Por Leanderson Lima, em Amazônia Real
Manaus (AM) – No dia 11 de janeiro de 2021, uma sinistra cerimônia reuniu o então ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, o governador Wilson Lima (PSC), o prefeito de Manaus, David Almeida (Avante) e a secretária de gestão do trabalho e educação na Saúde, Mayara Pinheiro, que ficou nacionalmente conhecida como a “capitã cloroquina”. Já ciente da gravidade da iminente crise de oxigênio na capital amazonense, Pazuello viajara às pressas para Manaus a fim de lançar, oficialmente, o Plano Estratégico de Enfrentamento da Covid-19 no Amazonas. Mas, sem meias palavras, sua intenção era empurrar o “tratamento precoce” para a população.
“Ouvi do David (Almeida) falar aqui sobre tratamento precoce. Senhores, senhoras, não existe outra saída. Avisei ao Wilson (Lima) que seria mais incisivo em algumas palavras. Nós não estamos mais discutindo se este profissional ou aquele concorda ou não concorda. Os conselhos federais e regionais de saúde já se posicionaram. Os conselhos são a favor do tratamento precoce. Eu conversei pessoalmente em vídeo com todos eles”, disse, categórico, Pazuello, que nesta quarta-feira (19) participa da CPI da Pandemia.
Durante a sessão no Senado, Pazuello afirmou, inicialmente, que na noite do dia 10 de janeiro deste ano tomou ciência do risco da falta de oxigênio para o abastecimento dos hospitais. Havia sido informado pelas autoridades amazonenses. No dia seguinte, teria tido a confirmação da gravidade do problema com a empresa White Martins. Mas essa informação foi desmentida pelo presidente da CPI, Omar Aziz, que confrontou o militar com um ofício indicando que Pazuello falou do problema já no dia 7.
“Quando fomos a Manaus estava vendo que a situação não era boa. No momento que soube que não havia oxigênio, começamos a agir”, disse o ex-ministro para os parlamentares. A fala do general Pazuello irritou os integrantes da CPI. “Informação errada, mentirosa. Não faltou oxigênio no Amazonas apenas 3 dias. Faltou oxigênio na cidade de Manaus por mais de 20 dias. É só ver o número de mortos. É só ver o desespero”, criticou o senador Eduardo Braga (MDB-AM).
O chamado “tratamento precoce” consistia na tentativa de tratar o novo coronavírus com medicamentos como cloroquina, hidroxicloroquina, azitromicina e ivermectina, este último um vermífugo utilizado para combater piolhos. Pazuello, que não é médico, ainda afirmou no evento do dia 11 de janeiro: “A medicação, ela pode e deve começar antes desses exames complementares. Caso o exame, lá na frente, por alguma razão dê negativo, reduz a medicação e tá ótimo. Não vai matar ninguém, mas salvará no caso da Covid.”
Ao seu lado, o governador Wilson Lima não só referendou as declarações do ministro da Saúde, como ainda informava que o tratamento precoce já estava em andamento em municípios do interior do Estado: “O tratamento precoce que falou o general Pazuello [sic] é fundamental e nós tivemos a resposta no interior, como fez o Sabugo (prefeito José Claudenor de Castro Pontes, do PT) lá em Urucurituba, o Anderson (Sousa, do PP), lá em Rio Preto da Eva. Quando o paciente ia a uma unidade básica de saúde, já saia ali com seu saquinho de medicamento para poder fazer esse tratamento, assim como também está fazendo o prefeito David Almeida e muitos outros gestores”.
Postos de saúde mobilizados
Nesse mesmo evento, o recém-empossado prefeito de Manaus atribuiu a não utilização de medicamentos sem comprovação científica no tratamento da Covid-19 à falta de informações. “Todas as nossas unidades básicas, ministro (Pazuello), estão abastecidas com 52 medicamentos. Desses 52, 22 são voltados para covid”, disse Almeida.
“Quero aproveitar o momento que toda a imprensa está aqui neste lugar presente para informar que toda a população… após os primeiros sintomas procure uma unidade básica de saúde. Não espere sentir falta de ar. Nos primeiros sintomas procure a unidade básica de saúde e você vai ter a orientação necessária, o tratamento necessário e todos os medicamentos que a prefeitura, juntamente com o ministério da saúde, vão disponibilizar para vocês para que possamos tratar a doença no seu início”, disse.
Um dia depois, a reportagem da Amazônia Real visitou postos de saúde e comprovou que o tratamento precoce estava sendo prescrito para a população manauara.
O pacto pela desinformação foi selado pela por Mayara Pinheiro, a “capitã cloroquina”, nesse mesmo evento em Manaus (veja aqui). “A todos os prefeitos do Estado do Amazonas. A todos os colegas profissionais da saúde do Brasil que nos escutam e os outros representantes dos outros estados, que adotem o tratamento precoce. Por mais que nós tenhamos em breve a vacina disponível para toda a população brasileira, não há tempo a perder. Nós precisamos evitar novos óbitos. Precisamos evitar a perda de novas vidas. (…) Nós já temos evidências científicas para que nós possamos creditar a esse tratamento uma redução dramática dos casos de covid das mortes registradas no nosso País”, disse.
Três dias depois, Manaus e o resto do Brasil via vítimas da Covid-19 morrerem asfixiadas pela falta de oxigênio nos hospitais, um problema que naquele 11 de janeiro já era conhecido de Pazuello. Por que remédios de ineficiência comprovada cientificamente continuavam a ser prescritos pelo governo federal é a questão que precisa ser esclarecida na CPI da Pandemia.
Em Brasília, o presidente Bolsonaro seguia na sua luta por defender o tratamento precoce. “Quem critica, não toma. Fique tranquilo. Se tiver um problema de vírus vai se agravar. Agora vem um médico que ele (não) vai receitar o tratamento precoce, se o médico não quiser, procure outro médico, não tem problema. Repito o tempo todo aqui: no meu prédio mais de 200 pessoas pegaram a Covid e trataram com cloroquina e ivermectina, ninguém foi para o hospital e assim você vê exemplos em todo o Brasil todo”, disse.
A “imunidade de rebanho”
Manaus, única cidade brasileira a vivenciar por duas vezes nesta pandemia o colapso do seu sistema de saúde, foi vítima do negacionismo do Palácio do Planalto. Transformou-se em um laboratório da morte com a estratégia de “imunidade de rebanho”, defendida por Bolsonaro e posta em prática pelo governador Wilson Lima e o prefeito David Almeida. Na concepção deles, quanto mais pessoas fossem expostas ao vírus, mais rápido haveria uma imunização natural ao coronavírus.
Não foi difícil convencer o governador do Amazonas e o prefeito de Manaus a embarcarem no “tratamento precoce”. Antes de se eleger, Wilson Lima, 44, trabalhava como apresentador de um programa policialesco na Rede Calderaro de Comunicação (RCC), em Manaus. Por conta de sua popularidade, o apresentador foi lançado pelo PSC para a disputa majoritária.
Há quem diga que ele seria um “laranja” do também candidato ao governo Amazonino Mendes (PDT). O que ninguém contava é que Wilson Lima fosse engolir o velho cacique. Em 2018, o novato teve 1.033.538 de votos, no segundo turno, batendo o recorde que era do ex-governador e hoje senador, Omar Aziz (PSD), que foi eleito quatro anos antes com 943.955 votos, hoje presidente da CPI da Pandemia.
Além de adotar o discurso de mudança, Lima também surfou na esteira dos votos conquistados pelo presidenciável de extrema-direita, Jair Messias Bolsonaro. “Nosso candidato é o Bolsonaro, nosso partido declarou apoio nacional e a gente segue orientação dele”, disse Wilson ainda durante a disputa do primeiro turno. Outros governadores no País foram eleitos na esteira da vitória de Bolsonaro, como Wilson Witzel (preso e afastado do cargo por impeachment), Antonio Denarium (PSL-RO), Marcos Rocha (PSL-RR), Mauro Mendes (DEM-MT) e Ratinho Júnior (PSD-PR).
Estudo pró-cloroquina
Wilson Lima foi rápido em agradar a Bolsonaro. No dia 23 de março de 2020, ele autorizou a pesquisa do uso da cloroquina para combater o novo coronavírus, em pacientes do Amazonas. Àquela altura, o mundo estava perplexo e desconhecia como combater o vírus e mal se falava em vacinas.
Fazia um mês que o primeiro caso de coronavírus foi confirmado no Brasil, mais precisamente em 26 de fevereiro de 2020. O infectado era um homem de 61 anos que havia estado na Itália, na região da Lombardia. Já a a primeira morte por Covid-19 no Amazonas, do empresário Geraldo Sávio, de 49 anos, residente de Parintins, ocorreu em 24 de março de 2020, um dia após o governador autorizar o estudo com a cloroquina, um remédio curiosamente em falta para combater a malária e bem conhecido na região amazônica.
A pesquisa teve o aval da Comissão Nacional de Ética em Pesquisas, do Conselho Nacional de Saúde, e foi comandada por profissionais da Secretaria Estadual de Saúde (Susam), das Fundações de Medicina Tropical Heitor Vieira Dourado (FMT-HVD), de Vigilância em Saúde (FVS-AM) e da Fiocruz.
“Esses trabalhos de pesquisa estão sendo feitos lá no Hospital Delphina Aziz e começam amanhã (24 de março de 2020). Serão pesquisas e testes feitos em pacientes. Nós tivemos, inclusive, a autorização para que essa pesquisa começasse”, afirmou Wilson Lima.
O então secretário de Saúde do Estado, Rodrigo Tobias, reforçava a ideia de que o estudo seria voltado para comprovar que a cloroquina funcionava. “Essa é uma pesquisa que avalia a eficácia da cloroquina em associação com outros medicamentos, no combate ao coronavírus em pacientes. Tudo dentro das normas da pesquisa, e que pode ser feita em seres humanos, portanto é a ciência colaborando no combate ao novo coronavírus, começando pelo Amazonas”, disse.
Rosemary da Costa Pinto, então diretora-presidente da Fundação de Vigilância Sanitária do Amazonas (FVS-AM), também defendeu a pesquisa da cloroquina. “É importante ressaltar que esses pacientes são pacientes graves. Isso quer dizer que não adianta uma corrida às farmácias até porque a Anvisa já declarou que esse agora é um medicamento controlado. Portanto, só será vendido com receituário especial e para atender essas situações que já são prescritas. Tratamento de malária, tratamento das autoimunes”, pontuou na ocasião. A diretora-presidente da FVS-AM morreu no dia 22 de janeiro deste ano por complicações da Covid-19.
A ineficácia da droga
O cientista e médico infectologista Marcus Vinícius de Lacerda, especialista em saúde pública do Instituto Leônidas & Maria Deane (Fiocruz Amazônia), e outros pesquisadores mostraram não apenas a ineficácia da cloroquina, como ainda revelaram possíveis riscos se o remédio fosse prescrito aos pacientes infectados com o novo coronavírus.
A revista Journal of the American Medical Association (Jama), uma das publicações mais conceituadas do mundo, publicou o resultado da pesquisa e serviu de base para que o medicamento parasse de ser prescrito nos Estados Unidos.
“Só aqui no Brasil que isso virou um debate, a gente foi xingado de ‘comunista’. O reconhecimento internacional, por outro lado, acaba demonstrando que a gente está certo. Infelizmente, no Brasil, a gente precisa primeiro ser reconhecido lá fora para ser valorizado aqui dentro”, avaliou Marcus Vinícius em entrevista ao site da Fiocruz.
Os pesquisadores participaram desse estudo tiveram de começar a andar com escolta armada, depois de receber ameaças de morte.
O jornal New York Times deu destaque a esse estudo com 81 pacientes hospitalizados em Manaus que receberam cloroquina e a hidroxicloroquina. Aproximadamente metade dos participantes do estudo receberam uma dose baixa de cloroquina (450 miligramas de cloroquina, com duas doses no primeiro dia), enquanto o restante recebeu uma dose alta (600 miligramas duas vezes ao dia por 10 dias). Em três dias, os pesquisadores começaram a notar arritmias cardíacas em pacientes que tomaram a dose mais alta. No sexto dia de tratamento, 11 pacientes morreram, levando ao fim imediato do segmento de alta dose do ensaio.
A pá de cal que faltava para encerrar em definitivo os testes com hidroxicloroquina foi dada em maio de 2020, pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Um novo estudo mostrou novamente a ineficácia da cloroquina ou hidroxicloroquina, sozinhas, ou combinadas com antibióticos como a azitromicina, e ainda referendou os potenciais riscos cardíacos. A nova pesquisa avaliava 96 mil pessoas contaminadas com o novo coronavírus pelo mundo.
A revista médica The Lancet, outra prestigiada publicação científica, publicou o estudo, assinado pelos pesquisadores Mandeep R. Mehra (Brigham and Women’s Hospital Heart and Vascular Center e Harvard Medical School, EUA), Sapan S. Desai (Surgisphere Corporation, EUA), Frank Ruschirzka (University Heart Center, Suiça) e Amit N. Patel (University of Utah e HCA Research Institute, EUA).
Processo em segredo
Em uma live com o presidente Bolsonaro, o ex-ministro Pazuello disse, em 14 de janeiro deste ano, atribuía a crise do oxigênio no Amazonas à falta da adoção do “tratamento precoce”. A justificativa dele vale registro: “Já estamos no período chuvoso, novamente no Amazonas. Não só no Amazonas, mas no Norte do País, e em parte do Nordeste já é o período chuvoso. E do período chuvoso a umidade fica muito alta e você começa a ter complicações respiratórias. Esse é um fator. Um outro fator: Manaus não teve a efetiva ação no tratamento precoce com diagnóstico clínico, no atendimento básico, e isso impactou muito no agravamento da doença. Por outro lado, a infraestrutura hospitalar de atendimento especializado, ela é bastante reduzida em Manaus”.
Em 13 de abril deste ano, o Ministério Público Federal ajuizou ação de improbidade administrativa contra o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello e o secretário estadual de Saúde do Amazonas, Marcellus Campelo, pela omissão dos agentes públicos entre dezembro de 2020 e janeiro de 2021, quando se verificou, no Amazonas, “a crise no fornecimento de oxigênio medicinal e o aumento no número de mortes por covid-19, durante a chamada segunda onda da pandemia”.
A ação apresentada à Justiça Federal no Amazonas inclui ainda três secretários do Ministério da Saúde e o coordenador do Comitê de Crise do Amazonas, Francisco Ferreira Maximo Filho. A ação corre em segredo de justiça.
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Jair Bolsonaro e Eduardo Pazuello insistiram e medicamentos como cloroquina e ivermectina foram doados à população da capital e do interior do Amazonas. Na imagem, o ex-ministro da Saúde se reúne com o prefeito David Almeida e o governador Wilson Lima. (Foto: Dhyeizo Lemos / Semcom)