. É preciso também olhar para os fornecedores dos maquinários, os fornecedores de combustível, os sujeitos dentro da política que viabilizam, apoiam, fazem lobby, ou seja, olhar para os vários aspectos que estão envolvidos nisso e não, simplesmente, fazer ações pontuais. As operações são muito importantes, mas precisam estar casadas com uma série de outras medidas. Por outro lado, os diversos órgãos do poder público precisam trabalhar de forma articulada, porque sabemos que o Ministério Público precisa entrar com uma série de ações articuladas para obrigar os órgãos a reagirem e executarem as operações, por exemplo.
IHU On-Line – Você estudou a autodemarcação. Gostaria que detalhasse esse conceito e o analisasse em perspectiva com a legislação atual sobre demarcação de terras indígenas.
Luísa Molina – O processo de regularização fundiária das terras indígenas é composto por uma série de etapas, regido por normas próprias. A demarcação começa no momento da identificação e delimitação da terra indígena por um grupo de trabalho da Funai, que fará estudos para reconhecer a ocupação tradicional da terra pelo povo, e para isso há parâmetros que são regidos por uma portaria do Ministério da Justiça. O documento que resulta desse processo, na verdade uma peça jurídica chamada “Relatório circunstanciado de identificação e delimitação”, vai atestar a ocupação tradicional e delimitar os perímetros da terra em questão. Depois que o relatório é aprovado pela Funai, o processo é encaminhado ao Ministério da Justiça e a terra se torna declarada, por meio de portaria desse Ministério, e aí se passa para a demarcação física de seus limites.
Antes da portaria declaratória, esta terra pode ser contestada por quem se sentir lesado pelo processo de demarcação. Essas contestações são respondidas pelo órgão indigenista, pela Funai, e depois o processo é enviado à declaração e à abertura de piques, em marcos estipulados no contorno das terras, para a demarcação dos territórios. Em seguida passa à presidência da República, que deve publicar um decreto de homologação. Essa homologação encerra o procedimento de reconhecimento formal por parte do Estado e é feito um registro da terra dentro do patrimônio da União. É importante entender que o Estado não “dá” nenhuma terra indígena, ele reconhece a ocupação dos povos; tampouco a terra é propriedade dos indígenas, ela é de usufruto exclusivo desses povos, pois é propriedade da União.
As autodemarcações das terras indígenas são realizadas pelos próprios povos indígenas que tomam para si a iniciativa de demarcar os perímetros de seus territórios. Isso é feito porque o Estado não cumpre seu processo administrativo, está sempre atropelado por uma série de interesses contrários e pressões de diversas ordens e por diversos atores. Nesse contexto, que é sempre um contexto de conflito, a autodemarcação dos povos indígenas inclui a demarcação física de forma autônoma, identificando com placas que aquela é uma área indígena, e o monitoramento frequente desses limites.
Na minha dissertação de mestrado eu parti de um caso específico, que tomei como fio condutor, e analisei outros casos. Na pesquisa a terra indígena foi a Sawre Muybu, do povo Munduruku do Médio Tapajós, que chama o território de Daje Kapap Eipi, por conta de ter lá dentro um lugar que eles consideram sagrado. O estudo da Funai, atestando a tradicionalidade da ocupação da terra, estava pronto desde 2013, mas tinha um complexo de hidrelétricas sendo projetado para a região, sendo que uma das hidrelétricas incidia sobre o território.
Havia muitos atores diferentes interessados, desde grupos de empresários chineses ligados ao setor elétrico até os grupos dos “grandes empreendimentos”, passando por setores do agronegócio, com interesse em transformar os trechos “cachoeirados” do rio Tapajós em hidrovia para transporte de soja de Mato Grosso para o Norte do Brasil. Sem contar o interesse de empreiteiras nas obras, mineradoras que vêm na esteira da hidrelétrica, como está acontecendo com Belo Monte e Belo Sun, no Xingu.
Tudo isso está interligado, a ponto de a então presidente da Funai admitir, para os Munduruku, que a publicação da identificação e delimitação da terra por parte do órgão não estava sendo feita porque seria um atestado de que o Estado brasileiro reconhecia a tradicionalidade da ocupação indígena ali. O relatório foi vazado e os Munduruku, de posse dele, fizeram a abertura das picadas por conta própria. Como eles, outros povos fizeram, em diferentes momentos da história do país e da política indigenista, ações autônomas de demarcação de suas terras. Entre os casos que analisei está o da Terra Indígena Alto Rio Purus, com os povos Kaxinawá e Kulina, que começaram [a autodemarcação] nos anos 1980. Depois a Terra Indígena Kulina do Médio Juruá, do povo Indígena Kulina, o que ocorreu anos depois em um processo com uma série das chamadas “demarcações participativas” em uma cooperação internacional, envolvendo uma agência alemã que estava fomentando um programa de demarcação de terras indígenas. Tratava-se de um contexto de pressão internacional sobre o Brasil, nos anos 1990, para a proteção do meio ambiente e das áreas protegidas. Outro caso foi o da Terra Indígena Wajãpi.
Particularmente não acho produtivo distinguir as demarcações em participativas ou autodemarcações porque não cabe a um não indígena determinar níveis de autonomia do povo indígena dentro de um determinado processo. Entendo que é mais interessante compreender quais são os efeitos sobre esses processos em que há a participação ou a atuação dos indígenas.
Proponho pensar a autodemarcação não a partir de um gradiente de participação, mas das transformações que a participação dos indígenas promove dentro do jogo político no qual essas demarcações e autodemarcações estão implicadas. Quando um povo toma para si esta atividade de demarcar a terra, está forçando que o Estado reconheça sob seus próprios termos a terra indígena como uma figura administrativa criada pelo próprio Estado. Para os indígenas, essa medida é uma invenção de controle do território por parte de uma instituição que é alheia a eles. Tudo, antes, era terra indígena. Foi a partir da invasão, da colonização e da tomada das terras por não indígenas que a figura da terra indígena passou a existir. Os indígenas fazem uma inversão no jogo, fazendo com que o Estado reconheça a terra indígena como figura administrativa. É mais ou menos isso o que proponho.
IHU On-Line – O que o Marco Temporal representa para as políticas de demarcação de terras para indígenas e para as próprias comunidades?
Luísa Molina – O “Marco Temporal” é um artifício em torno de um contexto de conflito e interesses em torno das terras indígenas. É uma estratégia que serve para tentar restringir o direito originário que os povos indígenas têm às terras. Trata-se de um direito que precede a Constituição e o próprio Estado. Ao fixar uma data específica, a tese do Marco Temporal, tenta-se argumentar que se os indígenas não ocupavam o território eles não teriam direito de ter a terra reconhecida como sua. Isso é absurdo por uma série de motivos.
Sem entrar em meandros jurídicos da situação, que inclusive não é minha área, precisamos levar em conta elementos históricos, como, por exemplo, as investidas colonizadoras que nunca cessaram, o que em praticamente sua totalidade leva à expulsão dos povos indígenas das suas terras. Isso produz violência física que serve para dizimar comunidades. Outro ponto é que os povos indígenas têm dinâmicas próprias de mobilidade e há particularidades nos modos de ocupar a terra. Tentar exigir desses povos padrões de assentamento alheios às suas formas tradicionais é, no mínimo, etnocêntrico. Temos conhecimento de muitos povos que têm o costume de habitar suas terras por meio de regimes sazonais ou que têm uma série de outros elementos de suas cosmologias e das suas maneiras de se constituir como coletivo distinto. Também há grupos que têm o hábito de abandonar uma aldeia quando morre uma pessoa. Então as maneiras de habitar são diversas e essa diversidade constitui a tradicionalidade do que significa o habitar de cada povo. Um reconhecimento dessa tradicionalidade, como parte do processo de demarcação de uma terra, precisa levar em consideração os próprios modos indígenas de viver.
O Marco Temporal não só fixa a ocupação em determinado tempo, como supõe que a ocupação é feita de determinado modo. Mas, como sabemos, há pesquisas antropológicas e históricas de longa data, mostrando que os modos indígenas de se relacionar com a terra, produzir memória da terra e se constituir a partir dessa memória e desses vínculos, são diversos. Negar a eles esse direito é, sim, sem tirar nem pôr, uma medida genocida. Estar na terra é um aspecto fundamental para a constituição desses coletivos como grupos distintos. Negar o acesso à terra é submetê-los à condição de morte. Quando sublinhamos o aspecto vital que as terras indígenas têm para esses povos que a habitam, estamos dizendo que é da ordem de vida ou morte o risco de perdê-las. O Marco Temporal coloca esse risco no centro da questão.
IHU On-Line – O que os povos originários podem nos ensinar sobre os usos de recursos naturais, especialmente os tão cobiçados minerais?
Luísa Molina – Essa pergunta é muito vasta, porque cada povo ensina coisas diferentes, desde suas próprias filosofias. Mas há alguns aspectos gerais. Os indígenas nos mostram outras imagens de relação com a terra e o território que não aquelas que o nosso mundo capitalista produz e multiplica. São imagens que não partem do esgotamento dos ditos “recursos naturais”. Inclusive essa ideia restrita de “recursos”, que a gente utiliza, corta uma série de relações que os indígenas estabelecem.
Aquilo que chamamos de recursos, para os povos indígenas é uma série de outras coisas. O rio é morada de seres e espíritos que estão ali e a importância cosmológica deles vai variar de acordo com a etnia. Para os Munduruku, por exemplo, é fonte de vida e morada de espíritos, o rio abriga lugares sagrados etc. Para outros povos, como os Krenak, o rio é um avô, tal como se referem ao Rio Doce. Existe uma multiplicidade de vida na cosmovisão indígena em que, em nosso mundo, chamamos apenas de recurso. Para que possamos começar a pensar sobre o que os povos indígenas nos ensinam é importante entender que aquilo que chamamos “recurso” tem ação, agência sobre o mundo.
Determinados elementos, como, por exemplo, os metais, não existem sozinhos. Eles têm história, têm conexão com a mitologia, a cosmologia. Para os Yanomami, o metal (e o ouro) foi colocado no fundo da terra pelo criador Omama porque ele precisa ficar ali, se ele for retirado pode fazer muito mal, por conta da fumaça tóxica que envenena e mata. Há espíritos ligados a isso e é preciso mantê-los escondidos. Outros povos vão entender de uma série de outras coisas. É importante saber que estamos falando de elementos que passam por diversas outras relações e que o nosso pensamento não indígena reduz essa visão, cortando, reduzindo e deixando de ver um conjunto de coisas. Então quando expropriamos os povos de suas terras, seus rios e florestas, também estamos cortando essas relações.
IHU On-Line – Vivemos uma crise pandêmica que tem relação direta com a catástrofe ambiental. Como a preservação de terras indígenas pode contribuir para mitigar essa catástrofe e enfrentar esse estado de crises?
Luísa Molina – Responder a essa questão demanda a abordagem de alguns elementos técnicos que fogem da minha alçada. Entendo que neste momento de catástrofe ambiental, os modos indígenas de cuidar da terra, ou seja, de partir do entendimento de que a vida é compartilhada pelos diversos seres que a habitam, é uma chave para repensarmos e recolocarmos nossas questões. Isso tudo nos ajuda a reelaborar soluções, colocando em outras bases nosso próprio modo de vida, que é voltado para a exaustão da terra, para um consumo desenfreado e o atropelo de outros modos de vida. Essa mudança tem ligação direta com a necessidade de manter as florestas em pé, os territórios livres da mineração, os rios livres de hidrelétricas, colocar um limite na investida do agronegócio e por aí vai. A resposta é muito vasta, mas a ideia é que a gente precisa sair do nosso umbigo e entender que outros modos de vida indicam outras possibilidades de vida.
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Agentes do Ibama desativam garimpo na Terra Indígena Tenharim do Igarapé Preto, no Amazonas. Foto: Ibama