Projeto monitora relação entre indígenas e o sistema de justiça criminal

Observatório vai avaliar políticas públicas e acompanhar casos emblemáticos. Encarceramento de indígenas é reflexo da marginalização dessas populações, diz advogado

Na Apib

Há uma relação próxima entre a não demarcação de terras indígenas e o encarceramento dessas populações, afirma o advogado Luiz Eloy Terena. Assessor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Eloy é um dos criadores do Observatório Sistema de Justiça Criminal e Povos Indígenas. Recém-lançado pela Apib, com o apoio do Fundo Brasil (mesma organização que mantém a Brasil de Direitos), o Observatório reúne pesquisadores e ativistas que vão acompanhar a relação entre essas populações e o sistema penal. O esforço é justificado pela complexidade da questão. Segundo Eloy, a prisão de indígenas é, frequentemente, reflexo da marginalização histórica desses povos.

De acordo com dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) há 1390 pessoas identificadas como indígenas presas no Brasil. A maioria das prisões aconteceu no  Mato Grosso do Sul: justamente o estado brasileiro onde o número de terras indígenas demarcadas é menor. Por lá, esse quadro provoca conflitos fundiários que, não raro, terminam em morte. Sem terra onde produzir alimentos, e sem estrutura para preservar sua cultura, os indígenas do Mato Grosso do Sul reúnem alguns dos piores indicadores sociais do Brasil.  “A criminalidade no Brasil está atrelada à extrema desigualdade social dos grupos que compõem a conjuntura social”, diz Eloy. “A falta de demarcação de territórios é um dos pilares que impulsionam e edificam a desigualdade social entre os indígenas e não indígenas na região”.

A ambição do Observatório é qualificar esse debate, por meio do acompanhamento de estatísticas e de casos emblemáticos. O grupo pretende, ainda, avaliar as políticas públicas existentes para o setor, propor meios para aprimorá-las ou apontar novos caminhos.  “A ideia é que o Observatório seja  um  mecanismo auxiliar de controle externo do poder público”, conta o advogado.

Brasil de Direitos: Dados de 2019, do Depen, informam que há 1390 pessoas identificadas como indígenas presas no Brasil. Há variações regionais importantes?
Luiz Eloy Terena: Há. O estado de Mato Grosso do Sul (MS) é aquele com maior número de detentos indígenas do Brasil: 349. Esse número é quase três vezes maior que o do segundo colocado — Roraima, onde há 110 presos indígenas.  No caso do MS, desses 349 presos, 184 pertencem à etnia Kaiowá, 93 são da etnia Guarani, 67 da etnia Terena e 4 da etnia Kadiwéu. Em que pesem as diferenças regionais, é possível afirmar que esse montante carcerário consideravelmente maior no estado de Mato Grosso do Sul tem relação com o histórico conflito por terras entre os povos indígenas e os latifundiários.  Trata-se, é importante ressaltar, do estado que tem menos terras indígenas demarcadas.

Como assim? Qual a relação entre demarcação de terras indígenas e o encarceramento dessas populações?
Essa relação se dá por conta da marginalização a que os povos indígenas são submetidos nestas regiões, considerando o cenário de violência em que vivem. A criminalidade no Brasil está atrelada à extrema desigualdade social dos grupos que compõem a conjuntura social. No Mato Grosso do Sul, há um descaso considerável por parte do poder público com relação às populações indígenas originárias. A falta de demarcação de territórios é um dos pilares que impulsionam e edificam a desigualdade social entre os indígenas e não indígenas na região. Outra pilar é o descaso com relação às comunidades em situações de retomadas, acampamentos e ocupações. O Estado é negligente ao não conter os conflitos nessas áreas. O terceiro pilar que contribui para a marginalização, e consequente criminalização dos indígenas, nesta região é o preconceito da população. Por ser, historicamente (e ironicamente) um estado com atividade econômica basicamente toda voltada ao agronegócio, a população sul-mato grossense sustenta um estereótipo que prejudica a inserção dos indígenas nas atividades comuns à cidade, à sociabilização e principalmente, às oportunidades de trabalho.

A prisão, então, passa a ser um dos reflexos do processo de marginalização desses povos pelo Estado?
O processo de criminalização dos povos indígenas envolve uma diversidade de violências, é um fenômeno complexo por abranger diferentes atores e instituições. É importante destacar o contexto histórico de invasão, pelos portugueses e espanhóis, do território em que hoje se situa o Brasil. Nesse projeto colonial, as nações que aqui viviam foram massacradas em um processo de aculturação e pacificação social que usou a força repressiva do Estado como mecanismo de ação. Inclusive, diversos estudiosos chamam esse processo de etnocídio. Assim, foram criadas políticas e instituições responsáveis por tutelar os povos indígenas do Brasil, ignorando as suas subjetividades enquanto seres humanos e ignorando sua diversidade de culturas, territorialidade, religiosidade, direito. Criou-se, no imaginário do brasileiro, a visão de que os índios seriam um atraso ao progresso nacional em contraste com o modelo industrial disseminado principalmente pelos países europeus e pelos EUA. O Código Penal brasileiro, de 1940, carrega essas premissas inspiradas no positivismo evolucionista. A lei penal refletiu o conceito vigente no Código Civil de 1916 que considerava o indígena relativamente incapaz para os atos da vida civil, devendo ser submetido ao regime tutelar sob responsabilidade do então Serviço de Proteção ao Índio (SPI)  que depois  daria origem à Fundação Nacional do Índio (Funai).

A Constituição Federal de 1988 entende os indígenas como sujeitos de direitos. A promulgação da Carta não alterou esse quadro que você descreve?
A Constituição Federal de 1988 inaugurou uma nova política indigenista ao firmar o compromisso de proteger a diversidade cultural, respeitando tradições, organização social, costumes, línguas e modo de vida dos indígenas, como expressa em seu artigo 231. E aí começa uma nova etapa nesse conflito histórico que se traduz na opção de manter as populações indígenas marginalizadas, porém, com metodologia um pouco mais sofisticada, utilizando dos mecanismos oficiais de persecução penal para então calar as vozes.

Como vai funcionar o trabalho do Observatório?
O Observatório é um espaço compartilhado para a produção de conhecimento técnico de qualidade e independente. A ideia é que seja  um  mecanismo auxiliar de controle externo do poder público, um meio de facilitação de acesso à informação técnico-científica de qualidade, e também uma forma de auxiliar na construção de políticas públicas e na tomada de decisões estratégicas por parte do poder público e demais entidades da sociedade civil especialmente voltadas para a comunidade indígena. Vamos trabalhar em três eixos de atuação: na consolidação de um plano de ação para a pesquisa, coleta e processamento de dados relacionados ao encarceramento provisório e definitivo da população indígena no Brasil; no acompanhamento processos emblemáticos envolvendo assassinatos de lideranças indígenas;  e no acompanhamento de casos de criminalização de lideranças indígenas no Brasil, com foco prioritário nas lideranças da APIB.

A leia e a prisão são usados como forma de perseguição às lideranças indígenas? Qual a mecânica dessa criminalização das lideranças?
A questão é bastante complexa, mas é importante destacar que o sistema de justiça criminal é o braço mais forte do Estado. Algumas pessoas podem até dizer que “nunca cometerão crimes”, mas não podem afirmar que não serão “acusadas de praticar um crime”. E aí é que entra a criminalização de lideranças, muitas vezes sendo envolvidas em causas criminais que ignoram a complexidade do arranjo político próprio das nações indígenas. Inclusive, é justamente nesse ponto que é relevante falar que o Brasil é um país com muitas nações, algumas delas, com formas próprias de resolver conflitos. Nesse contexto todo, a perseguição por meio das investigações em andamento acabam se transformando como mecanismo para frear ou calar a atuação de lideranças indígenas, fazendo com que a própria credibilidade seja questionada. Mas o poder público muitas vezes não se preocupa em entender como essas acusações são construídas com base em fatos falsos ou versões que são distorcidas.

A pandemia alterou, de algum modo, essa equação da criminalização das lideranças?
A pandemia do COVID-19 alterou a rotina do mundo todo, mas é importante destacar, antes de mais nada, que é preciso olhar para essa questão com certa complexidade. Isso porque, muito antes do vírus em si, as desigualdades sociais, a falta de saneamento básico, de estrutura básica de saúde e de falta de renda, para mencionar apenas alguns pontos, já faziam parte da rotina de grande parte dos povos indígenas. Quem viaja pelo interior do Mato Grosso do Sul, por exemplo, vê a imagem recorrente  de indígenas marginalizados  — literalmente, em acampamentos à margem  das rodovias em situação absolutamente precária. Isso não foi causado pelo Coronavírus. É resultado de uma opção política de invisibilizar esses sujeitos. A pandemia alterou muito a rotina, e hoje temos 52.005 casos de indígenas contaminados pelo novo coronavírus, 1.034 mortos e 163 povos afetados. Mas essa violência sistematizada e institucionalizada acompanha os povos indígenas há mais de 500 anos. Tentando então refletir sobre a alteração da criminalização das lideranças no contexto da pandemia, claramente se observa uma reação por parte do Estado quando percebe que as vozes vão crescendo. A luta por direitos, agora, inclusive sanitários e de saúde, gera também a contrarreação por parte dos governantes que nunca se preocuparam em efetivamente garantir condições básicas para os povos indígenas

Via https://www.brasildedireitos.org.br/

Foto: Erick Marques / Najup

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