Tragédia e farsa no Rio Verde, um território caiçara na Jureia

Fundação para a Conservação e a Produção Florestal do Estado de São Paulo (Fundação Florestal) afirma que o Rio Verde é área intocada, e que não existem famílias caiçaras no local

Por Andrew Toshio Hayama, Antônio Carlos S’Antana Diegues, Carlos Marés e Manuela Carneiro da Cunha, no Le Monde Diplomatique Brasil

Na região da Jureia, estado de São Paulo, caiçaras se aliaram a ambientalistas na luta contra políticas desenvolvimentistas que ameaçavam a área mais bem preservada de Mata Atlântica do Brasil. As comunidades caiçaras apoiaram, em 1986, a criação de Estação Ecológica sobre um vasto território tradicional, convencidas de que ali se instituiria um santuário ecológico que protegeria, ao mesmo tempo, a natureza e os modos de vida tradicionais.

Trágica aos caiçaras, a Estação Ecológica significou a criminalização de atividades tradicionais sustentáveis, fundamentais à sua subsistência, como a pesca artesanal, a coleta e a prática de roça itinerante. Também foi responsável pela desestruturação de políticas sociais, gerando o fechamento de escolas, postos de saúde e abandono das vias de acesso.

O resultado, que fornece a dimensão da tragédia, foi o esvaziamento de treze núcleos comunitários em toda a região da Jureia e, nos territórios caiçaras do Rio Verde, Grajaúna e Praia do Una, uma taxa de emigração de mais de 80%.

Agora, a história se repete na postura negacionista da Fundação para a Conservação e a Produção Florestal do Estado de São Paulo (Fundação Florestal) que afirma que o Rio Verde é área intocada, e que não existem famílias caiçaras no local.[1]

Repete-se a farsa, agora como embuste. A Fundação Florestal nega, a partir de critérios unilaterais de heteroidentificação, fundados numa visão ambientalmente racista, a condição caiçara e o vínculo territorial de famílias cujos parentes diretos continuam, com ciência do próprio órgão ambiental, a morar no Rio Verde/Grajaúna.

Também retorna a história como engano, quando a Fundação Florestal argumenta que as novas famílias de Heber e Marcos[2] praticam ilegalidades ao exercerem direito de moradia, expressamente previsto nos artigos 6º e 7º da Lei estadual nº 14.982/2013, fruto de longa articulação e mobilização da luta caiçara para a regularização da permanência de comunidades tradicionais na Jureia.

Se repete também como perversidade, quando a Fundação Florestal, em atitude ambígua, certamente por não conseguir escapar totalmente da verdade, de forma “generosa”, sugere como alternativa ao conflito a concessão de moradia às novas famílias nas áreas de Reserva de Desenvolvimento Sustentável, adotando lógica de confinamento e guetização, que viola direitos fundamentais e os próprios objetivos da conservação ambiental.

Ao mesmo tempo em que expulsa caiçaras de território tradicional, a pretexto da proteção da natureza, entrega Unidades de Conservação de Proteção Integral à iniciativa privada, para a exploração de turismo empresarial de massa.

“A mentira é mais cômoda que a dúvida, mais útil que o amor, mais perdurável que a verdade”, estrebuchava o Patriarca, personagem de Gabriel García Márquez, em seu O outono do patriarca. Enfrentemos, então, o outono que chega e celebremos o seu fim.

Andrew Toshio Hayama, Defensor Público, Mestre em Direito Socioambiental pela PUCPR e Doutorando em Direito Agrário pela UFG.

Antônio Carlos S’Antana Diegues, Sociólogo, Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da USP, Pesquisador Sênior do NUPAUB/USP, co-ganhador do Prêmio Nobel da Paz, concedido, em 1981, ao Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados.

Carlos Marés, Professor Titular de Direito Socioambiental da PUCPR e colaborador convidado nas Universidades Federal de Goiás e Autônoma de San Luis Potosi (México).

Manuela Carneiro da Cunha, Antropóloga, Professora aposentada da Universidade de São Paulo e emérita da Universidade de Chicago.

[1] Em julho de 2019, a Fundação Florestal, com base em Parecer da Procuradoria do Estado, promoveu procedimento administrativo de autotutela possessória, ou seja, sem prévia autorização judicial, demolindo duas casas de famílias caiçaras e realizando a expulsão forçada delas do Território Tradicional do Rio Verde, sobreposto pela Estação Ecológica da Jureia-Itatins, sob o argumento (ilegal, na perspectiva da Defensoria Pública) de que não possuiriam direito de moradia na área.

[2] Heber do Prado Carneiro e Marcos Venicius de Souza Prado, primos e ambos filhos de caiçaras que viveram no Rio Verde, foram expulsos pela ação da Fundação Florestal em 2019 e ingressaram, em março de 2021, com medidas judiciais, promovidas pela Defensoria Pública, para retornarem ao Rio Verde e reconstruírem suas habitações demolidas.

Imagem: Heber do Prado e Vanessa Muniz seguram faixa afirmando a resistência caiçara, no local onde havia sua residência, demolida pelo Estado de SP. Foto: Ivy Wiens

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