Na Buala
Os primeiros filmes brasileiros são realizados em 1897. Nove anos antes, o Brasil fora o último país ocidental a abolir a escravatura. Os portugueses começam o tráfego negreiro pouco após a descoberta e, durante 350 anos, deportam no mínimo 5 milhões de africanos, número que não inclui os desaparecidos no oceano. Soldados da conquista, mão-de-obra no campo e na cidade, empregados e artesãos, os africanos edificam o Brasil. Quando D. Pedro, herdeiro da coroa portuguesa e rei do Brasil, proclama a independência, em 1822, dois terços dos brasileiros são afro-descendentes, na sua maioria alforriados e livres. No entanto, durante décadas, o cinema oculta esse passado fundador, o cinema apaga a escravidão.
A fábula da abolição
Em 1862, a filha do Imperador do Brasil D. Pedro II, a Princesa Isabel, com 16 anos, passeia num bosque quando uma jovem negra esfarrapada atira-se aos seus pés, contando, aos prantos, as sevícias infligidas pelos seus donos. Transtornada, a princesa dispensa-lhe protecção e promete um dia abolir o horror da escravatura. É assim que o grande cineasta Humberto Mauro encena O Despertar da Redentora (1940. 21’. P&B): vinte anos mais tarde, a 13 de maio de 1888, Isabel ratifica a Lei Áurea promulgando a Abolição. O júbilo dos escravos quebrando as suas correntes conclui a ilustração de uma “história oficial” que perdurou durante quase cem anos.
Sinhá Moça (Tom Payne, 1953) amplia essa bonita fábula. Sinhá Moça, filha de um fazendeiro de café de São Paulo, e Rodolfo, advogado progressista, interpretados pelas estrelas Eliane Lage e Anselmo Duarte, são abolicionistas convictos. Ela confronta-se com o pai, impiedoso com os escravos, e ele, tal um “Zorro”, organiza de noite as fugas destes para o quilombo, território livre dos negros. É uma produção da Vera Cruz, fundada pelos italo-paulistas Zampari e Matarazzo que chamam realizadores italianos – Alberto Cavalcanti e Adolfo Celi – e o argentino Tom Payne. A realização cuidada, copiando os modelos hollywoodescos, obtém o Leão de Bronze em Veneza e o Urso de Prata em Berlim, em 1954. O filme insiste nos tratamentos desumanos – o pelourinho, o chicote, os ferros, o tronco – infligidos aos escravos, estampados em clichés. Os domésticos surgem como simpáticos e resignados, enquanto os da plantação que, aliás, não são mostrados a trabalhar, andam semi-nus, vestidos de tanga (um anacronismo em 1887), e as suas danças são muito primitivas. Formam uma massa de corpos negros, com olhos tristes, da qual se destacam a silhueta altiva e o rosto sofrido da atriz Ruth de Souza. Por vezes rebelam-se e sonham constantemente em fugir, mas são desorganizados, impulsivos, a sua revolta fracassa porque não cumpriram as orientações de Rodolfo. O advogado defende “a libertação dos negros que edificaram o esplendor do Brasil”. Na proclamação da Abolição, os escravos depõem as suas correntes aos pés do jovem casal de heróis. Enredos e figuras do generoso humanismo branco foram, durante muito tempo, propagados. A Marcha (O. Sampaio, 1972) narra os feitos de um jovem de boa família que organiza as fugas de escravos, ajudado por um negro rebelde, interpretado por Pelé. Nas telenovelas Sinhá Moça da Globo, em 1986 e novamente em 2006, os escravos são personagens um pouco mais consistentes que no filme mas são apresentados sobretudo como vítimas.
“A abolição foi uma farsa” diz o sociólogo Muniz Sodré no documentário Abolição (Zozimo Bulbul, 1988), que desconstrói o mito da lei libertadora. “Foi feita sem reforma agrária, sem indemnização aos negros. Foi planejado pelo Estado que o lugar do escravo seria para o imigrante. Foi um projeto de embranquecimento da população” A lei Áurea apaga a escravidão, marca de um passado feudal e colonial, mas acarreta um projeto mortífero. Em 1888, os afro-descendentes são a maioria da população (14 milhões) e, entre eles, cerca de 700 mil são escravos. O objectivo de integração defendido pelos raros deputados negros é varrido pela casta dos fazendeiros que impõe o seu projeto de modernização capitalista. Estes organizam a imigração italiana e japonesa às quais se juntarão depois outras vagas vindas da Europa.“A República [instituída um ano após a abolição] queria entrar no capitalismo sem os negros”, afirma a historiadora Beatriz Nascimento.A partir de então, pesará sobre os afro-descendentes a infame herança da escravidão.
A marca do escravo
“Não existe racismo no Brasil porque o negro sabe onde é o seu lugar”, diz um ditado brasileiro. Nos anos que precedem e seguem a abolição, são estabelecidos diversos indicadores discriminatórios – vocábulos pejorativos, exclusões do espaço social, restrições nos percursos educativos e profissionais, marginalização cultural etc… As representações negativas forjam um preconceito racial constitutivo do imaginário colectivo. No cinema, não existem heróis negros. Durante um meio século o lugar do afro-brasileiro situa-se na margem que lhe foi atribuída: figurante ou, na melhor das hipóteses, papel secundário. O genial Grande Othelo (1915-1993) é a grande e gloriosa excepção, protagonista nas comédias chanchadas e em filmes dramáticos – Moleque Tião (1943) e Também somos irmãos (1949) de José Carlos Burle, Rio Zona Norte (1957) de Nelson Pereira dos Santos. Nessa vertente de cinema “neo-realista” social, os filmes baianos Bahia de Todos os Santos (Trigueirinho Neto, 1960), A grande Feira (1961) e Tocaia no Asfalto (1962) de Roberto Pires, e também Barramento (1962) de Glauber Rocha chamam os negros para o primeiro plano, revelando o actor António “Pitanga” Sampaio.
O primeiro filme cujos heróis são escravos rebeldes é apresentado em Cannes, na Semaine de la Critique, em 1964, enquanto em competição estão Deus e o Diabo na terra do sol, de Glauber Rocha e Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos. Como estes, Ganga Zumba do jovem Carlos Diegues, de 22 anos, é um filme de ruptura estética e ideológica. Uma epopeia despojada e inspirada, rodada em exteriores, com poucos meios. Uma plantação de cana-de-açúcar, no Nordeste, em meados do século XVII: dois escravos revelam ao jovem Antão que o seu destino o chama para vir a ser, sob o nome Ganga Zumba, o rei do Quilombo de Palmares, comuna livre onde vivem milhares de ex-escravos, camponeses e guerreiros. A câmara desleixa os senhores e capatazes brancos, concentrando-se nos protagonistas negros, interpretados pelos excelentes Eliezer Gomes, Lea Garcia, Luiza Maranhão, Jorge Coutinho e ainda o sambista Cartola; uns sonham com a liberdade no quilombo, outros consideram-no uma mera utopia. Desafiando os perigos de açoite e morte, dois companheiros escoltam o futuro rei até Palmares. António Pitanga interpreta com intenso fervor o jovem Antão, no início pouco atraído pelo seu destino, revelando-se temerário quando mata o capataz, e que, no decorrer da fuga, impõe-se com a audácia e determinação de chefe. O filme desenvolve-se como um ritual iniciático, aberto, ritmado e fechado por cerimónias do candomblé e cantos que ligam o negro à sua terra ancestral.
O Cinema Novo está em cartaz em Cannes quando os militares acabam de tomar o poder, que eles reforçarão em 1968. Durante a ditadura, o cinema prossegue mostrando os paradoxos brasileiros. O muito tropicalista Macunaïma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988), questiona em tom trágico-burlesco e iconoclasta a identidade brasileira; numa cena emblemática, Macunaïma, interpretado por Grande Othelo, passando pela água de uma fonte, transforma-se em branco, interpretado por Paulo José.
No meio da efervescência cultural e artística que, a partir dos meados dos anos 70, surge nas grandes cidades, movimentos musicais e políticos populares como o Black Rio e os blocos afros da Bahia, assim como muitos artistas exaltam o orgulho negro. Diversos filmes, como os de Nelson Pereira dos Santos (1928-2018), encenam afro-brasileiros e abordam as culturas de origens africanas.
Heróis negros
O corpo negro, corpo africano, corpo escravo, humilhado, revoltado, de Zózimo Bulbul, ator e realizador, ocupa o espaço do quadro branco de Alma no Olho (1976. 10’). Corre e dança, depois é cativo que resiste e grita, e, ainda entravado, é camponês, mendigo, lutador, músico. Finalmente rompe as correntes que o amarram. Suportado pelo tema afro-jazz Kulu Se Mama (Juno Lewis) tocado em 1965 por John Coltrane – com Pharoah Sanders, Mc Coy Tyner, Elvin Jones e Frank Butler – esta curta-metragem é um grito de revolta, um gesto estético, uma atitude política.
Nesse mesmo ano de 1976, Xica da Silva de Carlos Diegues projeta nos ecrãs do Brasil e do mundo a rainha negra da colónia no século XVIII. A escrava Xica seduz o muito poderoso representante da coroa portuguesa, fiscal da exploração de diamantes. Enfeitiçado pelos seus encantos, ele vai alforriá-la e consentir em satisfazer todos os seus caprichos, por mais luxuosos que sejam. Enfeitada com peruca branca e vestido precioso de seda, rodeada por damas de honra, Xica é uma mulher poderosa, despreocupada com o destino dos escravos. Inspirando-se numa personagem real, Diegues cria, sem grande preocupação de realismo histórico, uma comédia ritmada e cintilante como um carnaval, com música de Jorge Ben, alegre e muito divertida, glorificando a sua heroína. Zezé Motta impõe uma singular beleza negra resplandecente, e, desafiando as críticas à hiper-sexualização da personagem, encarna uma esplêndida amazona, cuja liberdade é insuportável na colónia; a rainha será deposta, humilhada e rejeitada à sua condição miserável de ex-escrava.
Chico Rei (1985) é outra figura lendária cujo percurso é narrado pelo cinemanovista Walter Lima Jr numa ampla realização histórica. Começa com o abominável tráfego: o rei bantu Galanga, capturado, humilhado, embarca no navio com toda a sua família, que, no meio de uma tempestade, é atirada para o oceano pelos traficantes; somente sobrevive o seu filho. Apelidado Chico e, por chacota, Rei, pelo seu amo, é empregado a escavar a rocha à procura do ouro. Tendo achado um bom veio, junta clandestinamente um pecúlio e consegue comprar a sua liberdade, a dos seus companheiros e finalmente até a mina. O seu filho, que tinha fugido e integrado o quilombo na montanha, recusa voltar para junto do seu pai. Confrontam-se dois ideais de liberdade: a comunidade, enclave rural e africano, e, na cidade, a Irmandade afro-católica cujos fundos servem para pagar a alforria dos irmãos. Em Vila Rica, capital do Minas Gerais, enquanto os colonos enriquecidos pelo ouro enfrentam os fiscais da coroa, são os negros que dão vida à cidade, nas ruas, nas oficinas, nos comércios, e com as suas festas religiosas.
A utopia quilombo
Carlos Diegues realiza Quilombo (1984), que prossegue a narrativa de Ganga Zumba (1964) e fecha a sua “trilogia da escravidão”, num momento de esperança, quando o Brasil está prestes a restabelecer a democracia, exigida por uma ampla mobilização popular na qual participaram muitos militantes negros. O quilombo de Palmares ocupou durante quase cem anos (1604-1694) um imenso território, resistindo aos ataques das expedições portuguesas e holandesas. A história extraordinária deste enclave de liberdade que o filme retrata como um ideal de harmonia democrática, celebra o orgulho negro e a esperança de um novo Brasil. O confronto entre Ganga Zumba — que, após ter edificado a prosperidade de Palmares, pactua com os portugueses pela paz e a liberdade dos seus concidadãos — e o seu herdeiro Zumbi que, vislumbrando a traição dos donos da colónia defende Palmares até à morte, reflete a oposição que divide os militantes afro-brasileiros entre conciliadores e radicais. A super-produção, com meios muito importantes e objectivos de ampla divulgação, conta com a participação de três gerações de actores – de Grande Othelo a Antônio Pompêo, passando por Zezé Motta e Antônio Pitanga -, de diversos intelectuais e artistas afro-brasileiros e com a música de Gilberto Gil. A epopeia consagra o mito do heróico Zumbi: guerreiros valentes e até impiedosos, esplendorosos trajes estilizados, rituais africanos sublimados. Mas o aparato de encenação mitológica prejudica o potencial subversivo da utopia quilombo.
Ori (Raquel Gerber. 1989), documentário cuja autora é a historiadora Beatriz Nascimento, consultora no filme de Diegues, expande a utopia quilombo, enraizando-a na herança africana comunitária dos escravos. O quilombo não é somente um território de resistência, é um espaço íntimo e colectivo, a matriz da consciência negra. A intensa afirmação afro-brasileira desses anos 80 consta também do documentário Abolição (Zozimo Bulbul. 1988) que dá a palavra a diversas personalidades negras e mostra diferentes formas de resistência: as revoltas, os quilombos, as associações cultuais – sincréticas ou não – da época da escravidão originaram muitas expressões culturais e identitárias negras brasileiras. Em 1988, os militantes granjeiam duas vitórias: a criação da Fundação Palmares, instituição federal de apoio à cultura afro-brasileira e o reconhecimento, inscrito na Constituição, dos territórios quilombos.
Uma parte minoritária dos sectores culturais e políticos toma consciência da realidade discriminatória encoberta pelo mito da democracia racial, mas não são poucos, nomeadamente à esquerda, a atribuí-la às desigualdades sociais e a recusar o peso do preconceito racial. Este existe indubitavelmente na produção cinematográfica. Como o crítico João Carlos Rodrigues (O Negro Brasileiro no Cinema, 1988, nova edição em 2012) bem demonstra, os personagens negros e mestiços são muito frequentemente arquétipos, e geralmente negativos. A Negação do Brasil (2000 – o título conjuga o “neg” de negro e de negação), documentário e livro de Joel Zito Araújo, analisa 40 anos de telenovelas, mostrando a sua tendência para o branqueamento – inclusive escolhendo brancos para interpretar escravos – e expondo os papéis subalternos apontados para os negros e mestiços: domésticos, marginais, prostitutas. Os famosos actores Zezé Motta e Milton Gonçalves relatam os seus conflitos com as produções, a fim de modificar ou enriquecer uma personagem, chegando às vezes a recusar o papel.
Maioria à margem
Com a produção minguada da década de 90 termina o século XX; em cem anos de cinema, as longas-metragens realizadas por negros contam-se pelos dedos da mão. Na retomadado cinema que se dá a partir de 2000, dois cineastas afro-brasileiros conquistam espaço. Joel Zito Araújo realiza ficções (Filhas do Vento. 2005) e documentários, nomeadamente Raça (2012) que revela singulares personalidades afro-brasileiras: um senador, um produtor de televisão e uma camponesa quilombola. Jeferson De lança em 2000 o manifesto Dogma Feijoada, por um cinema negro, e realiza curtas e longas-metragens (Broder. 2010). Paralelamente, uma nova geração de atores destaca-se no teatro, no cinema e na televisão: Lázaro Ramos, Taís Araújo, Camila Pitanga e muitos outros; assumindo as suas origens e identidade, engajam-se nos combates profissionais e políticos contra as discriminações.
O sucesso de Na Cidade de Deus (Fernando Meirelles e Katia Lund. 2002) lança a moda dos “filmes de favela”, mais ou menos realistas ou exóticos, Quanto Vale ou é por Quilo? (Sérgio Bianchi 2005), denuncia ferozmente a exploração da miséria pelo negócio da caridade. O enredo inspira-se em parte numa novela do grande escritor, descendente de escravos, Machado de Assis, que já sublinhava quanto o mercantilismo impiedoso corrói todos os estratos sociais. Na trama principal que desvenda a corrupção e o cinismo dos dirigentes de uma ONG de apoio aos pobres e favelados, são inseridas cenas do comércio de seres humanos na época imperial. O filme estabelece um paralelismo entre a perversidade do sistema escravocrata e a ganância da exploração capitalista. Mas a demonstração corrosiva fica no registo económico, sem questionar o peso do preconceito racial na brutal injustiça social de hoje.
As cotas de cor promulgadas pelo governo Lula no ensino superior e nas publicidades, as medidas do ministro Gilberto Gil pelo financiamento do cinema, a mobilização das associações e o engajamento dos actores e dos cineastas, têm contribuído para a emergência de realizadores afro-brasileiros. Mas eles enfrentam inúmeras dificuldades no acesso à produção de longas metragens e à difusão comercial. Em 2016, neste Brasil com maioria de população negra e mestiça, em 142 longas-metragens, só 2% são realizadas por afro-brasileiros; entre eles, zero mulheres.
Em 2017, dois filmes desenvolvem enredos nas últimas décadas da colónia, com grande qualidade estética e realismo, e com intenções de suscitar reflexões sobre questões contemporâneas. Vazante (Daniela Thomas. P&B) foi alvo de críticas no Brasil, sendo acusado de mostrar escravos sem percursos nem personalidades; de facto o filme centra-se no triste destino de uma adolescente casada por convenção familiar com um colono muito mais velho e compelida ao papel de procriadora. A realizadora, empenhada na condenação do sistema feudal, assemelha a violência patriarcal sobre as mulheres da família e o brutal domínio escravocrata, sugerindo que a amante negra e a esposa branca encontram-se na mesma condição de vítimas. Diversas sequências de Joaquim (Marcelo Gomes), que narra o percurso do homem que se tornou o herói independentista Tiradentes, mostram a diversidade etno-racial na colónia, no final do século XVIII. As cenas com os dois escravos, interpretados por excelentes actores africanos, a angolana Isabél Zuáa e o guineense Welket Bungué, evidenciam paradoxos nas relações sócio-raciais, que o filme não chega a desenvolver ou aprofundar.
Combatentes da liberdade
Filmes muito recentes contam os combates de afro-brasileiros no século XIX, período decisivo na história do Brasil. A Revolta dos Malês (Belisário Franca e Jeferson De. 2019) é a primeira realização relativa à revolta muçulmana de 1835, em Salvador da Bahia. O tráfego negreiro traz cativos da África ocidental, muçulmanos chamados malês. Os escravos são domésticos, comerciantes na rua, artesãos, e têm o direito de ficar com parte dos seus ganhos. Guilhermina poupou o necessário para comprar a sua alforria e a da filha mas o patrão não quer liberar a adolescente. Guilhermina, revoltada, alista-se então no jihad, a insurreição fomentada pelos seus compadres muçulmanos. Relegando para os planos de fundo as sombras e silhuetas de brancos, o filme mostra a vida na cidade negra, as relações familiares, os laços de solidariedade, e também as divisões: os malês, fanáticos ou moderados, opõem-se aos afro-descendentes, nascidos no Brasil e fiéis do candomblé. Guilhermina, dividida entre a sua lealdade e o seu amor materno, sacrifica o seu próprio destino pela liberdade da sua filha.
Nesta mesma cidade de Salvador nasceu Luiz Gama (1830-1882), filho de Luiza Mahin, de origem e cultura nagô, escrava alforriada, quitandeira, rebelde que participou nos levantamentos negros. Doutor Gama (Jeferson De. 2021)narra a vida extraordinária do ícone do combate abolicionista. Luiz, nascido livre, é vendido aos 10 anos pelo pai branco para quitar uma dívida de jogo. Levado a São Paulo, nunca mais voltará a ver a mãe e fica escravo até os 17 anos. Aprende a ler, estuda literatura e direito, publica poesia, edita revistas satíricas, escreve muitos artigos contra a monarquia e a escravidão. Sem diploma, exerce como advogado “provisionado”, defendendo indigentes e desvalidos, e ajudando centenas de escravos a obter a liberdade. Ao projetar a personalidade, o percurso e os valores de Gama, Jeferson De foca diversas facetas do preconceito racial e ressalta quanto os combates pela igualdade e a justiça são ainda hoje uma exigência democrática.
Todos os Mortos (Caetano Gotardo e Marco Dutra. 2020) situa-se um pouco mais tarde, em 1899, quando o Brasil celebra a primeira década da República. Apos ter perdido a sua fazenda de café, a mãe e as duas filhas adultas da família Soares vivem em São Paulo, envoltas no passado. Na cidade, ainda pouco extensa, não há empregos para os ex-escravos que só conseguem ocasionalmente serviços de vendedores de rua ou obreiros. Inã Nascimento, apesar de encontrar-se sem trabalho, sem teto, e sozinha com o seu filho pequeno, rechaça a solicitude condescendente das senhoras Soares, suas antigas patroas. A encenação e os diálogos sublinham sutilmente quanto estas estão aferradas nas suas posturas de dominação, rejeitando eternamente o negro à condição de subordinado indispensável e como suas expressões não conseguem abafar o seu preconceito racial cunhado de desconfiança e de fascínio. Inã, altiva, livre, muito ligada à sua comunidade e às suas raízes africanas, está determinada em proteger o filho dessa possessividade mórbida. Mas para Ana Soares, assombrada pelos fantasmas do passado, os negros, ex-escravos, só podem ser mortos.
“Porquê todos os mortos desta sala são negros?” pergunta, de escalpelo na mão, um estudante de medicina, negro, aos seus camaradas brancos da aula de dissecação, no início de M8 – Quando a morte socorre a vida (Jeferson De. 2020). Mauricio, único afro-brasileiro da turma, suporta regularmente sarcasmos e discriminações, tanto pela sua cor como pela sua origem muito modesta. Fica fascinado pelo cadáver anónimo com etiqueta M8. Será um espírito errante? Uma alma gémea? Graças à ajuda de gente da comunidade negra, consegue identifica-lo, encontrar a sua mãe, descobrir a sua história e dar uma sepultura, conforme à tradição, a este jovem, massacrado, como dezenas de milhares de negros, por milicianos e polícias.
Os paradoxos mortíferos persistem num país cujo presidente é um estapafúrdio racista ultra-direitista. Nos últimos 20 anos, os negros têm tido um pouco mais acesso a certos cargos e têm conseguido espaços, nomeadamente no debate intelectual. Mas os poderes económicos, políticos e mediáticos continuam sendo prerrogativas de clãs brancos. A primeira longa-metragem de Lázaro Ramos, Medida Provisória (2021), imagina uma distopia – o Congresso brasileiro resolve expulsar todos os afro-descendentes para as suas terras de origem – que desvela os sofrimentos das vidas negras e interpela as consciências. Será que os filmes podem contribuir a conjurar o destino imputado desde o fim da escravatura aos cidadãos afro-brasileiros?
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Artigo originalmente publicado no dossiê ”Esclavages” da revista Positif.
Ariel de Bigault – Autora e realizadora francesa, tem percorrido rotas da lusofonia. O percurso cinematográfico começou em Lisboa com a realização de documentários. O encontro com o Brasil deu-se pela investigação sobre a imagem do Negro, especialmente no cinema. A serie documental Éclats Noirs du Samba (4 x 55′, 1987), com Gilberto Gil, Grande Othelo, Martinho da Vila, Paulo Moura, Zézé Motta, e grupos da musica popular sublinha a força e a diversidade da criação afro-brasileira. Seguiram-se trabalhos de pesquisa e divulgação das músicas africanas contemporâneas, sobretudo lusófonas, com a realização da Antologia das Musicas de Cabo Verde 1959-1992 (2 Cds, 1995), de Musicas Urbanas de Angola 1956-1998 (5 Cds. 1999) e a promoção de artistas lusafricanos, especialmente em França (Festival Atlântida, Paris, 1996 e 1997). O filme Canta Angola (58′. 2000) foca a resistência dos artistas da musica popular – Carlitos Vieira Dias, Carlos Burity, Irmãos Kafala, Paulo Flores, Banda Maravilha, entre outros – . A Televisão dos Angolanos (26′. 2006) analisa o espelho televisivo do país. Afro Lisboa (60′.1996)revela rostos e vozes de diversas gerações da imigração africana – com Orlando Sérgio, entre outros. Dez anos depois, Margem Atlântica (57′. 2006) apresenta autores, actores, músicos de origens africanas – Mariza, José Eduardo Agualusa, Kalaf Ângelo, Ângelo Torres – à conquista de espaço e público para as suas criações afro-lusófonas.
Realizou Fantasmas do Império (2020), prod Ar de Filmes e Kidam, distribuição Zero em Comportamento. Lançamento em Portugal em junho 2021. A história imperial e colonial é contada e reinventada pelo cinema português. Fantasmas do Império percorre esse imaginário cinematográfico, desde o início do século XX… 100 anos de filmes. Aos documentários e ficções do passado colonial, contrapõem-se filmes e olhares contemporâneos. Sete cineastas portugueses – Fernando Matos Silva, João Botelho, Margarida Cardoso, Hugo Vieira da Silva, Ivo M. Ferreira, Manuel Faria de Almeida, Joaquim Lopes Barbosa – assim como José Manuel Costa, director da Cinemateca, e Maria do Carmo Piçarra, pesquisadora, abrem os cofres da memória, dialogando com os actores Ângelo Torres e Orlando Sérgio. Desvendam os mitos das descobertas, a ficção imperial, a fábrica da epopeia colonial, as máscaras da dominação… fantasmas que persistem ainda hoje. O filme propõe um percurso de emoções nas memórias e nas vivências ainda muito actuais. Ler sobre o recente filme da autora: Fantasmas do Império.
Translation: Ariel de Bigault
Foto: Antonio Pitanga. Ganga Zumba. Carlos Diegues. 1964