“O vírus é caótico, mas não é democrático”. Entrevista com Boaventura de Sousa Santos

O mais influente sociólogo português no mundo acabou de publicar um novo livro, “O Futuro Começa Agorada Pandemia à Utopia”. Nesta obra, Boaventura de Sousa Santos defende que o vírus traz uma mensagem. E que é preciso aprender com as mortes que provoca, para que elas não se repitam.

A entrevista é de Nuno Ramos de Almeida, publicada por O Contacto-Luxemburger Wort / IHU On-Line

Eis a entrevista.

Diz que foi o livro mais rápido que escreveu.

Foi o livro mais rápido que escrevi, porque foi escrito durante a pandemia para tentar responder às perplexidades que o vírus causa em mim e em muita gente. Pela surpresa como a pandemia surgiu e se difundiu. E surpresa também por todo o desconhecimento que havia, nomeadamente dos países mais desenvolvidos que, supostamente, têm mais capacidade científica. Verificou-se que eram os que estavam menos preparados para responder à pandemia.

Ficamos na posição dos indígenas do século XVI das Américas. Quando chegaram os portugueses e os espanhóis, eram portadores do vírus da varíola, para qual os indígenas não eram imunes. A nossa diferença é que temos capacidade para tomar outras medidas, não houve essa “guerra biológica“, e agora vamos ter vacinas. Mas a verdade é que o país mais desenvolvido do mundo, os Estados Unidos da América, habituado a invadir países, quando foi invadido pelo vírus não produzia as coisas mais elementares que eram máscaras, luvas e outras, como ventiladores.

Escreve a certa altura no livro, que concorda com o historiador Hobsbawm, no sentido que os séculos não começam historicamente no seu primeiro ano e acabam no centésimo, mas começam num acontecimento que abre uma era, e terminam em um que a muda. No seu entender, o século XXI não começou com a crise financeira, mas com o aparecimento do coronavírus?

covid19 muda completamente as nossas formas de relacionamento e de relações sociais, muito mais do que podemos imaginar agora. Por enquanto, estamos na fase aguda da pandemia, numa altura em que só se pensa em resolver a emergência sanitária e conseguir as vacinas. Mas sabemos que o modelo de desenvolvimento que temos atualmente, que é extremamente agressivo à natureza, desestabiliza os habitats dos animais selvagens com o desmatamento da Amazônia, a poluição dos rios, a ampliação da fronteira agrícola. Ao desestabilizar esses habitats, muitos dos vírus que circulam entre os animais selvagens, sem problema algum, passam para os humanos que não estão imunes. O que significa que vamos entrar numa época de pandemia intermitente.

Não menosprezo a importância que teve a crise financeira, há outros que mencionam, também, a queda das Torres Gêmeas, em 2001, como o início do século. Foram momentos importantes, mas não tiveram este impacto, dado que a pandemia atingiu rapidamente todo o mundo, colocando a humanidade no mesmo barco no que diz respeito à infeção.

Embora neste navio, aqueles que vão nas cabines superiores, da classe média alta para cima, estão em melhores condições de sobreviver. O vírus é caótico, mas não é democrático. Basta ver as taxas de letalidade, nos Estados Unidos e no Brasil, em que negros e pobres são a grande porcentagem das vítimas mortais da covid19. No livro, eu comparo dois bairros da região de São Paulo, o Morumbi, de classe média alta, e o Campo Limpo, uma favela em que vive o Guilherme Bolos. Nesses dois locais, a taxa de mortalidade varia entre 2% na localidade mais rica e 60% na mais pobre. Não há comparação possível.

No livro, usa a metáfora de que o vírus tem uma inteligência e uma mensagem, que não só precisamos traduzir, como até expressa uma pedagogia que temos que perceber.

Acho que ele nos ensina algo. É uma pedagogia cruel, como escrevo, ensina, matando. Mas está dando uma lição que é uma mensagem da natureza, a dizer que se continuarmos com este modelo de desenvolvimento, temos de nos preparar para mais pandemias. A vida humana do planeta é 0,01% da vida total da Terra. No entanto, desde ao menos o século XIX, as alterações climáticas e outras mais graves são causadas pela ação humana. Não é a mesma coisa que os meteoritos que destruíram os dinossauros. Se continuamos com este padrão de consumo, a vida humana será cada vez mais precária e difícil.

Como digo na segunda parte do livro, o meu computador poderia durar dez anos, o meu celular poderia aguentar o mesmo tempo, o meu relógio poderia durar toda a vida, como duravam antes, mas nós estamos na época da obsolescência programada para maximizar o consumo e garantir os lucros dos superricos.

vírus nos ensina que este modelo é extraordinariamente desequilibrado e coloca em xeque a nossa sobrevivência. No planeta, vivemos numa faixa relativamente pequena, na qual é possível vida humana. Não estou falando dos esquimós do Polo Norte, mas das populações que estão em zonas que oscilam entre os 20 negativos, com condições, e os 40 a 45 graus positivos. O que acontece é que esta faixa está diminuindo em termos de habitabilidade. Há cada vez mais zonas muito frias e zonas muito mais quentes. O aquecimento global é desigual e cria desequilíbrios.

covid19 emite um sinal de que não só viveremos com pandemias intermitentes, como também teremos, se continuarmos neste caminho, ondas crescentes de refugiados ambientais. É por isso que acho que é errada a metáfora inicial de que estamos numa guerra e que o vírus é o inimigo. Precisamos de vírus e bactérias para viver. O nosso inimigo são as condições em que vivemos que fazem com que estes fenômenos se tornem cada vez mais graves.

Critica o filósofo italiano Agamben pela utilização da ideia da generalização do Estado de exceção, e o filósofo esloveno Žižek pela ideia de que o vírus “força” a uma passagem para formas de sociedade mais comunistas. Mas, ao mesmo tempo que critica, diz que a pandemia facilita uma pulsão autoritária e que para resolvermos esta situação temos de conseguir ter outro paradigma civilizacional.

O meu debate com Agamben tem um aspecto que não se fala muito. Se ler Pasolini, como eu li, nele já existe grande parte daquilo que diz Agamben. Ele aliás foi até ator de Pasolini, na sua juventude. A sua ideia de Estado de exceção não está desligada do fato de quando Pasolini morre ter 33 processos contra ele. A Itália daquele momento tinha, de fato, um comportamento de um Estado de exceção permanente.

Mas eu, nesta pandemia, quis distinguir o comportamento do Estado português, por exemplo, dos estados húngaro, do Azerbaijão e da Índia. Aí os governantes usaram a pandemia para aumentar, sem limites, os seus poderes. Houve estados, como o caso do Brasil, que promoveram um genocídio por ausência de políticas sanitárias.

No caso de Žižek, a minha divergência está em que eu acho que precisamos de um novo paradigma, mas não creio que seja o comunista. Sou um homem das epistemologias do sul, regiões em que a palavra comunismo não significa nada, ou pode confundir-se com o comunalismo de Narendra Modi, que ainda é pior, ou a vida comunal dos povos indígenas.

Comunismo foi a solução encontrada na Europa, que temos que analisar, e que não a podemos colocar ao nível do nazismo, como faz a extrema-direita, mas que teve os seus problemas e que precisa ser reinventado. Eu continuo sendo um socialista, mas um socialista intercultural, que tem de saber lidar com pessoas que não se declaram socialistas, mas que têm os mesmos objetivos que eu.

Faz algum sentido falar que há um Norte ou um Sul global, quando hoje parece que o capitalismo está em todo o lado? Antigamente líamos o Corto Maltese e havia sempre uma ilha escondida em que tudo podia ser diferente, onde se podia reinventar o mundo longe do resto. Hoje isso é possível?

Nos meus últimos trabalhos eu distingo três formas de emergência e de soluções alternativas em um tempo de transição: uma são as zonas libertadas; outra são as apropriações contrahegemônicas, isto é começar a lutar pelos direitos humanos a sério, mas não da forma oficial que é uma espécie de política de hegemonia dominante; e a outra ir às raízes, ruínas e sementes, que é o caso de algumas ideias indígenas que não estão nas Constituições da Bolívia e do Equador. São algumas formas de pensar o futuro.

Há um Norte, aquele que comanda a globalização, e as três dominações que eu distingo: o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. As últimas duas, embora com relativa autonomia, estão a serviço da primeira, o capitalismo. Vê-se que na área da tecnologia dominam cinco empresas que estão nos Estados Unidos. No setor financeiro, há 25 empresas que dominam, sobretudo norte-americanas, com algumas europeias. Este Norte e Sul não é definido apenas geograficamente, mas nas relações de poder no sistema mundial.

O Norte e o Sul não estão em todo lugar? Quando estamos nas cidades dos Estados Unidos ocupadas por pessoas sem-teto, não estamos numa espécie de Sul que está no Norte? E quando estamos em Dubai, no meio dessa espécie de Disneylândia do consumo, não estamos num Norte que está no Sul?

Concordo inteiramente com você. Digo aliás que há um Sul dentro do Norte e um Norte dentro do Sul. Em determinadas zonas de São Paulo, quando se está em um restaurante de luxo, estamos no Norte, mas damos meia dúzia de passos e, de fato, estamos no Sul. Mas isso não se esgota aqui, a relação entre um Norte global e um Sul global mostra a existência de centros de poder e de relações de poder.

Basta ver o que se está acontecendo com a chantagem que é feita com as vacinas. Temos uma política de vacinas que é totalmente imperialista, o que levou António Guterres a dizer que as vacinas deveriam ser um bem público mundial. Há países que estão guardando vacinas, o que é totalmente irracional.

Se o mundo todo não for vacinado, não interessa nada que o Norte esteja completamente vacinado, porque os executivos do Norte vão a Maputo, ou para outro lugar qualquer do Sul, e podem pegar uma nova variante do vírus para o qual não há ainda vacina. Há Norte e Sul, como há esquerda e direita. Mas temos que os redefinir, tanto epistemologicamente como do ponto de vista sociológico. Não é de maneira nenhuma um determinismo geográfico, senão não entenderíamos a Rússia, a China e a Coreia do Sul, nem a miséria que existe nos Estados Unidos.

Depois da pandemia pode haver uma mudança positiva de sociedade, ou é possível um cenário em que as sociedades se tornem mais autoritárias e piores?

Sou um sociólogo crítico e luto por uma sociedade melhor. Sou objetivo, mas não neutro. No meu livro, apresento três cenários. O negacionismo, o não fazer nada. Se isso acontecer, virá esta situação que torna os estados mais repressivos e as democracias podem não subsistir. Esta é a possibilidade mais provável neste momento.

Depois, há aquela solução que eu chamo de leopardo, alguma coisa muda para que tudo fique na mesma. É o que vemos com Biden e a União Europeia, que dizem que vão fortalecer os sistemas de saúde, vão voltar ao acordo ambiental de Paris, querem fazer a transição energética e digital. Pretendem fazer alguma coisa, mas muito timidamente. A Europa nem sequer conseguiu negociar as vacinas com as multinacionais farmacêuticas. Este é o paradigma do capitalismo mais inteligente.

Se ler os editoriais do Financial Times, desde abril do ano passado, lê que é preciso haver um novo “contrato social” entre outras coisas, mas é evidente que não lhes passa pela cabeça alterar o capitalismo financeiro, nem sequer perdoar as dívidas contraídas pelos países mais pobres durante a pandemia. No meu entender, essa via não vai resolver o essencial.

O terceiro cenário é a minha utopia, é o que penso que deveríamos fazer. No último capítulo, falo de como é possível fazer a transição. Se vamos viver numa pandemia intermitente, temos de mudar muita coisa em termos do paradigma social em que vivemos.

Foto: Katia Marko

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