Dragão do Apocalipse e Mulher em dores de parto: e nós? Por Gilvander Moreira[1]

O contexto do capitalismo com agronegócio causando brutal devastação sociambiental crescente, dizimando os biomas do Cerrado, da Mata Atlântica, da Amazônia, do Pantanal, dos Pampas e da Caatinga, desterritorializando o campesinato e os Povos e Comunidades Tradicionais, desertificando territórios, envenenando a terra, as águas, o ar e os alimentos com exagero de agrotóxicos e metais pesados jogados nos cursos d’água, desmatamento “sem fim” que levou a irupção da pandemia da covid-19, inclusive, nos leva a perguntar: está em ação o dragão do Apocalipse? A mulher em dores de parto do Apocalipse também está em ação? Quem vencerá? E nós, de que lado estamos?

Em linguagem simbólica para animar a quem está na luta, para não desistir e para driblar os opressores, na Bíblia, o livro do Apocalipse apresenta a visão de uma mulher e de um dragão (Ap 12,1-12). No céu, uma mulher vestida de sol, com a lua sob seus pés e na cabeça uma coroa de doze estrelas, grávida e, em dores de parto, gritava. Apareceu um grande dragão, cuspindo fogo, com sete cabeças, sete diademas e dez chifres. Sua calda devastava 1/3 das estrelas do céu. Diante da mulher, o dragão esperava a criança nascer para devorá-la. Após nascer, a criança foi arrebatada para junto de Deus e de seu trono e a mulher fugiu para o deserto, onde seria alimentada por Deus por 1.260 dias. Houve uma batalha no céu. O anjo Miguel e seus companheiros guerrearam contra o dragão e o venceram. Derrotado, o dragão foi expulso para a terra. No céu foi celebrada a grande vitória: a expulsão do dragão. Na terra, o dragão pôs-se a perseguir a mulher que deu à luz a uma criança salvadora, e empreendeu perseguição ferrenha aos descendentes da mulher: os que observam os mandamentos de Deus e são testemunhas de Jesus Cristo.

Nas visões anteriores, o autor do Apocalipse parte do ano 33 da morte e ressurreição de Jesus Cristo, para falar da caminhada das primeiras comunidades cristãs. No capítulo 12 de Apocalipse, o autor se encontra nos anos 90 do século I da era cristã. O autor volta, simultaneamente, ao momento da criação e ao momento da vitória de Jesus Cristo sobre a morte. No momento da criação, Deus tinha pronunciado a sentença contra a serpente e anunciado a vitória à descendência da Mulher (Gen 3,1-19). Esta vitória acabou por se realizar no momento da morte e ressurreição de Jesus. A visão dos dois grandes sinais no céu – da mulher e do dragão – evoca a sentença de Deus contra a serpente depois da queda no paraíso terrestre, que não é saudade, mas esperança, segundo o biblista frei Carlos Mesters.[2] Em uma perspectiva alegórica, podemos dizer que a mulher em dores de parto simboliza a vida, a humanidade, o povo de Deus, as comunidades perseguidas, as classes trabalhadora e camponesa superexploradas. Simboliza também Maria, a mãe de Jesus, e todas as mulheres, do passado e do presente, que de alguma forma acreditam na força da vida vencendo as barreiras. As dores de parto simbolizam o sofrimento que a humanidade suporta para defender a vida e fazer nascer vida nova. O dragão, na época em que o texto foi escrito, anos 90 do século I da era cristã, simbolizava o império romano, que, como um dragão cuspindo fogo, escravizava 1/3 da população e mantinha em semiescravidão outro terço e empreendia guerras de conquista, por meio das quais anexava territórios e submetia povos e mais povos a esse poder que parecia invencível. O dragão recorda também a antiga serpente, aquela do livro de Gênesis, capítulo 3. Ele cresceu durante a história e virou dragão, bicho imenso. O dragão simboliza o poder do mal, a morte e tudo aquilo que oprime e sufoca a vida. Tem um poder muito forte. O dragão está diante da mulher para lhe devorar o menino que está nascendo, luta desigual entre vida e morte. Porém, Deus toma posição em favor da vida. O texto de Gênesis (Gen 3,15) funda a esperança, pois a Mulher vai vencer. Deus intervém e defende a vida (o menino e a mulher). O menino nasce, vive, morre, ressuscita e sobe ao céu.

A mulher é levada para o deserto por Deus, onde é alimentada por Deus durante 1260 dias. Trata-se de um número simbólico que indica o tempo (Kairos) do fim. Deste tempo, só Deus sabe a hora e a duração exata. O tempo de 1260 dias é o mesmo que “um tempo, dois tempos, meio tempo” (Ap 12,14), o mesmo que quarenta e dois meses, ou três anos e meio, ou ainda metade de sete, que é o número perfeito. Metade de sete é imperfeito, ou seja, limitado pelo poder de Deus. Como vimos, o dragão é expulso do mundo de cima e cai no mundo cá de baixo. Para o Apocalipse a história humana é como um grande julgamento. Deus está sentado no alto de seu trono, é o juiz, mas de infinito amor. Ao lado dele estão o promotor (satã), e o advogado (goel). O satã, que é o promotor, antiga serpente, sedutor de toda humanidade, tinha acusado a humanidade diante de Deus, mas Jesus, o resgatador (goel), pelo seu amor infinito manifestado em sua vida, ensinamento, morte e ressurreição, anulou a acusação que pesava sobre nós. Por isso, satanás perdeu a sua função de acusador. Com a vitória no mundo de cima, um cântico proclama a vitória e explica o sentido do que tinha acontecido: “foi expulso o delator que acusava dia e noite nossos irmãos diante de Deus” (Ap 12,10). A morte não é vista como uma derrota, mas como uma participação na vitória de Jesus que realizou no mundo de cima. Essa vitória de Jesus, no mundo lá de cima, repercute no mundo cá de baixo. Devido a esta vitória, o dragão passa a perseguir os descendentes da mulher, as comunidades. Entretanto, a mística apocalíptica nos diz que o dragão – o império romano na época e os podres poderes de todos os tempos – não vencerá a mulher que está gerando vida, mas será jogado na lata de lixo da história. A mulher grávida, símbolo de todas as forças de vida, triunfará sempre, mesmo que tenha que enfrentar “noites escuras”, genocídio e martírio.

Nos dias de hoje, inspirados/as pela narrativa apocalíptica da mulher grávida e sua criança – Jesus Cristo e todos/as que lutam para garantir condições de vida e de fraternidade real – parodiando o autor do Eclesiastes, podemos dizer que é tempo para resistir ao genocídio, tempo para confrontar o agronegócio, tempo para infiltrar com agricultura familiar agroecológica, tempo para se rebelar diante das discriminações, tempo para desmascarar as fake news, tempo para acumular forças para lutas massivas por direitos, tempo para a formação de lideranças, trabalho de base, educação popular etc, mas certamente não é tempo para cruzar os braços e se omitir, o que se revela em posturas de quem diz “não tenho nada a ver com isso”, “isso não me compete”, “está tudo dominado”, “nada mudará”. Mudará, sim! Já podemos ouvir os gritos do novo que está nascendo em meio a dores de parto na noite escura do capitalismo, máquina de moer vidas. Assim como a violência brutal que matou George Floyd gerou a indignação, a organização e a luta popular que fizeram desmoronar o poderio do “todo poderoso” Trump, a chacina do Jacarezinho e todas as mortes matadas; seja pela política genocida do desgoverno federal com a cumplicidade dos outros poderes; seja pelo agronegócio que desertifica os territórios e com uso abusivo de agrotóxicos envenena a terra, as águas, o ar e os alimentos; seja pelas mineradoras que vão estuprando as entranhas da mãe terra, apunhalando os ventres dos biomas, derramando mercúrio e outros metais pesados nos cursos d’água que resistem; tudo isso está gerando uma crescente indignação e a organização que farão eclodir em breve as lutas populares massivas que derrubarão do poder todos os impostores, fascistas, genocidas, capitalistas e superarão todas as políticas opressoras em curso.

Coloquemos em prática o que exortou e alertou o Papa Francisco, em visita à Comunidade de Varginha, Manguinhos, na periferia do Rio de Janeiro, em 25 de Julho de 2013: Não se cansem de trabalhar por um mundo justo e solidário! Ninguém pode permanecer insensível às desigualdades que ainda existem no mundo!… A Igreja, “advogada da justiça e defensora dos pobres diante das intoleráveis desigualdades sociais e econômicas, que clamam ao céu” (Documento de Aparecida, 395), deseja oferecer a sua colaboração em todas as iniciativas que signifiquem um autêntico desenvolvimento do homem todo e de todo o homem.”

Notas:

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG.

[2] Cf. o livro de Carlos Mesters, Paraíso Terrestre: saudade ou esperança? Petrópolis: Vozes, 1985.

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