O Supremo Tribunal Federal e o juiz natural

Por Kenarik Boujikian*, na Revista Consultor Jurídico

Está na pauta de julgamento do Plenário do Supremo Tribunal Federal desta quarta-feira (14/4) o Agravo Regimental do Habeas Corpus 193726, que tem como relator o ministro Edson Fachin, referente à ação proposta por Luiz Inácio Lula da Silva, cuja demanda é a incompetência do Juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba para o processo e julgamento da ação penal conhecida como processo de Atibaia, ou processo da incompetência (nº 5046512-67.2016.4.04.7000).

Em decisão monocrática de 8 de março, o ministro julgou que a 13ª Vara não era a competente e determinou a remessa dos autos para o Distrito Federal. Interposto agravo, o ministro Fachin afetou, no dia 12, o julgamento para o Plenário.

Duas questões estão postas no julgamento. A primeira diz respeito ao tema da incompetência e a segunda, ao destino que o ministro deu aos demais processos e incidentes.

Mas o fundamental das duas questões é a higidez do princípio constitucional do juiz natural.

No tocante à questão da competência, encontramos no voto do ministro Fachin o histórico das decisões do STF e as razões pelas quais a corte estabeleceu, em data longeva, que a 13ª Vara Federal não é competente para julgamento desse processo. Inicia com o apontamento da decisão paradigma, que foi julgada pelo Plenário em 23/9/2015 a partir do voto do ministro Dias Toffoli, fixando a competência da operação “lava jato”, tanto para o próprio STF como para a primeira instância, afirmando que ela é restrita aos fatos relacionados a ilícitos praticados em detrimento da Petrobrás S/A. Nesse julgamento, só não participavam da composição atual do STF os ministros Alexandre de Morais e Nunes Marques, ficando vencido o ministro Gilmar Mendes, mas que posteriormente acompanhou o entendimento do Plenário, que novamente se debruçou sobre o tema em 19/12/2017, agora contando com o ministro Alexandre de Moraes em sua composição, e que abriu a divergência, que foi acolhida, e reafirmou que a 13ª Vara não era competente, nos termos das premissas que já tinham sido estabelecidas (voto vencido do ministro Fachin no julgamento de agravos regimentais dos INQ 4.327 e 4.483).

Partindo desse quadro, importante observação fática consta do voto do ministro Fachin no HC da incompetência, posto como induvidoso: as condutas atribuídas ao paciente “não foram diretamente direcionadas a contratos específicos celebrados entre o Grupo OAS e a Petrobras S/A”. Ainda, o próprio ministro relator informa que determinou a redistribuição de mais de cinco dezenas de inquéritos a outros ministros do STF, por livre distribuição.

Pelo que se sabe, nenhuma destas redistribuições foi rejeitada pelos ministros, que, portanto, reafirmam as premissas estabelecidas pelo Plenário desde 2015.

O que se pode concluir é que o Supremo Tribunal Federal, ao longo desse período, delimitou cristalinamente a competência da 13ª Vara de Curitiba no tema da “lava jato”, afirmando que não há um juízo universal em nosso ordenamento jurídico, de modo que sob o primado da segurança jurídica não há como ter qualquer outra solução para o julgamento do agravo regimental senão confirmar a decisão do ministro Fachin para retirar o processo de Curitiba.

A segunda questão apontada diz respeito ao que constou na parte dispositiva da decisão do ministro Fachin, que, para além de determinar a remessa de mais quatro processos para o Distrito Federal, declarou a perda do objeto das pretensões deduzidas em quatro reclamações e em dez Habeas Corpus, inclusive o HC 164.493, que trata do tema da suspeição.

Este Habeas Corpus tramitava desde 2018 e já tinha apontado a importância e necessidade de seu julgamento.

No dia 9 de março deste ano, a 2ª Turma afastou a questão de ordem apresentada pelo ministro Fachin, que entendeu que o HC não deveria ser julgado, em razão da sua determinação, do dia anterior. Entretanto, ficou isolado e os outros quatro ministros que compõem a 2ª Turma decidiram dar seguimento e reconheceram a suspeição do então juiz Moro.

Os ministros observaram, em apertada síntese, no tocante a preambular, que o HC da suspeição teve início em novembro de 2018, portanto, muito antes da decisão monocrática do ministro Fachin; que a decisão tem caráter precário, pois não transitou em julgado e é passível de modificação; que a matéria é distinta; que o tema de suspeição tem precedência, nos termos do artigo 96 do CPP; que a 2ª Turma já decidira que não afetaria o julgamento para o Plenário e a competência já tinha sido fixada; que não há amparo, quer na legislação processual, quer no Regimento Interno do STF. Por fim e enfim, realizado o julgamento, com votos minudentes, sendo reconhecida a suspeição do juiz, fato alegado pela defesa desde sempre.

Pois bem, de tantos pontos relevantes, destaco que, de fato, “a arguição de suspeição precederá a qualquer outra, salvo quando fundada em motivo superveniente” (artigo 96 do CPP), o que por si só não significa que as demais exceções não podem ser julgadas. Nessa norma encontramos o toque de relevância que o legislador estabeleceu, de modo que, se num mesmo julgamento as duas questões estiverem postas, por primeiro o órgão julgador decidirá sobre a higidez do magistrado, pois ela tem maior relevo e o reconhecimento da incompetência, não pode impedir o julgamento da suspeição se os temas tramitam em processos distintos.

Julgamento realizado por quem não tem isenção pode ter qualquer nome, menos justiça, que, como consta do preâmbulo da nossa Constituição Federal, é um valor supremo de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, absolutamente imprescindível para que nós possamos constituir uma sociedade livre, justa e solidária, o que é responsabilidade do Judiciário.

Todo cidadão tem o direito inalienável de acessar um Poder Judiciário probo e imparcial, como única forma de garantir a efetiva tutela jurisdicional à dignidade da pessoa e dos direitos fundamentais e a precedência estabelecida na norma reconhece o grau de afetação e impacto que o juiz imparcial tem sobre os demais direitos e princípios estabelecidos na Carta Magna.

As duas exigências, competência do juízo e imparcialidade do juiz, estão conectadas com o princípio do juiz natural, da maior envergadura numa sociedade civilizada, assim reconhecida na nossa Constituição e na normativa internacional e regional, como necessária limitação do poder do Estado e como mecanismos para um julgamento justo.

Nesse tanto, relembro sucinto despacho que proferi em sede de plantão judiciário do TJ-SP:

“O princípio do acesso à Justiça… deve ser conjugado aos demais princípios constitucionais, dentre eles o princípio do juiz natural, um dos mais relevantes para a garantia do sistema democrático, consagrado na nossa Constituição Federal de 1988, como um dos Direitos e Garantias Fundamentais: artigo 5°, XXXVII — não haverá juízo ou tribunal de exceção; e artigo 5°, LIII — ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”.

Tal princípio, entre outras funções, tem por objetivo a garantia da independência judicial, consagrado em documentos internacionais, como garantia do jurisdicionado, das partes e da sociedade…

Vale lembrar a precisosa lição de Luigi Ferrajoli acerca do juiz natural em sua obra “Derecho y razón — teoria del garantismo penal”, 2001:“La garantia del juez natural indica esta normalidad, del régimen de competencias, preconstituida por la ley al juicio, entendiendo por competencia la medida de la jurisdicción de cada juez es titular. Significa, precisamente, tres cosas distintas aunque relacionadas entre sí: la necessidad de que el juez sea preconstituido por la ley y no constituido post factum; la inderogabilidad y la indisponibilidad de las competencias; la prohibición de jueces extraordinarios y especiales”.

O ministro Fachin, no tocante ao tema da suspeição, não poderia, sob qualquer hipótese, decidir pela perda do objeto, ainda que o julgamento não tivesse sido iniciado o julgamento na 2ª Turma, pois declarar a perda do objeto do Habeas Corpus da suspeição equivaleria a denegar jurisdição: o paciente tem direito ao julgamento. A mim, pareceu muito mais grave, pois no caso houve afronta à decisão do colegiado, que já decidira pela não afetação ao Plenário e iniciara o julgamento, ou seja, fixado o juiz natural para a causa, de acordo com o regramento em vigor. O que vemos é o descumprimento.

Esqueceu o ministro que decisão judicial se cumpre!

Tristes tempos no qual o próprio Judiciário não respeita as suas decisões, emanadas na própria corte, por seu Plenário ou suas turmas.

As regras que estabelecem o juiz natural para o STF, internamente, são claras. Quando o julgamento tem início, não se pode mudar as regras e rotas de um julgamento, o que caracterizaria manipulação das regras de jurisdição e, ainda, nenhum ministro pode retirar a jurisdição de outro. O julgamento começou na turma e só ela poderia encerrá-lo, como de fato assegurou a 2ª Turma.

Espera-se que o longo calvário do paciente tenha fim, com um juiz competente e imparcial e que a injustiça possa ser ressignificada pelo próprio Judiciário causador e, de algum modo, seja transformada em justiça, tal como posta no preâmbulo da nossa Constituição.

Com tantos danos causados para o paciente e para a sociedade brasileira, é o mínimo indispensável para que o Estado democrático de Direito brasileiro possa encontrar seu caminho.

*Kenarik Boujikian é desembargadora aposentada do TJ-SP, especialista em Direitos Humanos, membra da Associação de Juízes para a Democracia (AJD) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).

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